sexta-feira, 31 de dezembro de 2021


Lesados do BPN: A Grande Desilusão!


A vontade da maioria limita-se a espelhar a vontade da maioria, pouco ou nada tendo a ver com a razão ou a racionalidade da decisão.

Assim, o facto de cerca de 80% dos processos decididos pelos Tribunais da Relação*) terem sido decididos a favor dos lesados do BPN jamais poderá ser causa invocável para atacar o recente e douto aresto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que decidiu que "para estabelecer o nexo de causalidade entre a violação dos deveres de informação, por parte do intermediário financeiro, e o dano decorrente da decisão de investir, incumbe ao investidor provar que a prestação da informação devida o levaria a não tomar a decisão de investir".

O que deve, neste trecho, causar perplexidade é, antes, o facto de, enquanto consumidores como qualquer um de nós, parecerem ter-se esquecido os Venerandos Conselheiros que votaram favoravelmente a decisão de que aquilo que plasmaram no acórdão foi, afinal, nem mais nem menos do que a conclusão de não ser válido o princípio, subjacente a todas as transações comerciais - muito especialmente no que se refere a valores mobiliários (cf art.7º do Código dos Valores Mobiliários) -, de que a exigência de informação completa e exata se destina, precisamente, à formação da vontade de adquirir por parte do comprador; e que a exigência do fornecimento de toda a informação relevante pressupõe que toda ela é, presumivelmente, relevante para a formação dessa vontade. Logo, a contrario, se alguma ou algumas das características estiverem errada ou insuficientemente referidas, há que concluir que a transação se não efetuaria.

Ora, in claris non admittitur voluntatis quoestio, ou seja: naquilo que é claro, não se admite pergunta quanto à vontade, princípio jurídico que poderá ter sido claramente violado pela polémica decisão.

Aplicado ao caso concreto, teremos que, sendo clara a relevância da informação exigida no processo de formação de decisão de aquisição, não é exigível que, relacionada com ela, se formule - ou demonstre - qualquer outra questão.

- x -

Não obstante, e embora sem força obrigatória geral, encontramo-nos perante um acórdão que os tribunais de primeira ou de segunda instância apenas poderão contrariar apresentando extensa fundamentação - e dificilmente em casos análogos, já que se trata de um acórdão de uniformização. Acresce que, sendo tamanha a probabilidade de revogação, em sede de recurso, pelo STJ, poucos serão os magistrados que tal proeza ousarão.

Os princípios são sagrados, e deve ser intransigente e rigorosa a sua observação. No entanto, a apreciação ex cathedra de questões como esta pode levar - e, pelos vistos, leva - a algo tão simples e inacreditável como o que acaba de acontecer; é que, salvo melhor opinião, a decisão agora prolatada é aplicável, por analogia, a todo e qualquer produto ou serviço transacionado, o que significa que qualquer dos mesmos ilustres magistrados - e de todos nós - deixará de ter direito a exigir, no prazo contratual, a devolução de uma simples varinha mágica apenas alegando que não tem potência suficiente para triturar amêndoas, como era erradamente referido na publicidade: tem de demonstrar que, se soubesse que não servia para triturar amêndoas, não teria concretizado a transação.

Ou seja: na prática, fica completamente impossibilitado de ter sucesso na reclamação!

A possibilidade de existência de inconstitucionalidade material deve, assim, ser objeto de análise atenta, não apenas pela parte interessada como, oficiosamente, por quem de direito, já que impacta, direta e gravemente, na proteção dos direitos do consumidor contemplados no art.60º da Constituição.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021


Gilbert K. Chesterton

G K Cesterton e as Falácias

"
As falácias não deixam de ser falácias
por entrarem na moda 
"


"Fallacies do not cease to be fallacies because they become fashions"

G. K. Chesterton *)      

terça-feira, 28 de dezembro de 2021


Títulos que O não São


Concordará o caro Leitor com a minha interpretação de que, a um título bombástico como este, se seguiria uma notícia sobre uma queda em desgraça do Juiz, ou de uma ação disciplinar séria com suspensão à vista, ou qualquer outro evento digno de notícia, mormente antecedida de um título de tamanho impacto.

Desengane-se. Como poderá confirmar no link que antecede o asterisco acima, continuação da leitura logo esclareceria que se trata, apenas, de redistribuir processos a cargo de um outro juiz por estar este exclusivamente dedicado a dois outros de maior exigência; e, logicamente, um eventual sorteio que inclua os novos magistrados recentemente admitidos*) poderá "resultar na perda de processos que estão, neste momento, com Carlos Alexandre", o que não passará de uma consequência natural do facto de, no Tribunal Central de Instrução Criminal existirem agora mais juízes pelos quais repartir a carga de trabalho.

Não se trata, obviamente, de uma notícia falsa. Mas, será coisa tão insonsa realmente uma notícia?

Tampouco estamos perante um título falso. Mas não se tratará de um título que viola a mais elementar fronteira da racionalidade e, até, da legitimidade, da boa fé?

Se o objetivo de títulos sensacionalistas com este for levar pessoas a adquirir jornais impressos ou a aceder a conteúdos eletrónicos a fim de, por qualquer dos processos, gerar receitas, até que ponto será a atitude de quem, impune mas deliberadamente escolhe um destes títulos, diferente daquilo que é geralmente considerado publicidade enganosa?

Com uma agravante, claro: enquanto a publicidade relativa a produtos indiferenciados é da responsabilidade de empresas não vinculadas a qualquer nobre missão que não seja a de obter lucros para quem nelas investe - e não estão protegidas por qualquer estatuto especial ou estão vinculadas a qualquer código de ética além daquele que, mais ou menos intuitivamente, vincula cada um de nós -, os jornalistas estão, supostamente, incumbidos da nobre missão de informar objetivamente, com verdade, sendo estes pressupostos parte importante dos privilégios que o Estado lhes concede para que possam, em liberdade, desempenhar a sua função.

Até que ponto será, então, legítimo a um órgão de comunicação social estar no mercado com a mesma postura que qualquer indiferenciado fabricante de macarrão?

Aqui fica a questão...



segunda-feira, 27 de dezembro de 2021


Katherine Jenkins - Il Canto


Da autoria de Romano Musumarra e Luca Barbarossa, foi inicialmente gravada pela potente voz de Pavarotti, em 2003. Será difícil não considerar que a discreta e ternurenta interpretação de Katherine Jenkins se destaca da primeira pela suavidade, pela fluidez, por um notável controlo da intensidade da voz, 

Muito raramente me deixo tocar por segundas versões, por variações e outras que tais, mas tenho de admitir que não há regra sem exceção.

Esta é, seguramente, uma delas. Pode ouvir aqui.


Fonte da imagem: Wikipedia


La notte qui non torna più
Dal giorno che sei andata via
Ed il cielo ha smesso di giocare
Con le stelle e con la luna
E le nuvole sono ferme qui
Come lacrime che non cadono
Vedi come il tempo
Perde anche i ricordi
Resta solo il canto
Di un amore che non muore
Prendi la mia mano
Danza con il vento
Apro le mie ali
Posso solo amarti così
Vieni, vieni via con me
Vedi come il tempo
Perde anche i ricordi
Resta solo il canto
Di un amore che non muore
Prendi la mia mano
Danza con il vento
Apro le mie ali
Posso solo amarti così
Vieni, vieni via con me
Apro le mie ali
Posso solo amarti così
Vieni, vieni via con me
Con me
Con me

domingo, 26 de dezembro de 2021


Gouveia e Melo: Mais Um Daqueles?


"A palavra que reténs nos teus lábios é tua escrava;  a que dizes fora de propósito é tua senhora".

Ninguém conclua, das linhas que se seguem, que não estou, como qualquer português deve estar, grato ao, a partir de amanhã, ex-Vice-Almirante que, recentemente, desempenhou funções como coordenador da assim designada task force da vacinação anti-COVID. Claro que estou!

Tal não me obriga, porém, a deixar-me ofuscar pelo brilho do sucesso da reconhecidamente válida ação por ele desenvolvida enquanto executante do enunciado atual - que não encontro, se é que existe... - do Plano Nacional de Vacinação*) iniciado em 1965 com a aceitação, pelo Estado Português, de um donativo da Fundação Calouste Gulbenkian destinado à vacinação contra a poliomielite*), difteria*), tétano*) e tosse convulsa*) (Decreto-Lei n.º 46533, de 09 de Setembro de 1965)*), continuado  com a implementação do velhinho mas, então, indispensável Boletim Individual de Saúde (Decreto-Lei n.º 46621, de 27 de Outubro de 1965)*) (Decreto-Lei n.º 46628, de 11 de Novembro de 1965)*) e assim sucessivamente.

Não me ofusca, pelo menos, a ponto de evitar que fique perplexo, desagradado e apreensivo com o que leio nas entrelinhas das recentes respostas do amanhã promovido a Almirante, como "o futuro a Deus pertence", "não se deve dizer 'dessa água não beberei'" ou "até lá muita coisa pode acontecer", produzidas quando interpelado acerca de uma eventual candidatura futura à presidência da República.

A ter, de facto, sido proferido este chorrilho de lugares-comuns*), há que questionar, antes de mais, a capacidade para o desempenho de tão altas funções por parte de um cidadão que, ainda há poucos meses atrás - e, porventura, antes de o terem aconselhado a ter tento na língua - sobre o mesmo assunto dizia coisas de sentido contrário, tão claras e sem margem para dúvidas como "Não sou político", ou "vou tirar esta farda, mas é para vestir outra. Eu sou militar, não tenho jeito para político. Fecho essa porta*).

Tudo isto é muito estranho. Principalmente, tratando-se de um militar, de uma pessoa que pertence à elite de uma estrutura conhecida pela solidez da palavra dada. Enfim...

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Mas há mais.

Enquanto desempenhou as referidas funções, o Senhor Almirante notabilizou-se como executante privilegiado, como mero coordenador de esforços e de boas-vontades. Não como gestor; muito menos, como um velho sábio a exercer uma magistratura de influência presidencial. Nem me parece, dada a sua notória apetência pela ação, talhado para tal.

Como explicar, então, que alguém que se assume como não político, que desempenhou funções que em nada se assemelham àquelas que de um presidente da República será de esperar, abra agora uma porta, pelo próprio há pouco inequivocamente fechada para sempre, para, mais ano, menos ano, vir a candidatar-se ao lugar?

Já se sabe que, pelo menos até agora, ninguém, num dos partidos políticos do costume, se tem vindo a perfilar como candidato às mais altas funções do Estado. Já se sabe, também, que não se vislumbra quem poderá ter carisma suficiente para, sem fazer muito triste figura, as desempenhar na sombra do atual Presidente da República, o qual dificilmente alguém, num futuro mais ou menos próximo, poderá, no plano mediático, sequer sonhar em igualar. O que suscita, inevitavelmente, a pergunta: qual dos partidos estará a piscar o olho ao Almirante? Quem o estará a empurrar?

Além do mais, começa, como vimos, a dar a ideia de que o talvez putativo Candidato tem uma imagem bastante difusa de si próprio, o que não convém ao mais alto magistrado da nação: disse, em tempos de que já não parece lembrar-se, não ser um político, mas a recente inversão de marcha nos seus projetos futuros acaba de demonstrar que, embora inábil, afinal, o é.

No entanto, diz quem é sensato que a imortalidade, quando já está garantida, mais vale defender do que desbaratar. Por isso, a sério, alguém lhe diga que, mesmo quando movidos pelas melhores intenções, se não somos ou não nos sentimos competentes - ou alguma coisa nos diz que, mais ou menos suavemente, estão a passar-nos a mão pelo pelo -, bem melhor faremos, no interesse daqueles que, supostamente, iríamos servir, em em não insistir em avançar; em não nos tornarmos... mais um daqueles.

Honesta fama est alterum patrimonium

sábado, 25 de dezembro de 2021


A Cozer em Lume Brando... até à Morte

 

Ao cozinhar animais vivos encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração
do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que,
lá bem no fundo, não apenas sentimos como até
 sabemos
, sem necessidade de grande experimentação".

 

Quando era miúdo, ensinaram-me que, tocando com o que quer que fosse, mesmo muito ao de leve, num bicho da conta*), aquilo que, então, me parecia uma espécie de minhoca se encolhia todo, passando a assemelhar-se a uma continha preta - não sei se ainda se pode dizer isto, ou se terei de dizer “uma continha de origem africana”, ao que, um dia, poderá pretender obrigar-me a pirosice a que dão o nome de linguagem inclusiva *), contra a qual diversas vezes já aqui me insurgi. Bem, adiante...

De Tenra Idade aprendemos
Mesmo de tenra idade, qualquer miúdo, por muito burrinho que possa ser, entende existir ali uma relação de ação e reação, um nexo de causalidade: o bicharoco encolheu-se todo porque sentiu alguma coisa que lhe sugeriu que poderia estar ameaçado; e o facto de alguém se encolher, se fechar sobre si, imediatamente sugere, mesmo intuitivamente, a quem tal vê, a forte probabilidade de o sujeito estar a experimentar um forte incómodo.

Nada o provava, evidentemente - mas a simples observação sugeria... -, que essa sensação, presumivelmente desagradável, estivesse associada a uma qualquer forma de sofrimento ou de dor. Afigura-se, não obstante, inegável que, ao fazê-lo dobrar-se sobre se mesmo, o sistema nervoso do bichinho reagia a algo que lhe fora transmitido pelos sentidos. A qualquer idiota não deixaria de ocorrer tão evidente e simples possibilidade.

Dado que tudo aquilo que os sentidos transmitem é sentido pelo sujeito, muito provavelmente, se a sensação for demasiado forte e acutilante – como, no caso dos humanos sabemos ser a provocada por um objeto pontiagudo -, tudo indicará que, proporcionalmente ao tamanho, ao mais leve toque o bicho da conta poderá sentir alguma... dor.

Claro está que, tanto quanto julgo saber, nada disto tinha ainda, nos já longínquos dias da minha infância, sido cientificamente demonstrado; e bem sabemos que, por todas as razões e mais algumas, é recomendável que nada se aceite como certo antes de ser sujeito a adequada validação.

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Sempre haverá, no entanto, que lembrar que não estamos aqui a refletir sobre determinado fenómeno que tenha como objeto uma reação química ou física de seres inanimados, mas sim o que parece tratar-se de uma reação vital de um ser vivo. Se algum de nós apresentar sintomas de um mal-estar evidente, não deixaremos de tudo o fazer para o tratar, mesmo que o quadro clínico não tenha sido objeto de análise científica prévia nem se enquadre em qualquer sintomatologia conhecida. Ou não será assim?

A reação do bicho da conta assemelha-se, com toda a probabilidade, pelo menos à maior parte das reações conhecidas de seres vivos quando lhes são, experimentalmente ou não, infligidos maus tratos suscetíveis de redundar em sofrimento: encolhem-se, esperneiam e, até, gritam, se souberem e puderem gritar como os humanos.

Não sei se as lagostas e os caranguejos se encolhem ou esperneiam quando mergulhados em água a ferver com o intuito de lhes tirar a vida de uma forma ideal à preservação da frescura e do paladar quando transferidos da cozinha para o prato. Nunca tive, na verdade, o discutível prazer de assistir à elaboração de qualquer destes pitéus - que nem aprecio - baseados no consumo, quer de um, quer de outro desses animais ou de outros da mesma ordem.

O que parece, agora, certo - pelo menos a Ciência assim o diz - é que os crustáceos sentem dor, designadamente quando sujeitos a tal tratamento eivado de desumanidade *).

Ser humano de bom senso
Mas não o intuiria já, há muito, qualquer ser humano de bom senso? Não é primeira, entre todas as outras, a humana tendência para comparar, para associar ao que sentimos aquilo que outros poderão estar a sentir? Quando fazemos mal ou bem a quem quer que seja, não o fazemos baseados no conhecimento de que iremos provocar sensação idêntica àquela que experimentaria qualquer de nós?

Quando acariciamos um cão ou um gato, não pressupomos que o que ele sente será algo semelhante ao prazer de recebermos nós idêntica carícia? Que sentido faria a carícia, se assim não fosse, afinal?

Tal como o bicho da conta, a lagosta e o caranguejo são crustáceos: se um é capaz de sentir, de sofrer, como poderá não ter ocorrido aos espíritos mais distraídos que, tal como o primeiro, os últimos haveriam, também, de padecer? E, com eles, qualquer outro animal?

Se, ao que dizem, até os tartígrados*), no seu escasso milímetro de tamanho, sentem, sofrem, se encolhem para se defender dos impactos do ambiente*), entrando num processo de criptobiose*) - eles que resistem às para nós insuportáveis temperaturas, do zero quase absoluto à da água em ebulição, bem como a pressões de seis mil atmosferas -, como não admitir, seriamente, a hipótese de que todos os seres animados sofrem fisicamente, independentemente do grau e do tipo de estimulação?

Ao cozinhar animais vivos*) encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que, lá bem no fundo e contra nós, não apenas sentimos como até sabemos, sem necessidade de grande experimentação.

Convém muito mais concluir que “não, não sentem, com certeza. São tão pequeninos!”, e vá de os torturar até à morte em benefício de uma porventura mais agradável e sofisticada degustação.

Gostamos de acreditar que não sentem, que a Natureza os preparou para esse tipo de morte. Até a Bíblia narra como benéfica a alegada intervenção de Jesus Cristo na Pesca Milagrosa. Mas, não sofreram inevitavelmente, como hoje sofrem, asfixiando até à morte, os desgraçados peixes, ali no chão?

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Esta prática de cozinhar animais vivos tem, no entanto, bem mais que se lhe diga.

Dado que, como disse, não sou versado nessas artes culinárias, sempre acreditei, ingenuamente, que a água era fervida e, uma vez em ebulição, os bichos para lá eram atirados, perecendo quase instantaneamente, embora no meio da maior aflição.

Alguma pesquisa a que procedi quando este tema foi, recentemente, suscitado na comunicação social, fez-me, porém, saber que o que se passa é bem pior, ainda: os desventurados seres são imersos em água fria, que vai sendo, progressivamente, aquecida, passando as vítimas pela fase do banho frio semelhante ao do seu habitat natural, embora sem sal; pela do desconforto de uma água morta onde, normalmente, não habitam; por fim, pelo intolerável e prolongado horror, muito provavelmente acompanhado da noção da morte iminente, de sentir o corpo todo como que rebentar com um calor impossível de descrever e no qual se torna, também, impossível sobreviver praticamente qualquer representante do reino animal *).

Nada disto é novo: na Idade Média existiam métodos de tortura e de lenta e dolorosa privação da vida, por execução, igualmente atrozes, como a fogueira ou o touro de bronze*). Nos nossos dias, temos notícia de pais que matam filhas com água a ferver*), ou com ela as torturam antes de barbaramente as assassinarem*) de outra forma.

Mas, será isto, este tipo de seres que, verdadeiramente, somos ou queremos ser? Nós, que tanto nos preocupamos com os pergaminhos e com a imagem que de nós mostramos, será que encaramos tamanha indiferença pelo sofrimento causado pelos nossos atos, como uma manifestação de sofisticada evolução civilizacional?

Um consagrado autor português escreveu que “todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior *)”.

Faltou-lhe acrescentar “uma crueldade infinitamente maior”...

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A noção claríssima que, intuitivamente, temos da nossa semelhança, em muitos aspetos, com outros representantes do reino animal leva-nos, em certas circunstâncias, a agir para com eles como para com qualquer representante da nossa espécie, ou até melhor. A vertiginosa expansão das clínicas veterinárias e a cada vez maior multiplicidade de marcas de produtos para animais de estimação vendidas até em supermercados são disso a mais viva e evidente demonstração.

Todavia, essa identidade de tratamento opera, pelos vistos, em ambos os sentidos: para o bem, e para o mal.

Quem, com aberrante indiferença, não hesita em torturar crustáceos em nome de uma boa mesa - inegavelmente importante no convívio social -, como reagirá noutro contexto em que a morte de outrem às suas mãos acabe por surgir como a sequência inevitável ou natural?

Não sendo vegetariano, não posso deixar de perguntar-me como, por outro lado, nas mesmas circunstâncias reagirá quem, ciente de quanto aqui antecede, aceita e paga para, com cumplicidade cruel, satisfazer os anseios do seu sofisticado paladar com despojos inertes de implacavelmente torturados representantes do reino animal.

Sobretudo hoje, que é dia de Natal...

Feliz Natal!

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