quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022


Tenho de Vir Deitar Água Fora para Ganhar Dinheiro

Esta insólita situação decorre da existência de um contrato, supostamente celebrado entre a Câmara Municipal e uma empresa de abastecimento de água, segundo o qual, a qualquer comerciante que não gaste, mensalmente, pelo menos um metro cúbico do precioso líquido, é aplicada a taxa máxima de saneamento: quarenta euros.

Ora, a maioria dos espaços comerciais não corresponde a cafés, restaurantes ou outras empresas necessariamente mais gastadoras de água, por força de especificidades da atividade desenvolvida. No entanto, e tanto quanto a reportagem da SIC Notícias nos permite deduzir, nos termos do atual contrato,qualquer tabacaria, livraria loja de eletrodomésticos, boutique, tantas outras que, em circunstâncias normais, utilizam a água apenas para a higiene pessoal de quem lá trabalha e para a limpeza do chão todos os meses, todas ficam obrigadas a deitar fora centenas de litros de boa água  apenas para não pagar uma absurdamente elevada taxa de saneamento que resulta tanto mais inacreditável quanto é certo que, quanto menos água se gasta, menos se despeja na rede pública de saneamento.

Ao que parece, o caso dos particulares não é tão escabroso, mas sempre suficientemente oneroso para que alguns habitantes vão a casa de vizinhos não residentes, não apenas para ver se há correio, mas também para, todos os meses, "deitar água fora".

Segundo outro entrevistado, o assunto foi, já, suscitado numa "assembleia" - supostamente municipal. "Sabemos que há secas, que a água potável falta aí a milhões de pessoas, e nós, em Paços de Ferreira, fazemos isto!".

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Claro que podemos pensar que "pois, que maçada, vejam lá" e considerar que alguma coisa se há de fazer e, afinal, apenas afeta uma parte da população.

Não é assim.

A celebração de contratos deste tipo pode acontecer em qualquer autarquia, seja por chã incompetência dos autarcas que celebram os contratos e dos serviços que sobre eles dão parecer ou os propõem, seja por causas bem mais sérias, das quais sobressai, com naturalidade, a possibilidade de casos destes corresponderem a aproveitamentos obscuros de oportunidades oferecidas pela ideia luminosa de alguém que viu o furo e tratou de, em benefício próprio, o aproveitar.

Que razão poderá, de facto, existir para tamanha sandice? Para tamanha indiferença perante um recurso vital e escasso como a água que, até no Inverno, nos começa a faltar?

O contrato de trinta e cinco anos vigora em Paços de Ferreira desde 2004*), já foi objeto de diversas reportagens e de promessas jamais cumpridas, e prevê, na sua cláusula 65ª, a cobrança de uma "tarifa fixa de saneamento" destinada a "cobrir os custos de conservação e manutenção da rede pública de recolha e tratamento de águas residuais, dos ramais domiciliários e de diversos encargos fixos que permitem disponibilizar os serviços aos utilizadores".

Muito bem: mas, por que razão há de a taxa, supostamente fixa, aumentar exponencialmente quando o utilizador poupa água, em lugar de a esbanjar?

Enfim, uma aberração inicial, porquanto sempre lamentável, ainda poderia ser explicável pelo erro legítimo a que está sujeito qualquer ser humano - ou, no caso em apreço, um ror de seres humanos por cujos olhos o contrato terá passado até à aprovação e formalização pelas partes. Mas, o que não se compreende mesmo, é que, passados os cinco anos que o próprio documento prevê para a revisão dos critérios, a situação se mantenha, mau grado a denúncia pública e a forte contestação do Movimento 6 de Novembro*).

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Que legítima justificação poderá existir para os proventos assim constituídos?

Por que não foi ainda, ao que parece, aberto qualquer processo de inquérito a esta situação?


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022


Morgan Freeman


Morgan

"(Como nos livramos do racismo?)
Parem de falar nele!
"


"(How do we get rid of racism?)
Stop talking about it!
"

  (em entrevista)      


Com isto, não quererá, evidentemente, Morgan Freeman dizer que a questão do racismo não deva ser discutida enquanto fenómeno social, designadamente quanto às formas de atenuar os seus efeitos, já que não parece crível que, alguma vez, consigamos vê-lo definitivamente erradicado.

O sentido bem patente na frase reside, antes, na condenação veemente da discriminação positiva exacerbada levada a cabo, de forma sistemática, por ativistas e por partidos desesperados por alguma coisa ter a que se agarrar, excessos e desmandos esses que, como já aqui escrevi, em nada favorecem a causa, antes contribuem fortemente para a desvirtuar e desvalorizar, gerando a indiferença entre quem tem os olhos e os ouvidos cheios, até à náusea, com um tema sem dúvida importante, mas do qual já não se consegue ouvir falar.

Tudo isto se torna especialmente perigoso quando, aproveitando a maré e a incapacidade das oponentes para falar de forma lúcida e fundamentada sobre tão sério assunto, vem, há coisa de uma semana, o ideólogo do Chega! candidamente proferir, numa estação televisiva*), frases que parecem  absolutamente verdadeiras - tais como "é um facto objetivo que há raças e há cores" ou "a nossa cor de origem é branca e a nossa raça é a raça caucasiana" -, mas que, além de cientificamente inexatas, ganham contornos bem vincados quando proferidas por quem ocupa lugar de especial destaque no partido que bem conhecemos pelas posições inabaláveis que assume nesta matéria.

O melhor caminho para desmascarar o que poderá estar por detrás das ditas afirmações não será, seguramente, apenas contrapor alegações vazias, ocas, proferidas em tom exaltado ou indignado, nada mais fazendo do que repetir mais vezes a fio velhas acusações em lugar de, tranquilamente, enquadrar na realidade tais afirmações. Não é útil contrapor a tão perentórias frases chavões como a multiculturalidade, a pluralidade, misturando, até o feminismo, pau para toda a obra e para cavalgar quem quer que se nos oponha até ficar esvaziado de todo o seu significado e valor.

Falhou, assim, redondamente a estação televisiva, se a intenção era arranhar ou abanar, ainda que ao de leve, a couraça do velho guerreiro que convidou. Para tal, além de escolher como moderador alguém menos evidentemente parcial, haveria de ter convidado, como oponente, outro velho guerreiro, igualmente tranquilo, cínico que bastasse e, sobretudo, lúcido, inteligente, capaz de ouvir o outro lado com a paciência indispensável ao planeamento de golpes letais a desferir sobre a argumentação racista, sempre que se proporcionasse ocasião.

A tarefa era hercúlea e o assunto demasiado sério para ter sido deixado ao cuidado de mais ou menos entusiásticos mas mal arrimados atores, que, no que à dialética isenta e ao debate sustentado na mais elementar lógica, mostraram, à saciedade, não passar de incompetentes e ineficazes amadores.

(leia aqui a sequência)