sábado, 13 de março de 2021


Refugiado e Refugiados

"Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu
que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas,
bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará,
globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.
Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento
"

Imaginemos um país; um país europeu de dimensão relevante, desenvolvido e estimado pelos seus pares.

Imaginemos, também, que, nesse país e por circunstâncias que aqui não vêm ao caso, um governante de topo, um abastado rei, por exemplo, se vê na contingência de, fazendo uso do seu lauto pé de meia e da generosidade ou do pagamento de favores por parte de alguns amigos, ter de se exilar*), de abandonar a sua terra, rumando a paragens mais a Oriente para por lá se refugiar.  Tendo em conta a História recente da política europeia, é um cenário que não será difícil idealizar.

A esse governante, seria - sem hesitação, em condições excecionais e ao nível adequado a alguém com a sua anterior ocupação - facultado o acesso a todas as estruturas e serviços dessa sua temporária terra de adoção, desde os fornecimentos básicos de eletricidade e água, até aos cuidados de saúde, públicos e privados; e, se de idade avançada, aos necessários cuidados e tratamentos complementares.

Na nova terra, ninguém se espantaria, ninguém se insurgiria ou se sentiria lesado pelo luxuoso tratamento dispensado, pelo Estado e pela iniciativa privada:  uns, porque nem chegariam a saber o que se estaria a passar;  outros, porque se identificariam com o ilustre refugiado e para os próprios esperariam, em idênticas circunstâncias, iguais benesses;  por fim, os palermas que até se sentiriam honrados com tão distinta companhia e lamentariam, consternados, o facto de a veneradíssima personagem não poder regressar ao seu palácio para o Natal familiar.

Pensemos, agora, por um instante, num bote vindo de África, a transbordar de pessoas menos ilustres, desconhecidas, anónimas, desesperadas, sem Natal, a lutar pela sobrevivência, em fuga de quem, por razões políticas ou outras, os escorraçara da sua terra natal; fugindo da guerra, mas também da perseguição política ou religiosa, da miséria indizível; sabendo que parte deles nem chegará, porque o mar não irá deixar.

A estes refugiados pobres*), muitos portos batem com a porta na cara, acabando eles, por vezes, por se virar para um pequeno país a Norte das suas terras natais, logo acima e um bocadinho ao lado do Mediterrâneo, onde, mais coisa, menos coisa, dez milhões de seres humanos têm, entre muitas outras benesses, acesso a um serviço de saúde amiúde elogiado, porquanto fracamente financiado e, quanto a recursos, deficitário;  um serviço de saúde que, apesar de tudo, não desespera quando mergulhado numa pandemia, e lá vai arranjando meios e forma de acolher, de tratar e de recuperar as pessoas que o bote traz das paragens de onde foram escorraçadas, e que nesse pequeno país mais a Norte buscam refúgio.

Os refugiados dos botes são muitos?  Vêm em grande quantidade   Não.

Em pequenas embarcações, chegam a esse pequeno país umas cinco pessoas, em média, por dia.  Das minúsculas cascas de noz, veem os aviões que, aqui e ali, os sobrevoam como a expressão mais visível da crueldade do Mundo. Ignoram que, nesse preciso momento, um outro refugiado veleja, com ar enfadado, não num bote, mas num seu iate, rodeado de amigos, em magníficas paragens.

Será que acolher essas cinco pessoas por dia, cuidar delas, acarinhá-las será uma carga assim tão grande para o sistema de saúde desse pequeno país de dez milhões?  Será que o facto de não ter essa gente agora sem terra com o que pagar os cuidados que lhe são prestados justifica ser, por outra gente sem um mínimo de compaixão, mas com acesso a trabalhos parlamentares e a programas televisivos, exposta como parasita, como oportunista, composta por falsos necessitados que consigo até trazem telemóveis?

Será que a permanência dessas pessoas por cá, trabalhando como puderem, irá prejudicar assim tanto a empregabilidade dos nem sempre muito empenhados autóctones? Ainda que inicialmente não especializado ou particularmente bem preparado, será de desprezar o contributo que estes nossos habitantes darão à economia e à cultura do pequeno país que as acolhe?

Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas, bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará, globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.  Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento.

A partir dos dados disponíveis, concluir o contrário revela falta de humanidade, ou que anda por aí tenebrosa desinformação, a ponto de poder fazer esquecer que a maior maravilha do Mundo é as pessoas serem como são.

Aumento da criminalidade?  Claro que nem todos são santos, mas também não são os criminosos empedernidos que alguns querem fazê-los parecer.  Entre os refugiados há de tudo, melhor e pior, tal como de tudo há, também, no tal abençoado cantinho à beira mar plantado.

Em qualquer caso, não pode duvidar-se de que esse pequeno país de dez milhões tem alguma, embora reconhecidamente limitada, capacidade de acolher quem em tão deploráveis condições o demanda; e a responsabilidade varia na razão direta das nossas capacidades e na razão inversa das nossas limitações.

Não se entende, assim, como podem, no tal pequeno país, pessoas ditas de bem insurgir-se contra o acolhimento de meia dúzia de casos em cada mês*), manifestando-se pela imediata decisão de os deportar. Como pode continuar-se a confundir esta quantidade mínima, residual, que lá consegue desembarcar com o estabelecimento de uma nova rota migratória para quem quer ficar, inerte, a receber bens e serviços do país de acolhimento nada tendo que, por sua vez, lhe dar?

Há coisas que nem em campanha eleitoral se deve dizer.  Melhor dizendo, que, sobretudo em campanha eleitoral, não se deve dizer.  Num pequeno país que se pretende humanista, seria, para qualquer político, bem mais adequado e inteligente exaltar os valores a essa ideia indelevelmente associados.

Tampouco se entende o que leva alguns a associar a esquerda ou direita a decisão de acolher ou deportar, de discriminar positivamente ou de apenas tolerar, quando, independentemente da cor política, a rejeição se deve, fundamentalmente, a egoísmo, orgulho e preconceito, e pouco mais.

Quantos refugiados desses que vêm em botes não seria possível albergar, alimentar e tratar apenas com os milhões que, qual jogador de bola fugido ao fisco, o refugiado de luxo do início destas linhas irá entregar às Finanças do país de origem para um dia o deixarem regressar ao seu sumptuoso palácio sem temer mais pesada pena ter de pagar?

Pois não são estes refugiados seres humanos enquanto tal em tudo iguais a esse abastado velejador noutro país refugiado, apenas diferindo, no que é essencial, pelas condições degradantes e insustentáveis em que lutam para sobreviver?

Não, iguais ao abastado governante, de facto, não são.

São até bem diferentes as razões que os fazem escolher outra terra para morar;  e poucas dúvidas restam de que o próximo bote trará carga humana bem mais válida do que um decadente e rico pobre diabo obcecado por mulheres, pelo dinheiro e por aquilo que com ele poderá comprar.

Sic transit gloria mundi...

* *

Apesar de tudo, convirá ter presente que o acolhimento de refugiados não deve, não pode, pôr em risco funções tão essenciais à sociedade que os recebe - e, inevitavelmente, aos próprios - como é o caso da saúde.

sábado, 6 de março de 2021


O Menino das Rãs (conto infantil para adultos)


"Quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;
quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;
e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar"


Era uma vez um menino que nasceu numa aldeia por onde corria uma ribeira que tinha rãs.

Os pais tinham pouco dinheiro e o menino não ia à escola.

Como ele, muitos outros meninos do povo não podiam ir à escola;  mas, ao contrário dele, alguns outros meninos esforçaram-se, mesmo assim, por aprender fora da escola e chegaram, até, a dirigentes do Clube dos Meninos da Aldeia.

O nosso menino, no entanto, não era só pobre: era, também, pouco inteligente, embora se julgasse esperto como, também, alguns dos demais.

Ora, como acontece com meninos pouco inteligentes que procuram, com a esperteza, compensar o que da outra lhes falta, tratou o menino de pensar na melhor maneira de se salientar, de sobressair, de se exibir.

Pensou, pensou… e, de tanto pensar, pensou que era filósofo, como acabava por acontecer com boa parte de outros meninos que também passavam o tempo a pensar.

Vai daí, arranjou uma folha de papel, muito grande, muito grande, onde ia escrevendo as suas ideias, que lhe pareciam cada vez mais brilhantes, e das quais ele achava que era uma pena que todos os outros meninos não tomassem conhecimento para, assim, viverem mais felizes por aprenderem com ele, que pouco ou nada sabia.

Depois de escrever cada pérola de sabedoria, dobrava a folha e punha-a num bolso do casaco, contente com a sua habilidade.

- x -

De tanto pensar, um dia, pensou, até, que, quando subia o passeio do lado direito da sua rua, os carros estacionados desse lado ficavam à sua esquerda, e que, quando descia a rua, os mesmos carros que, quando a subia, ficavam à sua esquerda, continuavam, ao descer, à esquerda também.

Animado com tão espantosa descoberta, e porque se tratava de esquerda e de direita, achou-se predestinado à Política.

Lá arranjou, então, meia dúzia de amiguinhos também do povo a que dizia pertencer, e com eles fez um grupinho de apoio que conseguiu as assinaturas necessárias a que o menino pudesse candidatar-se a Presidente do Clube dos Meninos da Aldeia. É que ele achava que, se os outros que lá estavam e, dentro ou fora da escola, tinham estudado para se preparar para o desempenho do alto cargo, ele, embora fosse burrinho e nem competência tivesse para mandar nos seus poucos brinquedos, também tinha o direito de lá estar.

Tinha direito, apenas porque sim, e porque a campanha eleitoral seria a melhor maneira de mostrar que era o que não era, uma oportunidade única para se pavonear, e não porque estivesse minimamente preparado para ocupar o lugar ou preocupado com o serviço que, aos outros meninos, poderia esperar-se que viesse a prestar.

- x -

Ora, para a presidência do Clube, havia, além do presidente atual, outros meninos candidatos, os tais que tinham estudado e que seria mais provável estarem à altura do que a função lhes exigia do que o menino armado em filósofo que mal duas frases seguidas sem chavões – ou pérolas tiradas do papel que sempre trazia no bolso - conseguia articular.

Tinha, por essa altura, a rádio local organizado conversas dos outros meninos candidatos, dois a dois, sobre as propostas que as respetivas candidaturas tinham a apresentar. Mas, como o menino da nossa história não dava duas para a caixa e já ninguém estava para o aturar, a rádio lá conseguiu desenterrar um qualquer critério jornalístico pacífico e plausível para, sem parecer muito mal, o menino não ser convidado a participar.

Isso, sim!! O menino tanto se queixou, tanto se lastimou, que a rádio lá arranjou uns minutos para, numa frequência menos ouvida, pôr o menino a, um a um, abusar da paciência dos outros meninos candidatos, sempre com aquele ar de ingenuidade bacoca e deslumbrada com o papel que estava a representar.

Todo contente, lá levou no bolso a grande folha de papel dobrado que, orgulhosamente, até mostrou ao atual presidente do Clube e recandidato, o qual que só lhe faltou tratar por tu; e lá despejou, para indisfarçável embaraço e tédio de cada um dos outros meninos e dos senhores da rádio que os entrevistavam, a habitual e infindável série de lugares comuns e de brocardos tirados da sua cabecinha pobre, respondendo, qual verdadeiro político e por falta de ideias das quais conseguisse falar trinta segundos seguidos, sempre ao lado daquilo que ainda lhe conseguiam perguntar.

Bom, nem sempre respondia ao lado:  quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;  quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;  e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar.

- x -

Claro está que o menino não foi eleito, e até teve menos votos do que da outra vez em que tinha obrigado os outros a ouvi-lo falar, porque, ao contrário do que dizia esperar, foram muito poucos os meninos parvos que caíram na asneira de sair de casa para nele votar.

Claro está, também, que valeu a pena candidatar-se – se valeu ! -, já que tal lhe permitiu, não só massajar vigorosamente o ego, como ganhar estatuto junto dos poucos meninos vaidosos, egoístas e espertalhões da tal aldeia onde havia rãs e de outras terras por ali perto.  Tudo isto, à custa do tempo sem qualquer interesse que fez perder à rádio local, do sacrifício da paciência dos que o ouviram – ou leram no jornal do Clube – e do dinheirão que, pelo duvidoso privilégio de ouvir as suas pérolas, a todos indiretamente fez pagar.

Afinal, para aqueles dias serem tão bons para o menino, por que não haviam todos os outros meninos de colaborar ?  Até ia parecer que não gostavam dele.  Mas gostavam, claro:  de tão brilhante menino filósofo, como não gostar ?

- x -

Como já não era a primeira vez que se candidatava, e aquilo até foi giro, o menino não tem, de então para cá, parado de continuar a encher a folha onde escreve as suas ideias mais vazias e disparatadas.

Para quê ?

É que, agora, o grupo de meninos que o apoiou nas eleições já se juntou num partido que até dá vontade de rir, de meninos como ele que querem ajudá-lo a mandar.

E as eleições para as secçõezinhas do Clube não vão tardar…

Uma coisa é certa:  a história do menino que brincava com as rãs não vai aqui acabar e, se não alteram rapidamente os Estatutos do Clube para o travar, ainda todos nós vamos ter muito que lhe aturar.