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sábado, 17 de abril de 2021


As Portuguesas e os Portugueses

"A gramática destina-se a fazer com que cada um entenda o que o outro está a querer dizer-lhe;
e o que diz a linguagem pseudo-inclusiva - mas, na verdade, divisionista - é que
existem dois tipos bem distintos de seres humanos, e não um único e indiviso,
ao qual uma regra manda referir, no plural, como  portugueses,
como a consulta da mais elementar gramática rapidamente esclarecerá"


   1. Perdeu-se a Noção do Ridículo
   2. Partidos Mendicantes Apoiam a Violação das Normas Constitucionais por Desnorteados Radicais
   3. A Gramática como Instrumento de Manipulação Política


1. Perdeu-se a Noção do Ridículo

...ou, para observar a regra da cortesia, “os portugueses e as portuguesas”, se for uma senhora a falar.

Quem se dedica à causa das animaizinhas e dos animaizinhos, não deverá, também, esquecer-se de dizer “as gatas e os gatos”, “as cadelas e os cães” e por aí fora, não vão as fêmeas dessas espécies achar que nos esquecemos delas; ou as donas e os donos das ditas fêmeas assim pensar;  e quando temos um aquário cheio de peixas e de peixes… o corretor ortográfico queixa-se com um impiedoso sublinhado encarnado.

Como, decididamente, nada disto vem de uma generalizada ignorância da gramática – designadamente por parte da Exmª Linguista que coordena um dos partidos que mais insistem nesta coisa -, todas estas alusões específicas aos elementos femininos não passam, desde a primeira que escrevi, de uma redundância patetoide e deliberada, apenas explicável como tentativa de manipulação comunicacional dos ânimos com o fim exclusivo e popularucho de angariar, quando muito, mais um punhado de votos junto de ingénuas apaixonadas e de ingénuos apaixonados por causas que não chegam a sê-lo, ou de almas hipersensíveis ao politicamente correto a ponto de se embevecerem com coisas destas.

A linguagem neutra em português não é arrimada na gramática, que sustenta, como bem se sabe, que o plural de um conjunto – ainda que parcialmente enumerado – se forma no masculino sempre que, pelo menos, um elemento deste género o integre.  Isto não é discriminação, não é sexismo, não é política: é gramática pura e dura*); e não é a política, mas a gramática, que deve determinar a nossa forma de escrever e de falar.

Não deixa, outrossim, de ser disparatado que esta forma rebuscada e bacoca de gastar mais tinta com descabidas redundâncias provenha, se a memória me não trai, da metade esquerda da bancada parlamentar, na qual tem assento, entre outros, o partido que teve, como destacado militante, o iluminado ser que promoveu e fez aprovar a patetice ortográfica vigente*), cuja única virtualidade parece ser, paradoxalmente, a de economizar uns quantos caracteres de tinta – boa parte dos quais indispensável à boa leitura e à compreensão do que se lê - que, aqui e ali, por artificiosa síncope, se foi tratando de amputar, diligência essa que a manipulada e estafada verborreia feminista de agora, obrigando-nos a gastar mais tinta, vem contrariar.

Como sou exagerado, dei comigo a pensar por que razão não teria o Hino Nacional*)sido, ainda, alterado em consonância com a nova moda: “Heroínas e heróis do mar” e por aí fora, assim irremediavelmente arruinando a métrica - e obrigando, mesmo, a escolher outra música, já que o Autor*) da atual não está entre nós para a poder alterar.  Heroínas e heróis”, “as tuas egrégias avós e os teus egrégios avôs”, quando fosse cantado por elementos masculinos; o inverso quando fosse cantado por elementos femininos e, num coro… a confusão generalizada. 

Lá acabei por concluir que a ideia era parva, quanto mais não fosse porque as egrégias avós não andavam embarcadas em cascas de noz*), privilégio esse então reservado às também egrégias – e heróicas - caras metades.

Convenhamos que, além de gramaticalmente incorreto, “portuguesas e portugueses” se apresenta excessivo na leitura.  No entanto, na linguagem falada de umas quantas políticas e de uns quantos políticos que não se importem de alardear chã ignorância a troco de um poucochinho de popularidade acrescida junto de setores mais permeáveis ao discurso demagógico…  por que não?  Até se faz, por aí, figuras bem piores, como aquela pirosice do Cartão de Cidadania*).  Ou deveria ser Cartona de Cidadã e Cartão de Cidadão?  Ou talvez a solução esteja na gíria das redes sociais*):  Cart@o de Cidad@o?  Sim, o @ não admite – ainda – o til.  É pena…

Já agora: como se lê est@ cois@?

Vendo bem, “Portuguesas e portugueses” poderá não ser, gramaticalmente, um pecado capital.  Mas onde, em qualquer ortografia do Mundo – mesmo naquela idiotice do acordo ortográfico – encontramos portugues@s, a não ser na linguagem abstrusa daquela cena das redes sociais?  Que tal, então, a ideia também abstrusa de substituir Direitos do Homem por Direitos Humanos?  O que muda, neste caso, se a raiz homo da nova palavra é a mesma da anterior?  Talvez Direitos Mulieranos e Humanos, então?

Se anthropos, em grego, significa homem, que nome irão dar, a partir de agora, à antropologia?

Mas anda tudo doido, afinal?

A propósito: já alguém ouviu um desses defensores desta desgraçada coisa dirigir-se-nos de viva vós dizendo "Cares Portugueses"? Ou espera-se que o ridículo seja só para nós?


2. Partidos Mendicantes Apoiam a Violação das Normas Constitucionais por Desnorteados Radicais

À míngua de resultados eleitorais dignos desse nome por parte da amálgama de movimentos radicais de esquerda, talvez toda esta antigramatical trapalhada acabe por captar mais uma meia dúzia de votos junto de quem mobiliza boa parte dos neurónios que lhe restam a magicar o que irá tirar da despensa para, ao magro salário, poder surripiar aqueles preciosos dez por cento indispensavelmente destinados à rotina quinzenal de nail art*)- em inglês, para sermos chic como gostam.

O problema com as radicais e com os radicais é serem obrigadas e obrigados a defender até ao fim determinada construção intelectual erigida em torno de um certo ideal ao qual sacrificaram toda a sua energia e, por vezes, toda a vida.  Não podem ceder um milímetro que seja, pois, fazer perigar essa construção, questionar esse ideal, seria, para elas e para eles, o mesmo que questionar a utilidade da sua própria existência; e há quem pense que não há maiores radicais do que as idealistas e os idealistas, principalmente as e os que defendem as minorias contra as maiorias.

Ocorre, porém, que as mulheres não são uma minoria*).  Bem pelo contrário:  são, em Portugal, uma – embora ligeira – maioria; e acontece, também, que os indivíduos de um sexo dizerem mal dos do outro é prática habitual desde tempos imemoriais, por mera picardia e sem que algum prejuízo sério seja conhecido como decorrente dessa prática.  Ademais, sendo este maldizer próprio, quer das mulheres, quer dos homens, ao não se intrometer está o Estado Português simplesmente a dar cumprimento à alínea h) do artigo 9º da Constituição*), que o obriga a “promover a igualdade entre homens e mulheres”.

Entre parênteses, direi que, como tantas outras, esta disposição constitucional corre sério risco de ser considerada, em si mesma, discriminatória, uma vez que refere primeiro os homens e só depois as mulheres.  Haverá, assim, que rever e substituir este discriminatório preceito machista por “promover a igualdade entre @s portugues@s de ambos os sexos” - fazemos figura de parvos em tantas coisas que, mais uma, menos uma, a ninguém fará grande impressão.

Fechando os parênteses, e com o devido respeito, aquilo que diz a Constituição japonesa interessa-me tão pouco como o que diz a Constituição portuguesa poderá interessar ao japonês médio.  Mas já me interessa, e muito, que algumas portuguesas e alguns portugueses achem muito bem que, semanas atrás, o Presidente do Comité Olímpico Japonês tenha sido forçado a demitir-se*), nada mais, nada menos, do que por ter dito mal das mulheres – por, na sua opinião, tenderem a retardar o andamento dos trabalhos ao falar bastante mais do que os colegas homens, nas reuniões.

Por alguma razão que desconheço, é verdade que a Constituição da República Portuguesa não reconhece, expressamente, a liberdade de expressão individual, a qual parece ser prerrogativa exclusiva da comunicação. Não obstante, o seu artigo 16º é bem claro ao dispor que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, e que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem*).

Por força do mesmo artigo 16º é, assim, aplicável o que diz o artigo 19º da Declaração Universal: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

O n.º 2 do artigo 13º da Constituição portuguesa impõe que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão (…) do sexo (…)”.  Conjugado com quanto antecede, quer isto dizer que nem as mulheres podem ser impedidas de dizer mal dos homens, nem os homens podem ser impedidos de dizer mal das mulheres.

Pretender que não se pode opinar livremente acerca das mulheres é desmerecer a nobre motivação e a corajosa atuação dos movimentos feministas*), nascidos para promover a igualdade de direitos entre os sexos e para pôr cobro aos maus-tratos de que eram vítimas as mulheres; não, decididamente, para fomentar a coscuvilhice e o diz que disse, e muito menos para coartar o direito de expressão dos masculinos.

O Mundo foi criado por um homem ou por uma mulher?  Criador masculino ou Criadora feminina?  Embora, com esta parvoíce linguística supostamente feminista, passem o tempo a discutir o sexo dos anjos, uma tal sandice parece que ainda ninguém se lembrou de suscitar…


3. A Gramática como Instrumento de Manipulação Política

A gramática destina-se a fazer com que cada um entenda o que o outro está a querer dizer-lhe; e o que diz a linguagem pseudo-inclusiva - mas, na verdade, divisionista*)- é que existem dois tipos bem distintos de seres humanos, e não um único e indiviso, ao qual uma regra manda referir, no plural, como  portugueses, como a consulta da mais elementar gramática rapidamente esclarecerá.

Os excessos só levam a afastar cada vez mais as pessoas umas das outras: a que olhem umas para as outras como um incómodo, ou como alguém de menor capacidade que se tem de, como se de crianças se tratasse, olhar com carinho e proteger. A vitimização desrazoável e descabida equivale a um autêntico atestado de menoridade passado, paradoxalmente, por quem pugna por se libertar – ou, mais propriamente, por se evidenciar – com a preciosa ajuda das revistas que, para fomentar a igualdade e o equilíbrio, publicam artigos sob o título “As 100 Mulheres Mais Poderosas do País*).

Mas não tem, mesmo, esta gente coisas mais interessantes com que se entreter, coisas verdadeiramente importantes a tratar?  Têm, mesmo, de perder tempo a assassinar a sangue-frio a língua que falamos, numa terra onde tanto se fala e, havendo tanto para fazer, tão pouco se faz?

Só não discriminando garantimos que os outros se não sintam discriminados: não, mediante a utilização de uma assim chamada linguagem inclusiva,  cujo primeiro e imediato efeito é, paradoxal e inevitavelmente, nada mais, nada menos do que lembrar constantemente ao discriminado que, efetivamente o é, que contra ele existe discriminação.  Não passa, assim, de tremendo e oportunista disparate, esta linguagem inclusiva, esta politiquice primária, parola e... contraproducente.

Agora, muito à séria (que horror!) e muito a sério…

Escreveu um filósofo suíço do século XVIII que “no que têm de comum, ambos os sexos são iguais; no que têm de diferente, não são comparáveis*).

Ora, além de ser manifesto erro tratar como igual o que é tão diferente como as Portuguesas e os Portugueses, perante tão flagrante ausência de argumentação válida querer mudar, através da forma de nos exprimirmos - a assim chamada linguagem inclusiva -, o que vai nas cabeças das eleitoras e dos eleitores afigura-se caminho bem pobre, muito redutor, de duvidosa eficácia, quase subversivo, até;  sobretudo na cabeça das eleitoras prospetivas e dos eleitores prospetivos, assim se deseducando a juventude na direção pretendida por umas quantas e por uns quantos… poucas e poucos, esperemos.

Nada disto passa, evidentemente, de uma forma sinuosa mas despudorada de manipulação dos espíritos, mediante a inversão da tendência natural e saudável para ser a língua a acompanhar, a par e passo, a evolução da cultura e das mentes, como quase sempre aconteceu e penso que, no respeito pelos princípios e pelas regras gramaticais, deveria continuar a acontecer.

Ou será que, perante a generalizada resistência à mudança, não passará toda esta fantochada do canto do cisne, do grito de desespero de quem cada vez encontra menos eco para a sua deriva para os temas fraturantes, num derradeiro e patético atirar de poeira aos olhos das menos esclarecidas e dos menos esclarecidos, das menos sensatas e dos menos sensatos, impondo-lhes expressões inventadas à revelia da gramática e que, com a realidade, pouca ou nenhuma correspondência acabam por ter?

Mudar o Mundo é difícil, mas mais difícil ainda sempre será tirar a derradeira tábua de salvação da mão de um político prestes a afundar-se.  Ou de uma política.

Convém, não entanto, que as políticas desesperadas e os políticos desesperados não esqueçam aquilo que, apesar de tudo, boa parte dos seres humanos ainda sabe: que uma mulher que se comporta como um homem tem, para um homem, tanto interesse quanto para uma mulher tem interesse… um homem que se comporta como uma mulher.

Portuguesas e portuguesas significa que existem mulheres e homens; e que não são iguais.

sábado, 10 de abril de 2021


Sexo É do Género Masculino

"Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu,
não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto,
preferindo-lhe o tão ambíguo termo 
género na expressão que diz que os direitos
e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais"


   1. Pressupostos
   2. Primeira Apropriação Lexical
   3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação
   4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)
   5. Resumindo…


1. Pressupostos

Não valeria a pena investigar se a investigação científica não conduzisse à descoberta de novas realidades e de conhecimento retificado ou acrescentado quanto àquelas que julgamos conhecer; tampouco se, convidando o registo dessa evolução à introdução, na linguagem falada e escrita, de novos conceitos, escolhêssemos não os adotar.

Nesta adoção de neologismos ou adição de significados a termos existentes sempre se haverá, porém, de assegurar que o léxico próprio de uma área do conhecimento não irá, por erro, incúria, indiferença ou outro vício do processo, afetar o rigor vocabular de outra área - ou de todas as outras.

Quando falamos ou escrevemos, importa sermos precisos e inequívocos na aplicação dos conceitos; importa saber não só o que queremos dizer, mas o que estamos, efetivamente, a dizer.  Há, pois, que usar da maior precaução, sempre que, em lugar de investir na formação de novas palavras, uma área do conhecimento optar pela apropriação de termos já utilizados por outras ou, mesmo, pela linguagem do quotidiano, muito especialmente se se tratar de palavras já de si inquinadas de vasta ambiguidade, seja ela inerente ao caráter genérico do conceito único que exprimem, seja à multiplicidade de significados que lhes possa ser atribuída.

Em tais condições, agravar a polissemia, acrescentando significados ou utilizações possíveis a termos deles sobrecarregados, mais longe não levará do que ao incremento da dúvida nociva e a uma crescente degradação da clareza, a ponto de nos arriscarmos a cair na situação ridícula de, ao tentar, fechada sobre si, enriquecer próprio o léxico, determinada área do conhecimento acabar por adotar vocábulos de significado já tão difuso que, além de nada de bom acabarem por acrescentar à clareza do discurso científico, inexoravelmente acabarão, antes, por fortemente a prejudicar.

Assim parece ter acontecido, no caso que aqui me traz, com a Política e com as Ciências Sociais.

 

2. Primeira Apropriação Lexical

Quando, num formulário, existe um campo “Sexo:”, ninguém espera que o preenchamos designando o órgão reprodutor com que nascemos, ou com que, mais tarde, tivermos escolhido ficar:  o que se espera é que, mediante feminino ou masculino, indiquemos qual o conjunto a que pertencemos atendendo às diversas variáveis primárias e secundárias que, sexualmente, nos caracterizam.

Mas, sexo, é uma coisa; outra, o comportamento sexual *). Quanto a este, não há extremos ou opostos, nada é preto ou branco, ou expresso em zeros e uns:  há que considerar infinitos tons de cinzento e números decimais nos quais cada um de nós se situa, pois, tal como não há gente cem por cento boa ou cem por cento má, também não há absolutos na caracterização da identidade sexual de cada um e, muito especialmente, do seu comportamento.

Assim, conscientes de que, ao nível do comportamento e a despeito do que é fisicamente aparente, as coisas são tudo menos simples, parecem as Ciências Sociais ter, num dado momento, sentido a necessidade de introduzir, no seu léxico específico e em benefício exclusivo do mesmo, um novo conceito destinado a caracterizar, já não os dois possíveis conjuntos de caraterísticas sexuais biológicas propriamente ditas, mas algo que poderemos, em síntese, definir como o que, inerente à sexualidade, se passa no plano dos sentimentos e das emoções do ser humano;  e também, a necessidade de incluir cada indivíduo numa classificação quanto à forma como, em virtude dessas emoções e desses sentimentos, se irá comportar.

De forma porventura ligeira e pouco refletida, ter-se-á, então, decidido acrescentar aos significados do termo género estas combinações de sentimentos, emoções e comportamentos de raiz sexual que visam, a jusante, o desenho de modelos sociais e culturais baseados nos múltiplos decimais e tons de cinzento que poderão assumir, designadamente na intensidade e na forma como cada pessoa se identifica com um ou outro padrão comummente associado a indivíduos de um ou do outro sexo biológico, intensidade e forma essas que, como um todo, por identidade de género *) as Ciências Sociais terão decidido designar.

Tal escolha aconteceu, porém, em claro detrimento do rigor dos léxicos da Biologia*) e da Linguística*), que, como veremos, não se terão as Ciências Sociais coibido de prejudicar.


3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação

O prejuízo para o léxico da Biologia aconteceu porque há muito que o animal humano está, como qualquer outro ser vivo, sujeito à classificação biológica*), a qual pode, de forma simplificada, ser hierarquicamente enunciada como domínio, reino, filo, classe, ordem, família, género e espécie – que são, no caso dos humanos, respetivamente Eukariota, Animalia, Chordata, Mammalia, PrimateHominidae, Homo e Homo sapiens.

Só depois, na base da pirâmide, podem os indivíduos da maior parte das espécies ser, complementarmente, classificados de acordo com o sexo biológico que apresentam, feminino ou masculino.

Daqui se extrai, quanto ao ser humano, evidentes conclusões:

1.    de que a sua classificação biológica quanto ao género é única (Homo), e não dupla (feminino e masculino);

2.   de que a divisão em feminino ou masculino se refere, exclusivamente, ao sexo biológico, e é meramente complementar.

Existe, porém, outra área do conhecimento diretamente lesada pela apropriação feita pelas Ciências Sociais: a Linguística, para a qual Género *) é, inquestionavelmente, uma das variáveis utilizadas para classificar, não só os nomes, como as palavras declináveis que a eles se associam, classificação essa efetuada segundo critérios que, embora numa quantidade significativa de casos se encontrem intimamente ligados às aspetos sexuais biológicos dos seres que alguns substantivos designam, são, na sua maior parte, espontâneas, nascem dos usos, e não de qualquer caracterização biológica de propriedades das quais, amiúde, nenhuma, apresentam.

A palavra árvore, entre tantos outros exemplos, é do género feminino, apesar de haver árvores do sexo feminino, masculino e hermafroditas.  Tampouco se conhece sexo a armário, mesa ou cadeira; e, crianças, há-as dos dois.

4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)

Embora, na linguagem do quotidiano, a confusão deste novo género social com o género biológico Homo seja muito improvável dada a raridade da referência a este, o mesmo se não pode sustentar quanto à confusão com o género das palavras, e isto desde os mais elementares níveis da escolaridade.

Muito mais séria, porém, resulta, inevitavelmente, a confusão crescente entre, por um lado, os géneros biológico e gramatical e, por outro, o género da igualdade de género *), que por sua vez, a Política tem vindo, ao que parece, a colar ao de identidade de género das Ciências Sociais.

Aqui, os objetos da defendida igualdade são as mulheres e os homens – e, naturalmente, os indivíduos de sexualidade mista, por assim dizer -, e a igualdade que se almeja é, ao que dizem, absoluta, embora se trate de uma pretensão cuja simples formulação bastará para que a consideremos um objetivo de validade e, sobretudo, exequibilidade duvidosas. Entre outras razões, que aqui não cabe desenvolver, desde logo porque, sendo os indivíduos dos sexos feminino e masculino dotados de características biologicamente diferentes, pretender dispensar-lhes igual tratamento, a todos os níveis de todas as vertentes da vida, seria permanentemente violentar uns e outros; ou seja, precisamente o contrário daquilo se diz defender.  Já muito diferente e premente é, naturalmente, a questão da igualdade de direitos e de deveres entre todos os indivíduos, independentemente da sexualidade - do sexo das pessoas, e não do género das palavras -, imperativo estruturante de qual sociedade dita civilizada e há muito plasmado na Constituição da República *).

Falta, evidentemente e em muitos casos, transpor para a prática tal desígnio.  Mas isso apenas poderá ser conseguido mediante a evolução das mentalidades, para cuja educação não parece necessária ou, minimamente, eficaz a prévia degeneração do significado de género em prol de algo – o sexo – que tem, desde tempos imemoriais, uma precisa e inequívoca correspondência vocabular.

Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu, não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto, preferindo-lhe o tão ambíguo termo género na expressão que diz que os direitos - e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais.

Apenas conheço o género humano. Género feminino e género masculino não passam, para mim, de impropriedades vocabulares.

5. Resumindo…

Ø  Sexo é uma variável de classificação biológica dos seres vivos.

Ø  Género, aplicado a seres vivos, é uma unidade taxonómica que, no caso dos seres humanos, corresponde, unicamente, a Homo.

Ø  Para a gramática, sexo é do género masculino, e o género de um nome serve para, com este, outros termos declinar.

Ø  Em lugar de deitar achas na fogueira do facilitismo e da confusão generalizada, bem fariam as Ciências Sociais em investir algum tempo na procura, para identidade de género, de um novo conceito, de uma alternativa clara e sem efeitos colaterais.

Ø  Quanto à igualdade prosseguida pelos políticos, não necessita de neologismos:  sexo diz muito bem aquilo que querem significar.

Porque não é verdade que… “Tanto faz!.

- x - x -

A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará

sábado, 13 de março de 2021


Refugiado e Refugiados

"Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu
que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas,
bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará,
globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.
Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento
"

Imaginemos um país; um país europeu de dimensão relevante, desenvolvido e estimado pelos seus pares.

Imaginemos, também, que, nesse país e por circunstâncias que aqui não vêm ao caso, um governante de topo, um abastado rei, por exemplo, se vê na contingência de, fazendo uso do seu lauto pé de meia e da generosidade ou do pagamento de favores por parte de alguns amigos, ter de se exilar*), de abandonar a sua terra, rumando a paragens mais a Oriente para por lá se refugiar.  Tendo em conta a História recente da política europeia, é um cenário que não será difícil idealizar.

A esse governante, seria - sem hesitação, em condições excecionais e ao nível adequado a alguém com a sua anterior ocupação - facultado o acesso a todas as estruturas e serviços dessa sua temporária terra de adoção, desde os fornecimentos básicos de eletricidade e água, até aos cuidados de saúde, públicos e privados; e, se de idade avançada, aos necessários cuidados e tratamentos complementares.

Na nova terra, ninguém se espantaria, ninguém se insurgiria ou se sentiria lesado pelo luxuoso tratamento dispensado, pelo Estado e pela iniciativa privada:  uns, porque nem chegariam a saber o que se estaria a passar;  outros, porque se identificariam com o ilustre refugiado e para os próprios esperariam, em idênticas circunstâncias, iguais benesses;  por fim, os palermas que até se sentiriam honrados com tão distinta companhia e lamentariam, consternados, o facto de a veneradíssima personagem não poder regressar ao seu palácio para o Natal familiar.

Pensemos, agora, por um instante, num bote vindo de África, a transbordar de pessoas menos ilustres, desconhecidas, anónimas, desesperadas, sem Natal, a lutar pela sobrevivência, em fuga de quem, por razões políticas ou outras, os escorraçara da sua terra natal; fugindo da guerra, mas também da perseguição política ou religiosa, da miséria indizível; sabendo que parte deles nem chegará, porque o mar não irá deixar.

A estes refugiados pobres*), muitos portos batem com a porta na cara, acabando eles, por vezes, por se virar para um pequeno país a Norte das suas terras natais, logo acima e um bocadinho ao lado do Mediterrâneo, onde, mais coisa, menos coisa, dez milhões de seres humanos têm, entre muitas outras benesses, acesso a um serviço de saúde amiúde elogiado, porquanto fracamente financiado e, quanto a recursos, deficitário;  um serviço de saúde que, apesar de tudo, não desespera quando mergulhado numa pandemia, e lá vai arranjando meios e forma de acolher, de tratar e de recuperar as pessoas que o bote traz das paragens de onde foram escorraçadas, e que nesse pequeno país mais a Norte buscam refúgio.

Os refugiados dos botes são muitos?  Vêm em grande quantidade   Não.

Em pequenas embarcações, chegam a esse pequeno país umas cinco pessoas, em média, por dia.  Das minúsculas cascas de noz, veem os aviões que, aqui e ali, os sobrevoam como a expressão mais visível da crueldade do Mundo. Ignoram que, nesse preciso momento, um outro refugiado veleja, com ar enfadado, não num bote, mas num seu iate, rodeado de amigos, em magníficas paragens.

Será que acolher essas cinco pessoas por dia, cuidar delas, acarinhá-las será uma carga assim tão grande para o sistema de saúde desse pequeno país de dez milhões?  Será que o facto de não ter essa gente agora sem terra com o que pagar os cuidados que lhe são prestados justifica ser, por outra gente sem um mínimo de compaixão, mas com acesso a trabalhos parlamentares e a programas televisivos, exposta como parasita, como oportunista, composta por falsos necessitados que consigo até trazem telemóveis?

Será que a permanência dessas pessoas por cá, trabalhando como puderem, irá prejudicar assim tanto a empregabilidade dos nem sempre muito empenhados autóctones? Ainda que inicialmente não especializado ou particularmente bem preparado, será de desprezar o contributo que estes nossos habitantes darão à economia e à cultura do pequeno país que as acolhe?

Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas, bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará, globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.  Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento.

A partir dos dados disponíveis, concluir o contrário revela falta de humanidade, ou que anda por aí tenebrosa desinformação, a ponto de poder fazer esquecer que a maior maravilha do Mundo é as pessoas serem como são.

Aumento da criminalidade?  Claro que nem todos são santos, mas também não são os criminosos empedernidos que alguns querem fazê-los parecer.  Entre os refugiados há de tudo, melhor e pior, tal como de tudo há, também, no tal abençoado cantinho à beira mar plantado.

Em qualquer caso, não pode duvidar-se de que esse pequeno país de dez milhões tem alguma, embora reconhecidamente limitada, capacidade de acolher quem em tão deploráveis condições o demanda; e a responsabilidade varia na razão direta das nossas capacidades e na razão inversa das nossas limitações.

Não se entende, assim, como podem, no tal pequeno país, pessoas ditas de bem insurgir-se contra o acolhimento de meia dúzia de casos em cada mês*), manifestando-se pela imediata decisão de os deportar. Como pode continuar-se a confundir esta quantidade mínima, residual, que lá consegue desembarcar com o estabelecimento de uma nova rota migratória para quem quer ficar, inerte, a receber bens e serviços do país de acolhimento nada tendo que, por sua vez, lhe dar?

Há coisas que nem em campanha eleitoral se deve dizer.  Melhor dizendo, que, sobretudo em campanha eleitoral, não se deve dizer.  Num pequeno país que se pretende humanista, seria, para qualquer político, bem mais adequado e inteligente exaltar os valores a essa ideia indelevelmente associados.

Tampouco se entende o que leva alguns a associar a esquerda ou direita a decisão de acolher ou deportar, de discriminar positivamente ou de apenas tolerar, quando, independentemente da cor política, a rejeição se deve, fundamentalmente, a egoísmo, orgulho e preconceito, e pouco mais.

Quantos refugiados desses que vêm em botes não seria possível albergar, alimentar e tratar apenas com os milhões que, qual jogador de bola fugido ao fisco, o refugiado de luxo do início destas linhas irá entregar às Finanças do país de origem para um dia o deixarem regressar ao seu sumptuoso palácio sem temer mais pesada pena ter de pagar?

Pois não são estes refugiados seres humanos enquanto tal em tudo iguais a esse abastado velejador noutro país refugiado, apenas diferindo, no que é essencial, pelas condições degradantes e insustentáveis em que lutam para sobreviver?

Não, iguais ao abastado governante, de facto, não são.

São até bem diferentes as razões que os fazem escolher outra terra para morar;  e poucas dúvidas restam de que o próximo bote trará carga humana bem mais válida do que um decadente e rico pobre diabo obcecado por mulheres, pelo dinheiro e por aquilo que com ele poderá comprar.

Sic transit gloria mundi...

* *

Apesar de tudo, convirá ter presente que o acolhimento de refugiados não deve, não pode, pôr em risco funções tão essenciais à sociedade que os recebe - e, inevitavelmente, aos próprios - como é o caso da saúde.