sábado, 19 de fevereiro de 2022


Anátema sobre o Segredo Pessoal!


"Aquilo que parece nunca nos ocorrer quando partilhamos algo, relativo a nós ou a outrem,
que não queremos ver divulgado é que, para o esconder se sobre o assunto for interpelado,
àquele a quem o confiámos resta … mentir!
"

"Segredo é segredo; e, quem o não quer guardar, nem o deve deixar contar"

"Quem ouve um segredo é amigo, um bom amigo. Mas... e quem o transmite? Amigo é também?"


Há tanta coisa que banalizamos com a maior das facilidades!...

Segredo pessoal
Umas, porque nada nos dizem, porque com elas nada temos a ver, porque não interessam, porque são... coisas dos outros. Outras ainda porque, simplesmente, nunca sobre elas nos dedicámos, verdadeiramente, a pensar. Nelas, ou nos seus impactos e consequências: usamo-las, aguentamos quando vêm dos outros e, por assim dizer, fazem parte do quotidiano de qualquer ser humano, em qualquer parte do Mundo, de qualquer idade, em qualquer meio.

Uma dessas coisas é o segredo pessoal.

Jamais saberei por que há quem se sinta muito lisonjeado pelo simples facto de alguém com ele ter partilhado um segredo; e quanto mais cabeludo o segredo for, tanto melhor, já que tanto maior será a prova de confiança que virá massajar o mais ou menos depauperado ego de cada um de nós, esquecendo-se, porventura, quem partilha o segredo de que o interlocutor poderá ser tão fiável como a fechadura de um cofre aberto - caso em que, contar-lhe o que quer que seja, acabará por ser tão eficaz para o conservar secreto como se o tivéssemos publicado na primeira página de um jornal.

Depois, quando acontece a notícia espalhar-se, nada a fazer. Mas, não se queixe quem contou o segredo, já que, tal como qualquer criminoso que se preze sabe que o crime deixa de ser unicamente seu a partir do momento em que recorre a um cúmplice que a todo o momento pode expô-lo, também deveria saber o risco que corre quem, quando já não aguenta mais aquilo dentro de si e sente que irá explodir se não o partilhar, deixa sair uma informação secreta, sua ou de outrem, que bem melhor faria em guardar.

Contar a alguém um segredo, comporta, na verdade, uma elevada dose de risco. Sobretudo quando a informação tiver sido transmitida por um terceiro, ninguém tem o direito de, em nome de quem em si confiou, correr o risco de a ver divulgada: “a confiança na discrição alheia é uma traição ao segredo que nos não pertence”.

Por outro lado
Por outro lado, se a coisa apenas é do conhecimento de quem a partilha, algo muito seu que não quer que venha a saber-se, decidir divulgá-lo, mesmo pedindo segredo, parece fraqueza, temeridade, ingenuidade, inconsciência ou mera idiotice. Um pouco como quem, já com um grãozito na asa, conta a história da sua vida aos amigos do bar, dizendo muitas vezes que tudo aquilo é segredo… no exato momento em que, inevitavelmente, deixou de o ser.

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O lado supostamente positivo que alguns encontram no facto de deter um segredo confiado por alguém é o de, para o depositário, ele, inevitavelmente, gerar algum poder.

Pode ser algo tão simples, chato e legítimo como o poder de massacrar a pobre criatura que abre o seu coração dando-lhe não solicitados conselhos de amigo, do tipo “vê lá, não faças isso” porque isto, aquilo ou aqueloutro; mas pode, também, facilmente tornar-se matéria-prima da mais abjeta chantagem, manipulação ou de qualquer outra atividade tão querida de certos espíritos perversos que parecem trazer dentro de si o suplemento de escândalos de um pasquim cor-de-rosa dedicado à cusquice social, expondo, de forma inequívoca, o mais repugnante daquilo que, para ganhar dinheiro ou por mero prazer sádico, um ser dito humano é capaz.

Ainda dentro do supostamente positivo de um  segredo, existe o esconder por amor, ou seja, guardar para nós algo com que não queremos magoar, melindrar, suscetibilizar quem, no nosso sempre subjetivo e muito falível juízo, entendemos poder sofrer duramente se ficar a saber algo que acabamos por optar por não divulgar. Mas, apenas numa situação em que se conheça bem, mas muito bem, a pessoa e a sua situação atual, em que o nosso coração não consiga ceder à razão, já que tal omissão sempre corresponderá à passagem de um atestado de menoridade, de incapacidade para lidar com a vida, apenas entendível e aceitável em casos extremos de fragilidade ocasional motivada por um impacto anterior, ou permanente provocada por doença ou debilidade equivalente.

Como qualquer um de nós, alguém condenado a connosco viver a vida deve pressupor-se habilitado e preparado para o fazer no meio em que se encontra, não nos assistindo, fora dos referidos casos, o direito de o considerar de alguma forma inapto para tomar conhecimento daquilo que diz respeito a si, aos que lhe são próximos, ou aos seus interesses.

Conhecimento dos factos
Além do mais, o facto de guardarmos segredo, não significa que o interessado não venha, mais tarde, a tomar conhecimento dos factos por outra via ou, até, a ficar a saber que retivemos a informação que deveríamos ter partilhado; e uma boa amizade pode assim ficar comprometida.

A par do segredo pessoal existem, como é sabido, segredos obrigatórios, como o segredo profissional relativamente à informação que confiamos, por exemplo, a um advogado, a um médico - até a um sacerdote, embora, neste caso, possa ser posta em causa a qualificação do segredo como profissional.

Também existe, evidentemente, o segredo de estado e, até há bem pouco tempo, o segredo de justiça - segredo que, nos tempos que correm, não passa de uma abstração, dado que ainda o inquérito judicial mal começou, e já tudo quanto possa despertar o ávido apetite da opinião pública aparece escarrapachado na primeira página de um qualquer jornal. Mas estes outros tipos de segredo são, ao contrário do segredo pessoal, vitais ao funcionamento da sociedade e do Estado, pelo que a sua legitimidade é inquestionável por qualquer mortal.

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A face fortemente negativa do segredo pessoal, quando partilhado com alguém obrigado a mantê-lo, reside, por sua vez, na carga, por vezes insuportável, que sempre representa para o novo depositário, que nem sequer o próprio facto de ser detentor de um segredo pode divulgar.

No caso do segredo profissional, do de estado, do de justiça, bastará ao interpelado responder que não pode pronunciar-se sobre o assunto, e a questão fica arrumada. Todavia, aquilo que parece nunca nos ocorrer quando partilhamos algo,   relativo a nós ou a outrem, que não queremos ver divulgado é que, para o esconder se sobre o assunto for interpelado, àquele a quem o confiámos resta … mentir!

A vida do António parece que não vai muito bem… Ele disse-te alguma coisa?”. “Não... nada”.

Mentira!

Ao partilhar, aliviamos um pouco a nossa carga emocional. É verdade. O preço, porém, é sempre o mesmo, e sempre pago pelo outro: ter de mentir para honrar o compromisso. Mentir, por vezes mesmo a quem lhe é bem próximo. Porque segredo é segredo; e, quem o não quer guardar, nem o deve deixar contar.

Quem ouve um segredo é amigo, um bom amigo. Mas... e quem o transmite? Amigo é também?


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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022


Tenho de Vir Deitar Água Fora para Ganhar Dinheiro

Esta insólita situação decorre da existência de um contrato, supostamente celebrado entre a Câmara Municipal e uma empresa de abastecimento de água, segundo o qual, a qualquer comerciante que não gaste, mensalmente, pelo menos um metro cúbico do precioso líquido, é aplicada a taxa máxima de saneamento: quarenta euros.

Ora, a maioria dos espaços comerciais não corresponde a cafés, restaurantes ou outras empresas necessariamente mais gastadoras de água, por força de especificidades da atividade desenvolvida. No entanto, e tanto quanto a reportagem da SIC Notícias nos permite deduzir, nos termos do atual contrato,qualquer tabacaria, livraria loja de eletrodomésticos, boutique, tantas outras que, em circunstâncias normais, utilizam a água apenas para a higiene pessoal de quem lá trabalha e para a limpeza do chão todos os meses, todas ficam obrigadas a deitar fora centenas de litros de boa água  apenas para não pagar uma absurdamente elevada taxa de saneamento que resulta tanto mais inacreditável quanto é certo que, quanto menos água se gasta, menos se despeja na rede pública de saneamento.

Ao que parece, o caso dos particulares não é tão escabroso, mas sempre suficientemente oneroso para que alguns habitantes vão a casa de vizinhos não residentes, não apenas para ver se há correio, mas também para, todos os meses, "deitar água fora".

Segundo outro entrevistado, o assunto foi, já, suscitado numa "assembleia" - supostamente municipal. "Sabemos que há secas, que a água potável falta aí a milhões de pessoas, e nós, em Paços de Ferreira, fazemos isto!".

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Claro que podemos pensar que "pois, que maçada, vejam lá" e considerar que alguma coisa se há de fazer e, afinal, apenas afeta uma parte da população.

Não é assim.

A celebração de contratos deste tipo pode acontecer em qualquer autarquia, seja por chã incompetência dos autarcas que celebram os contratos e dos serviços que sobre eles dão parecer ou os propõem, seja por causas bem mais sérias, das quais sobressai, com naturalidade, a possibilidade de casos destes corresponderem a aproveitamentos obscuros de oportunidades oferecidas pela ideia luminosa de alguém que viu o furo e tratou de, em benefício próprio, o aproveitar.

Que razão poderá, de facto, existir para tamanha sandice? Para tamanha indiferença perante um recurso vital e escasso como a água que, até no Inverno, nos começa a faltar?

O contrato de trinta e cinco anos vigora em Paços de Ferreira desde 2004*), já foi objeto de diversas reportagens e de promessas jamais cumpridas, e prevê, na sua cláusula 65ª, a cobrança de uma "tarifa fixa de saneamento" destinada a "cobrir os custos de conservação e manutenção da rede pública de recolha e tratamento de águas residuais, dos ramais domiciliários e de diversos encargos fixos que permitem disponibilizar os serviços aos utilizadores".

Muito bem: mas, por que razão há de a taxa, supostamente fixa, aumentar exponencialmente quando o utilizador poupa água, em lugar de a esbanjar?

Enfim, uma aberração inicial, porquanto sempre lamentável, ainda poderia ser explicável pelo erro legítimo a que está sujeito qualquer ser humano - ou, no caso em apreço, um ror de seres humanos por cujos olhos o contrato terá passado até à aprovação e formalização pelas partes. Mas, o que não se compreende mesmo, é que, passados os cinco anos que o próprio documento prevê para a revisão dos critérios, a situação se mantenha, mau grado a denúncia pública e a forte contestação do Movimento 6 de Novembro*).

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Que legítima justificação poderá existir para os proventos assim constituídos?

Por que não foi ainda, ao que parece, aberto qualquer processo de inquérito a esta situação?