(Introdução à Secção ‘Política’)
"O bom político é quente no coração e frio na ação:
seja qual for a motivação, quem governa para ser ou parecer bonzinho,
para agradar a uns ou a todos, está condenado a praticar,
maioritariamente,
o mal resultante da incompetente governação"
1. Da Razão de Governar com a Razão
2. Um Dia em que a Objetividade
Falhou
3. Da Improvável Verdade
4. Demagogia Pura e Dura
5.
Notas Finais sobre a Desgovernação
1. Da Razão de Governar com a Razão
Sou tão sensível às necessidades e anseios humanos como qualquer outra pessoa,
tirando os mais ou menos sociopatas desta definição. O que vou dizer não deve, assim, ser confundido com condenável indiferença ou
indizível frieza; apenas
considero que, tal como a política deve viver separada das religiões, também o
mandato democraticamente conferido aos órgãos de soberania não visa cuidar dos
sentimentos e dos estados de alma daqueles que da governação dependem para o
funcionamento da sociedade enquanto sistema organizado e, no momento do voto,
pedem para ser governados: passa, simplesmente, por, uma vez legitimada pelo voto a orientação política
proposta aos eleitores, se ocuparem os empossados de elaborar e publicar
normas que assegurem que esse funcionamento decorrerá de forma eficiente e
eficaz, só em função dele devendo, casuisticamente, ponderar-se para que lado
deverá, aqui e ali, oscilar a balança das promessas eleitorais.
Errou o rei que no século XVII terá dito: “L’État c’est moi”. À época, como em todos os tempos e em toda a parte, o Estado somos todos nós,
desejavelmente funcionando num
sistema devidamente estruturado e coerente, qual máquina bem desenhada,
fabricada, montada e oleada; e o Direito é o manual de
instruções da máquina do Estado que cada um de nós integra na qualidade de
cliente, de parceiro ou de fornecedor, àquele cabendo regular e fiscalizar as
relações entre todos nós e entre cada dois de nós.
Ora, na fabricação, operação e manutenção de qualquer mecanismo, espera-se que
utilizem os seres humanos a cabeça, e não aquilo que lhes bombeia o sangue até
aos pulmões. Por maioria de
razão, o mesmo deverá acontecer, e de forma ainda mais isenta e objetiva, com
quem propõe ao tal Estado que somos encarregar-se da respetiva
governação: não se pode escrever
no papel as leis do coração.
Exemplificando, o ato de roubar constitui crime punível nos termos dos artigos
210º
e
211º
do
Código Penal Português*). Mas roubar não é proibido
porque isso não se faz, por ser feio: não é a noção subjetiva de
feio, de socialmente condenável, que deve motivar a decisão de
punir o roubo, e igual objetividade deve imperar na génese e na aplicação de
qualquer outro preceito, penal ou não, em qualquer contexto legal ou
circunstancial e em qualquer sede legislativa que consideremos.
Os estados não nos permitem roubar porque privar, pela força, os cidadãos dos
seus bens patrimoniais constitui grave atentado à estabilidade emocional, à
segurança e, eventualmente, à integridade física daqueles, além de produzir um
inevitável impacto negativo, não apenas na situação pessoal da vítima, mas
também na qualidade da sua prestação quotidiana em prol dos demais - podendo,
até, ficar ela inviabilizada nos casos de violência física ou psicológica
extrema.
Outras objeções à conduta criminosa naturalmente militam, entre elas o sério
impacto nas contas do Estado produzido pelo muito elevado dispêndio inerente à
busca, perseguição e punição de criminosos, já para não falar da indevida
alocação de recursos necessários ao funcionamento das forças policiais e dos
órgãos judiciários, como as entidades investigadoras e os tribunais - já que
optar por deixar o ato impune sempre estará fora de questão, seja pelo efeito
multiplicador do exemplo, seja pela probabilidade de repetição do ato pelo
mesmo agente, entre outras razões.
Coincidentemente, ocorre que roubar é feio, não se faz; mas isso é algo que tem a ver com valores morais e ditames religiosos, com a
consciência de cada um, coisa que aos detentores do poder não deve interessar
enquanto meros legisladores e gestores que são, sem mandato relativamente ao
que é do foro íntimo dos cidadãos.
Quem rege os destinos de um país é, neste plano, comparável ao desenhador ou
fabricante de automóveis, que desempenha o seu papel no processo de fazer este
ou aquele modelo funcionar: se o carruncho vai servir para transportar
doentes ou para assaltar bancos, é algo que, enquanto desempenha a sua função,
o não deve, o não pode preocupar. Caso contrário, permaneceria inerte,
já que automóveis – e tudo o resto, porventura – suscetíveis de servir
intuitos criminosos sempre seria pouco ético fabricar.
Pode, então, um governo legislar contra o costume? Tecnicamente, sim, além do que sempre haverá quem diga que a moral não é
universal nem objetiva, que cada sociedade tem a sua, e que quem manda tem o
poder de, através da lei, a alterar. Mas parece também legítimo assumir que legislar - ainda que racional e
objetivamente - contra o costume legitimamente estabelecido não deixará de
desencadear a revolta e os custos sociais e económicos a ela inerentes. Nesse sentido, a resposta à pergunta deverá ser “não”.
2. Um Dia em que a Objetividade Falhou
O bom político é quente no coração e frio na ação: seja qual for a motivação, quem governa para ser ou parecer bonzinho,
para agradar a uns ou a todos, está condenado a praticar, maioritariamente, o
mal resultante da incompetente governação. O mesmo acontece com quem, perante
as dificuldades, age como se em estado de negação vivesse, especialmente se,
na prática política, recusa aceitar, por um lado, que sem pessoas vivas não
haverá quem governar e, por outro, que sem saúde as pessoas tendem a não viver
muito tempo, pelo que em breve não haverá muito quem governar; e que resulta, assim inútil e contraproducente cuidar das também importantes
questões da educação, da cultura, da economia e da imagem externa de um país
antes de assegurar a saúde e, com ela, a sobrevivência de governados que
sobejas provas vão dando de as respetivas vidas não saberem governar.
Num texto introdutório como este, seria deslocado desdobrar o praticamente
infindável rol de exemplos que, com a maior das facilidades, poderia
seguir-se.
Mas deixaria,
outrossim, diminuída a triste realidade não referir aquela que acaba por ser,
nos tempos que correm, porventura a mais eloquente e grave demonstração do
absoluto contrário deste frio mas, desgraçadamente, cada vez mais acertado
arrazoado positivista.
Encontramo-la na atitude
lamecha, no monumento ao facilitismo - não confundível com liberalismo -, à
irracionalidade, ao desnorte e à falta de estratégia e, consequentemente, à
falta de firmeza nas sedes legislativa e executiva do Estado Português,
plasmados no pouco esclarecido, pouco sensato e nada oportuno
aliviar das medidas de contenção da pandemia de COVID-19*) durante o período natalício do ano de 2020.
Um dos maiores pecados da Humanidade é a eterna propensão para se maravilhar
até com o mais ínfimo dos seus feitos, e os políticos portugueses ficaram,
quase todos eles, ingenuamente – ou convenientemente – extasiados com o
exemplo, o milagre da primeira vaga, confundindo o
atordoamento pelo medinho rasteiro e inconfundível que fez os ditos
portugueses em estado de choque ficar meia dúzia de semanas em casa a
maldizer a triste sina, com a lição de civilidade e de cidadania que não
deram porque aquilo que não tem ninguém pode dar. A hipocrisia deste civismo bem se viu nos meses que se seguiram, com
as toalhas de praia coladas umas às outras, as festarolas, as jantaradas,
enfim, um Verão como qualquer outro, para gáudio do inimigo silencioso que
tanto anda na praia, como em casa, como onde quer que um hospedeiro
curta a vida.
Se o tão propalado
milagre cívico*) o fosse mesmo, teria, bem antes do segundo confinamento, a quantidade de
novos casos naturalmente baixado mediante a mera divulgação das recomendações
emitidas – apesar da trapalhada comunicacional que as caracterizou -, e não à
bruta quando,
depois do Natal, tudo estava já perdido*), Portugal tinha ascendido ao primeiro lugar na escala da asneira e,
sobretudo, começou, junto dos cívicos governados, a constar que estavam
as
forças policiais a autuar a sério e as coimas a doer*).
As coisas não acontecem porque a gente quer: acontecem, porque as fazemos acontecer, e, se os políticos existem, é
porque as pessoas necessitam de quem as governe, de quem por elas faça o que
não sabem fazer. Em lugar de
confiar em quem precisa de ser governado – em boa parte dos casos por, sem
os irresistíveis créditos bancários e não tão bancários, nem a sua vida
privada saber orientar -, um governo deve analisar os dados, ouvir,
refletir, ponderar. Depois,
decidir tendo em vista o bem objetivo da generalidade dos governados, e não
acarinhar a hipócrita pieguice de quem diz morrer de saudades dos velhos em
cima de quem não põe a vista desde o anterior Natal; e isto aplica-se não só aos governos, como a quem lhes faz oposição e
concordou com a abstrusa decisão de desconfinar, talvez “por prevalecer o número dos votos mais que o peso das razões”.
3. Da Improvável Verdade
Não é verdade que as probabilidades interessem só aos jogadores. Nem principalmente, até.
Dado que a certeza absoluta não existe, jamais qualquer governo poderá
basear nela a sua atuação. Governar é gerir probabilidades, pelo que é inadequado e incompetente o
governo que nelas não acerta e se desculpa por o Futuro não poder
prever.
Os jogadores baseiam as probabilidades deles em dados inconsistentes,
reconhecidamente aleatórios e que só proporcionam ganhos a quem tem uma
grande falta de azar. Já dos
governos exige-se que planeiem partindo de hipóteses sustentadas em
informação científica proveniente das mais diversas áreas do conhecimento e
propiciadora de expetativas realistas de sucesso incomparavelmente maiores
do que as de qualquer jogador.
Exige-se, também, que ajam: de nada interessa um governo que parece achar que, se deixar a janela
aberta, a mosca acabará por sair. A mosca, talvez. O vírus, não
sai.
Eram sobejamente badaladas as nefastas consequências da
forma hiperliberal com que certo país de dimensão semelhante ao
nosso encarou a pandemia*), adotando táticas de pseudo-combate consideradas tão escandalosamente
ineficazes que
as mais altas personalidades do Estado tiveram, depois, que se desculpar*) – apesar de o escandaloso resultado ser, em termos agregados, muito
próximo do português, pelo qual ainda ninguém ouvi desculpar-se.
Por cá, existia, desde meados do Verão, sério e fundado alarme da
comunidade científica quanto a novas vagas e a mais contagiosas e mais
letais estirpes. Relatos não
faltavam do ambiente vivido em Portugal de costas para o vírus, sempre de
grande bonomia e descontração.
Tudo isto recomendava que, nas diversas vertentes, muito maiores restrições
à atividade e à liberdade por via legislativa fossem impostas a fim de
evitar a catástrofe social e económica que se seguiu ao confinamento dos
primeiros meses de 2021 e relativamente à qual, à data em que escrevo,
ninguém tem, ainda, a mais pálida ideia da verdadeira dimensão.
O facto de tão eficaz se haver revelado o confinamento cumprido logo a
seguir ao Natal demonstra bem que, tivessem sido tomadas medidas respeitando
os alertas inequívocos da generalidade da comunidade científica, teria ele
funcionado - e poupado sequelas e vidas – no período do Natal. Em claro detrimento da vida e da saúde, optou-se, ao invés, por proteger a
educação, a economia e a imagem, com base na conveniente tese
contrária defendida por poucos ou por um só cientista, contra os muitos
restantes.
Consequentemente, pouco ou quase nada foi feito, quiçá na esperança pueril
de que as coisas se resolvessem; e, se algo corresse mal, sempre haveria um ou outro cientista subserviente,
desalinhado ou criativo cujas teorias incompreensíveis para a
esmagadora maioria poderiam ser desenterradas em defesa do indefensável
- como lá por fora acontecera.
Resultou, pois, inevitavelmente desastrosa a clamorosa cedência natalícia às
coisas do coração e da eleição, em intolerável detrimento da razão, prova
acabada de que, tal como os vírus, a demagogia está por toda a parte, e com
idêntica ou maior capacidade de se replicar.
Acontece que, em democracia, mesmo a demagogia – aqui disfarçada de incuráveis
otimismo e confiança – não pode servir para dissimular a verdade. Asneira feita, só mesmo não sabendo o que é governar e gerir – nomeadamente
a comunicação - poderá alguém procurar justificar-se com pérolas como “planeámos, mas não para uma coisa desta dimensão”, ou “se soubéssemos da variante inglesa, teríamos endurecido o Natal”.
Sabiam, sim, já que desde Agosto se não falava de outra coisa. Só não souberam de forma efetiva, porque não quiseram, porque não
lhes conveio saber; mas, não
faz mal, não é feio, já que talvez tenha alguma razão quem escreveu
que “a linguagem da política é concebida para a ocultação da verdade”.
Não nos esqueçamos no entanto de que, por mais forte que seja o poder, a
Incapacidade para admitir o erro é sinal de bem fraca autoridade.
4. Demagogia Pura e Dura
Existe, é verdade, a promessa eleitoral de se ser fiel a determinados
princípios e de seguir uma também determinada linha política – além de ser
recomendável honrar eventuais cedências pré ou pós-eleitorais. Mas, tal como acontece com a generalidade das obrigações, honrar um
compromisso apenas é exigível se se mantiverem as condições em que é
assumido: se um edifício arde
ou colapsa, não podem os inquilinos legitimamente esperar que os
proprietários mantenham os contratos de arrendamento – os quais, aliás, a
própria lei se encarrega de fazer caducar.
Como podem, pois, num quadro de sucessivos colapsos dos edifícios social e
sanitário, de imposição de estados de calamidade, de emergência e sei lá
mais de quê, alguns desmiolados dizer “nem menos um direito por causa da pandemia”, dichote impróprio entre tantos outros que palavras nem encontro para
qualificar?
Como, na mesma linha e para procurar conservar uma nada convincente
aparência de igualdade onde não é devida e para fazer o frete a
radicais sem argumentos válidos que esbracejam para se manter à tona da
representação parlamentar, pode um governo supostamente moderado insistir
em, quando há muito se sabia da proliferação de novas e mais contagiosas e
letais estirpes do vírus, manter em funcionamento um sistema de ensino
presencial que ocupa cerca de um quinto dos portugueses ? Especialmente sabendo-se que o alardeado milagre cívico não passa de uma
balela e que dois milhões de seres humanos, em muitos casos sem máscara,
distanciamento social ou uma borrifadela de gel, entre a escola e o pavilhão
das festas foram por aí largados a passear ?
Há que admitir que a génese da desigualdade não esteja no governo, neste ou
naquele; mas onde quem manda
inequivocamente falha a responsabilidade de a atenuar é em, depois de,
fanfarronando, se propor gastar meio milhar de milhão de euros a
informatizar quem, quando esta história triste começou, ainda não tinha
computador, preferiu apostar que a tal mosca acabava por sair da sala e não
os comprou, fazendo com que as vítimas da desigualdade continuassem a não os
ter quase um ano depois.
Não é possível deixar de evocar aquela
história do Magalhães*). Não o Fernão, o outro, que,
há anos atrás, também ia ser distribuído como a tábua de salvação da mais
desfavorecida população… Viu-se.
A conclusão pela desigualdade, na telescola, por parte de quem computador
não tem parte do princípio de que as aulas servem para alguma coisa, apesar
da indisciplina lamentável, da duvidosa qualificação de parte de docentes
que resistem à própria avaliação, da instabilidade e aleatoriedade dos
programas deixados à sorte, cada um fazendo o que pode para ensinar o que
bem entende por aqui e por acolá – mesmo coisas que não tinha nada que
ensinar.
Esquece-se, porém, quem manda de que, mesmo com aulas presenciais, muito
maior desigualdade ocorre, a todo o tempo e há muitos anos, por falta de
meios informáticos, por quase absoluta falta de acesso à mais eficiente
forma de aquisição da informação com que os ensinamentos do professor podem
ser complementados.
A preocupação dos órgãos legislativos e governativos deveria, mesmo antes
de a pandemia emergir, estar em
atempadamente distribuir os tais computadores*) – Magalhães ou outros -, e não em, uma vez mais atirar poeira demagógica aos
olhos de quem não pode deixar de contemplar tão grande desilusão, enquanto se
enterra, em gigantes empresariais moribundos ou falecidos, muitas vezes mais
do que o tal meio milhar de milhão.
“De uma maneira geral não há, neste país, quem realize. Pensa-se e divaga-se com facilidade mas, chegados à hora das realizações,
das provas reais, poucos são os que resistem à seriedade dos problemas”. Ao que parece, sempre
assim foi, já que, decididamente, este pensamento não nasceu num adepto da
liberdade, quase levando a crer que, de alguns dos atuais males em
democracia, se padecia também na ditadura de então.
5. Notas Finais sobre a Desgovernação
A missão dos políticos reside em elaborar leis que, naquilo que é prático,
pela sua racionalidade, razoabilidade e clareza contribuam para eliminar o
receio dos nossos corações.
Não basta a um governo ter uma certa razão: quem se propõe gerir os
destinos de uma nação proclama a própria aptidão para, em tempos fáceis ou
difíceis, fazer o que é certo, após avaliar com objetividade e
isenção.
Imprevistos, sempre os houve, mas ter de improvisar, de gerir a mudança em
nada se assemelha a desgovernar. O desgoverno apenas acontece quando falta o substrato, quando o que parece
não é, e o que é lá não parece estar. Inexoravelmente, a ausência de um sólido arrimo na razão conduz ao primado
da politiquice, do
clientelismo político e, acima de tudo, ao pânico do futuro impacto
económico e dos dissabores que a qualquer político ele traz.
Por parte dos desgovernados, tal falta leva à insegurança e à incompreensão
do sentido das normas, uma e outra decorrentes da constante inflexão do
sentido das decisões, confusamente explicadas por falas desnorteadas e
disparatadas, que nada têm a ver com verdadeiros discursos, já que, longe de
dar forma a quem racionalmente discorresse sobre as situações apresentadas,
amiúde mais não plasmam do que desesperadas, impreparadas e ziguezagueantes
tentativas de encontrar adequado itinerário cognoscitivo que conduza a uma
sábia decisão. Mais não conseguem, ao invés, do que atirar, àqueles
que os contrataram para que os governassem, contraditórios mosaicos de um
caleidoscópio de decisões fatalmente ineficazes, quantas vezes arbitrárias e
de indiscerníveis sustentáculos político, administrativo e intelectual.
A democracia não é, por definição o regime em que um povo vive condicionado
por indivíduos sem estratégia que se vão equilibrando no bote do poder
mediante uma gestão da coisa pública eminentemente casuística, pintalgada de
tiques autoritários e constantes remendos legislativos. Uma coisa é ser um político hábil; outra, um bom governante. O
primeiro assenta que, nem uma luva, ao próprio e ao partido; o segundo, serve muito melhor à República e à população.
Jamais os ideais políticos, mas apenas a competência, o empenhamento e o
bom senso alguma vez governarão eficazmente um país, tornando-se evidente
que a vacuidade crescente do ato político decorre da cada vez menor
competência para governar, materializada na falta de objetividade e de razão
de ser do mesmo. Tal falta é o
fruto amargo de uma visão global deficiente, de uma estratégia
incipientemente esboçada e conducente, a prazo, à generalização do caos que
muitos confundem com a verdadeira liberdade, com uma fantasiosa igualdade,
direito que, despudoradamente, alguns pretendem estender muito além daquilo
que é igual.
Sobretudo em situações de catástrofe, nada resolve a inércia atuante,
processo quiçá inventado e desenvolvido em Portugal. “Omnia videre, multa dissimulare, pauca corrigere“ poderá ter
funcionado no século VI; mas,
agora, decididamente não. Não,
quando a consequência imediata de olhar para o lado ou de confiar na sorte é
a perda de vidas pela qual, ainda que por negligência, um governo é
responsável e que, contrariamente ao prejuízo económico, nada poderá fazer
para proporcionar reparação.
A mais sólida manifestação do poder é não ter de o exercer, mas tal
milagre apenas é possível depois de as seringas da educação e da
formação terem feito jorrar para dentro de uns setenta por cento da
população a vacina contra a portuguesinha propensão à sistemática e
espertalhona violação de determinados e indispensáveis princípios, só assim
se conseguindo, talvez, uma razoável imunidade de grupo com a
inoculação.
Porque, princípios, há, sim. Muitos, sérios, e estruturantes de qualquer país civilizado. O menor de todos não será que, com o que é dos outros, como a saúde pública
e a coisa pública, não se brinca. Faz-se o que se tem de fazer. Se não se sabe o que fazer, põe-se lá outros a governar.
Nenhum governo pode passar a vida a fazer a vida esperar.
Sic transit gloria mundi