"Não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não
apenas quanto ao futuro,
mas também quanto à realidade presente e à
verdade dos relatos do passado?
Não vive a Humanidade angustiada,
procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas
imaginários
com que a própria essência das coisas inevitavelmente
povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas
preocupações? "
"Como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da
corrupção e a dependência do compadrio
gerar certeza seja em quem
for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza
na gestão da coisa pública
é de agora, e não um virus omnipresente em
todas as paragens e regimes ao longo dos tempos? "
"A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início
da incerteza, mas a própria essência da mesma "
Terá a morfologia facial evoluído no sentido de permitir aos hipoteticamente
superiores espíritos humanos comunicar entre si ou, inversamente, terão os
ditos espíritos começado a comunicar verbalmente num aproveitamento da dita
evolução?
Qualquer que seja a resposta, parece certo que a razão de ser e o objetivo da
fala é a comunicação entre os humanos, tal como já sucedia com a expressão
corporal e viria a acontecer com a bem mais recentemente inventada
escrita.
Sabemos também, à saciedade, que só quando prosseguida de forma rigorosa e
contemplando a possível perfeição será qualquer atividade animal razoavelmente
conseguida no seu propósito. A falta de caso, a preguiça, o facilitismo e
vícios similares comprometem, seriamente, a eficácia e a eficiência da ação, a
ponto de, em casos extremos, tornar contraproducente o resultado final.
Se, na infinidade de sinais a que poderia recorrer, a mera linguagem corporal
era, inevitavelmente, pouco rigorosa, imprecisa, a linguagem verbal viria,
decisivamente, complementá-la como uma forma eficaz de limitar a dispersa e
caótica sinalética, assim tornando potencialmente muito mais precisa a
correspondência entre a ideia e a mensagem que a veicula entre os espíritos.
Através da combinação, em palavras, de fonemas de correspondência sonora
relativamente constante dentro de um mesmo idioma, apurou-se, pois, a
transmissão e a captação da ideia contida na mensagem, drasticamente reduzindo
a ambiguidade e a indefinição.
Na senda do mesmo objetivo, a evolução inteligente da utilização da palavra
deveria, então, ser a da constante afinação e da cada vez mais rigorosa
utilização do idioma: nunca a da sua deterioração, seja por via da desenfreada
polissemia, seja pela do desprezo que cada vez mais vamos notando para com as
mais elementares regras gramaticais.
Esta inversão de sentido, esta desvalorização da função elementar da linguagem
verbal encontra-se, porém, de tal forma enraizada no tendencialmente
permissivo espírito humano que qualquer norma é prontamente
revogada à primeira violação pela pena de um escritor, como se, ao
subverter, supostamente em benefício da manifestação artística, o edifício
gramatical e a precisão vocabular, qualquer romance fosse, por natureza, um
código, uma cartilha pela qual todos nós a língua portuguesa devêssemos
estudar.
Bem pelo contrário, e como já aqui opinei, "um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as
ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade
poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a
alteração das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente
acabará por soçobrar".
Daqui decorre que, seja quem for que, por indiferença ou em nome da
criatividade, sistematicamente utilize de forma inadequada o vocabulário e
viole as regras da gramática jamais poderá ser confundível com um teórico da
língua.
Apenas patenteia, em tal matéria, inaceitável ignorância larvar.
- x -
O princípio da incerteza, de
Werner Heisenberg, sustenta que, observando uma determinada partícula de matéria, não é
possível, com exatidão, determinar a posição e, simultaneamente, medir a
velocidade daquela - algo que, cingindo-nos aos conhecimentos e aos métodos da
física clássica, deveria ser possível fazer-se.
Segundo a física quântica, apresenta-se, assim, o dito princípio como mais uma
forma de demonstrar que o Universo age mais misteriosamente do que aquilo que
nos têm feito crer - embora a conclusão pela impossibilidade de apurar os
valores com absoluta certeza se deva ao facto de serem utilizados, à falta de
outros disponíveis, métodos invasivos para efetuar as medições.
Ora, instruídos que foram todos os atuais comentadores do programa da assim
chamada CNN Portugal "O Princípio da Incerteza" na conjunto de áreas do
conhecimento conhecida pela designação genérica de humanidades, será
que foi o postulado de Heisenberg o inspirador do título adotado?
Dificilmente, ou estaríamos perante uma provável demonstração de despudorada
presunção, ou de desmesurada cosmética mediática.
Será, então, que, no título do programa, princípio exprime a ideia
de início, e não de lei geral da física, de parte da sua informação
fundamental?
Mas, a assim ser, também aqui se manifesta insanável dúvida. Pois não é a vida
caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao
futuro, mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do
passado? Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos
proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários com que a própria
essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede
espiritual das nossas preocupações?
Falar do início da incerteza seria, pois, refletir sobre as origens do
Universo, ou seja, algo muito distante da linha editorial do programa
televisivo de cujo título aqui se trata.
Considerada esta, poder-se-á, naturalmente, considerar a possibilidade de se
tratar do início, não da incerteza absoluta, primária, mas, por
exemplo, da incerteza ou insegurança na gestão política do Estado. Mas
como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da
corrupção e a dependência do compadrio gerar certeza seja em quem for, a
propósito seja do que for?
Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública é de
agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo
dos tempos?
Até que alguém que saiba a esclareça, a dúvida subsistirá, assim, quanto ao
sentido em que, na escolha do título, o termo princípio foi
selecionado: lei fundamental, ou início de algo? Neste caso, início de quê?
- x -
Preferir, na circunstância, a utilização do
termo início - ou começo - eliminaria qualquer dúvida
quanto a ideia a transmitir: início exprime, sempre, o primeiro
estágio, o lançamento. Isto, apesar de poder discutir-se a correção de
atribuir-lhe, como alguns fazem, o significado de preliminar ou
preambular, já que não parece seguro que pre não signifique
que antecede o início da ação propriamente dita, a qual se destinaria a
preparar ou enquadrar.
Em qualquer caso, o que importa reter é que a ambiguidade vocabular sempre será de evitar, sem prejuízo, naturalmente, da saudável criatividade, da originalidade que,
desejavelmente, se procurará imprimir às manifestações do espírito, sob pena
de, assim não sendo, tudo se resumir ao sensaborão, ao acinzentado de uma vida
em que, praticamente, nos limitaríamos a respirar.
A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início
da incerteza, mas a própria essência da mesma, a par com o facilitismo gramatical que, em boa parte por via da
importação de vocábulos e estruturas próprias de variantes do idioma
desenvolvidas noutras partes do Mundo,
mina, não apenas a clareza da ideia, o rigor da mensagem, a destreza do
raciocínio, mas, com elas, a qualidade da interação do ser humano com os
seus pares.
A riqueza vocabular reside na diversidade da utilização de termos com
significados semelhantes, próximos, sem deixar de respeitar a
particularidade de cada um deles: não no empanturrar das palavras com significados, levando a que, um dia,
qualquer coisa querer dizer uma coisa qualquer, e deixemos de conseguir
captar a ideia precisa ou, sequer, uma aproximada da que pretende exprimir
quem escreveu ou está a falar.
Generalizada muito para além da mais ampla razoabilidade e longe de
corresponder ao enriquecimento da língua, antes à degradação da sua
beleza e da sua utilidade, a desenfreada polissemia apenas torna mais
difícil a já de si difícil arte de comunicar.
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica, e não pela
utilização
mais ou menos própria que, aqui ou ali, um ou outro escritor
dela fará.
A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de
definir como devemos exprimir-nos,
a gramática se limitar a observar
como vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada
hipercorreção
qualquer tentativa de resistência à degeneração.