sábado, 8 de maio de 2021


As Irresistíveis Tentações do Derradeiro Mandato

"(...) um primeiro-ministro sem dúvida hábil, mas essencialmente tático,
nunca um estratega, que, lutando para evitar expor-se a coligações negativas
e para repristinar antigas mas preciosas alianças,
mais vulnerável se tornaria a um erro magistralmente provocado"

As razões subjacentes à limitação da quantidade de mandatos consecutivos no desempenho de um cargo imposta a quem a ele pretende candidatar-se sempre alimentarão um debate político mais ou menos acalorado, como não pode deixar de ser.

Parece, inversamente, consensual o facto de, seja qual for o cargo, a impossibilidade de reeleição antes do interregno correspondente a, pelo menos, o tempo de duração efetiva do seguinte, de alguma forma libertar o recém-eleito para um derradeiro mandato para lhe imprimir um cunho pessoal, mais consentâneo com a sua forma de pensar ou de ser.  Alternativamente, poderá viabilizar, sem temor de consequências políticas negativas relevantes e em benefício do partido da sua predileção, uma atuação de oposição mais ou menos subtil a indivíduos de outra cor política que sejam titulares de outros órgãos de soberania ou afins.

Esta libertação da necessidade de assegurar a reeleição torna-se particularmente sensível em pessoas mais próximas do termo da carreira política, que já não considerem razoável ou desejável, após o jejum obrigatório, recandidatar-se a novo mandato.

No caso da oposição política em benefício do partido ou da área política da sua simpatia, convirá, apesar de tudo, cuidar de que a oposição não seja frontal, declarada, sob pena de facilmente poder ser, pelo eleitorado, imputada ao titular a responsabilidade por uma mais ou menos tácita declaração de guerra aberta ou fria, qualquer delas assaz contraproducente face aos objetivos que o pudessem nortear.

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Exemplificando, como poderia, por exemplo, um presidente da república de um estado cuja constituição proibisse a eleição para um terceiro mandato consecutivo quebrar, sem que a iniciativa lhe pudesse ser diretamente associada, uma para ele monótona e sensaborona relação de solidariedade institucional com o primeiro-ministro de um governo algo perdido, atarantado? Como atrair, nos primeiros dias do mandato, a atenção generalizada? Como garantir um protagonismo que lhe permitisse, ainda que informalmente, governar em seara alheia, sabendo que o neutro nada significa mas que, ao que vibra, ninguém fica indiferente?

Uma oportunidade caída do céu seria, entre tantas possíveis, o parlamento desse estado aprovar, em dada altura, contra a vontade do partido do governo e violando formalmente a Constituição por agravar a despesa global do Estado prevista no orçamento, legislação em benefício claro de uma parte da população*) particularmente fragilizada e debilitada pelo impacto de uma catástrofe ao tempo vivida e particularmente sentida.

Tal facto faria, quiçá, acorrer ao espírito de um omnipresente presidente uma original e brilhante - porquanto esguia - fundamentação para a decisão de, não obstante, promulgar os diplomas sem suscitar a fiscalização preventiva da respetiva constitucionalidade; ou não tivesse um outro presidente lembrado que “escrita em chinês, a palavra`crise´ é composta por dois caracteres: um deles, representa perigo, e o outro representa oportunidade” *).

A originalidade poderia, no nosso exemplo, residir na invocação de uma possível prática reiterada, por parte do governo de, em todos os anteriores exercícios, haver assegurado que o montante total da despesa autorizado pelo parlamento nos correspondentes orçamentos gerais do estado não seria atingido*), assim permitindo ao presidente, em presença da oportunidade de iniciar hostilidades, alegar que, dado o valor irrisório das migalhas a distribuir quando comparado com a montanha do orçamento – da qual, porventura, nem um por cento representaria -, dificilmente aquele excederia o das quase certas poupanças que estariam para vir, assim não havendo razão para acreditar que, nas contas finais, viria, de facto, a exceder-se o montante global da despesa orçamentada.

O brilhantismo estaria, por sua vez, no facto de dificilmente o órgão fiscalizador poder deixar de se pronunciar pela inconstitucionalidade caso fosse o governo a levantar a dúvida*), uma vez que a este, e só a este, seria possível conhecer, de antemão, a intenção de apertar, ou não, o cinto no exercício em apreço - apesar de, estranhamente, após um discurso de afrontamento proferido pelo primeiro-ministro, o ministro das finanças até poder ter dito que a despesa seria acomodável.

Seria, então, de assumir que, no caso de pedir a fiscalização sucessiva, o faria o governo por estar a prever que o valor total não despendido seria inferior ao do acréscimo imposto à despesa pela nova medida aprovada, assim resultando aquela, inevitavelmente, agravada pela contestada decisão do parlamento, tomada em claro desrespeito pela norma-travão constitucional*).

Num tal cenário, sempre o presidente ficaria ilibado de qualquer responsabilidade pela decisão de promulgar a legislação sem suscitar a fiscalização preventiva, uma vez que não seria razoável alguém exigir-lhe que, também de antemão, conhecesse, quanto à execução orçamental, as intenções do governo, preferindo promulgar a nova medida perante a por ele considerada efetiva constitucionalidade do cumprimento dos novos diplomas.

Se, contra todas as expetativas, a inconstitucionalidade não fosse declarada em sede da fiscalização sucessiva pedida pelo governo, o presidente teria tido razão ao promulgar, pelo que nada lhe poderia ser censurado – mormente no caso de a execução orçamental ser a por ele antevista e o impacto das novas leis acabado por ser insuficiente para violar o limite da despesa global.

Por outro lado, se, como o presidente esperaria, fossem chumbadas as novas leis, os dividendos políticos seriam, para ele, bem evidentes: no caso de a decisão ser conhecida antes de se dar início à distribuição do dinheiro, nunca poderiam os desiludidos potenciais beneficiários – e eleitores – recriminá-lo pelo facto de, afinal, esta nem ter chegado a acontecer; no caso melhor ainda de a distribuição já haver começado, seria o primeiro-ministro o responsável por uma eventual, porquanto improvável, obrigatoriedade de devolução de algo que já tinha sido dado e, depois, viria a ser tirado sem que a maior parte dos lesados chegasse a compreender bem porquê; ouro sobre azul seria coincidir com este segundo cenário a proximidade de eleições em que o dirigente no zigamocho da estrutura hierárquica do partido apoiante do presidente enfrentasse a aniquilação política no caso de um desaire eleitoral em eleições já bem próximas no tempo*). Qualquer político ou cidadão dito comum bem sabe que, como sabiamente cantavam os Abba... "the winner takes it all".

O momento aparentemente menos feliz do presidente, por muitos apontado e estranhado, não teria, desta forma, passado de um golpe de mestre desferido sobre um talvez demasiado confiante primeiro-ministro de outro quadrante político, com objetivos que até nem seriam difíceis de adivinhar.

Sobretudo se se tratasse de um primeiro-ministro sem dúvida hábil, mas essencialmente tático, nunca um estratega, que, lutando para evitar expor-se a coligações negativas e para repristinar antigas mas preciosas alianças, mais vulnerável se tornaria a um erro magistralmente provocado*).

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Na eventualidade de o presidente ser, também, um eminente jurista, sempre o palanfrório de alguns entendidos - desses que, um pouco por toda a parte, gravitam próximos de redações de revistas, de jornais e de estações televisivas – não resistira a apontar-lhe o erro técnico da decisão de promulgar.  Mas, mesmo a existência desse erro, seria muito discutível em presença da tal fundamentação original e brilhante, para não falar do facto, que facilmente poderia ter passado despercebido, de que o primeiro erro - o erro essencial, a verdadeira inconstitucionalidade -, havia sido cometido por um presidente do parlamento manifestamente à deriva até no quotidiano da condução dos trabalhos, que tivesse caído na asneira de admitir à discussão e votação projetos cuja mera apresentação a Constituição proibisse; tudo isto, apenas no nosso exemplo, claro está.

Num tal caso, sempre o presidente da república poderia sustentar que não estava sozinho no seu entendimento pela constitucionalidade, já que, fosse diverso o do presidente do parlamento, não haveria, certamente, a legislação sido admitida na câmara - mormente se, para cúmulo, se tratasse de um presidente do parlamento da mesma cor política do governo contestatário…

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Tratei aqui, como disse, de um exemplo unicamente destinado a ilustrar esta pequena reflexão, pelo que qualquer semelhança com pessoas ou factos reais em qualquer parte do Mundo não passará de mera coincidência.

No entanto, porque todos somos humanos e a tentação é grande, por muito louváveis que sejam as intenções e inquestionáveis a inteligência magnífica e o espírito de missão do presidente da república, também em qualquer parte do Mundo, outros episódios – talvez muitos outros - com motivações de afirmação de protagonismo ou de simpatia política semelhantes às que associei à historieta que acabo de inventar, até ao termo de qualquer derradeiro mandato serão de esperar.

Ut flatus venti, sic transit gloria mundi.

sábado, 1 de maio de 2021


Os Factos e os Seus Atos

"Para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado,
facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo,por este andar,
de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário,
desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender"


   1. O Descrédito Crescente dos Dicionários
   2. Polissemia que Degenera em Confusão
   3. Confusão no Tribunal
   4. Notas Finais


1. Descrédito Crescente dos Dicionários

O que é um dicionário?

As pessoas da minha não muito ínclita geração, habituaram-se a venerar estes anafados volumes em papel como uma espécie de cardápio de todas as palavras que compõem um idioma - excluindo, naturalmente, as conjugadas e declinadas, bem como o mais pesado palavrão -, e a eles sempre recorriam ao deparar com um vocábulo novo e, para elas, desconhecido, ou quando uma dúvida emergia relativamente a determinado significado ou ortografia.

Dicionários – sempre em papel, já que o digital ainda não era, sequer, uma quimera -, havia diversos, uns mais conhecidos e tidos como fiáveis do que outros, mas todos credores do maior respeito e tidos por fiáveis e rigorosos.

Isto, era dantes.

No século XXI, o significado de dicionário parece ter-se alterado substancialmente, por vezes mais não parecendo agora muitos deles do que róis de palavras seguidas da indicação, não apenas de significados reais, como, muito além da há muito estabelecida polissemia, também daqueles que, quase a esmo, vão elas vendo ser-lhes arbitrariamente acrescentados a um ritmo que os formatos digitais tornam cada vez mais alucinante, assim bem evidenciando o crescente primado da quantidade sobre a qualidade, como se o melhor dicionário fosse aquele que atinge uma maior média na quantidade de significados propostos por palavra. Não tardará que alguém invente um critério objetivo, uma norma europeia, para os classificar como, talvez, uma MSPP, com isto significando média de significados possíveis por palavra, independentemente do rigor, da objetividade e da fiabilidade da enumeração.

O mais triste é que nada disto verdadeiramente espanta, se tivermos presentes as adaptações e concessões que simultânea e constantemente vão desvirtuando até as próprias regras gramaticais, hoje em dia eivadas de explicações no mínimo criativas - embora, muitas delas, de espantosa ilogicidade -, cada um palrando como muito bem lhe apetece, indiferente à teoria e à forma desde que, melhor ou pior, lhe pareça que se faz entender.


2. Polissemia que Degenera em Confusão

A título de exemplo, uma breve pesquisa nos dicionários em linha na Internet, mostra-nos, para a palavra facto e entre muitos outros, o significado de “coisa realizada, ato, feito”, ou de “ação, resultado acabado ou que está em vias de execução”, “ação de fazer alguma coisa; processo”.

Para ato, encontramos, por sua vez, “ação considerada na sua essência ou resultado.  [Por extensão] Feito, facto”, “Funcionamento da habilidade de atuar ou agir, ou referente àquilo que dessa ação resulta; (Por extensão) Ocorrência ou facto”.

Quer isto dizer que, para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado, e facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo, por este andar, de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário, desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender.

Aplicando a esta fantasiosa cartilha a propriedade transitiva "se é verdade que, se A é igual a B e B é igual a C então A é igual a C", teremos que facto e ato são a mesmíssima coisa, o que cedo se apresentará como um rematado dislate a qualquer pessoa que se disponha a dispensar uma porção mínima dos seus neurónios a refletir sobre a matéria.

Já aos outros, que querem lá saber, que propalam a anomia linguística ou se limitam a, de forma mais ou menos subserviente, continuar a confiar cegamente no que dizem dicionários de pouco crédito - para os quais, não obstante, olham com os mesmos maravilhados olhos com que mirávamos os rechonchudos e valiosos dicionários em papel do meu tempo de escola - bastará neles lerem que “Tanto faz! uma coisa como outra para não hesitarem em, por sua vez, atirar para o ar ou para o papel a primeira que lhes vier à cabeça, ou a que lhes parecer mais bonita, ou mais rebuscada – para parecer bem –, ou seja qual for e por que for.

Note-se que não estamos, sequer, em presença de um caso de ambiguidade ou vagueza, uma vez que entre uma ação (ato) e o correspondente acontecimento (facto) não existe confusão possível: o segundo é, sempre, resultado do primeiro, ainda que este nasça de um ato da Natureza - ou como lhe quisermos chamar -, com isto se entendendo qualquer coisa desde um movimento tectónico até ao ataque por um lobo em busca da sua vianda diária, passando por tudo o resto que não decorra de um ato humano explícito, identificável e atribuível a um sujeito, sem prejuízo, naturalmente, da eventual responsabilidade de seres humanos em outras ações ou omissões identificadas como causas, ainda que indiretas, desses naturais acontecimentos.

Um incêndio é um facto, e não passa de um facto. Pode é dar-se que a causa direta desse facto tenha sido um ato, doloso (fogo posto) ou negligente (um fósforo em brasa atirado, impensadamente, ao ar), que o tenha determinado.

Um facto, ou é espontâneo, ou é gerado mediante a prática, por alguém, do ato que o origina.

Não se pratica uma cadeira: constrói-se uma cadeira, dá-se-lhe existência (facto) através da prática dos atos necessários à obtenção do resultado pretendido: serra-se a madeira, prega-se os pregos e por aí fora, todos eles atos visando a conssecução do resultado final idealizado: uma cadeira.

Para que ocorra o facto de a cadeira passar a existir, é necessária a prática de uma série de atos na sequência definida no procedimento técnico adotado pelo marceneiro. Da mesma forma, jamais uma pessoa poderá praticar um facto, apenas lhe sendo possível dar-lhe existência, torná-lo real, como resultado mediato ou imediato do ato ou dos atos que praticar.

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Qual é, então, a função de um dicionário?

Elucidar quanto aos significados que o costume sedimentado e enriquecido pela obra de consagrados autores gradualmente foi associando a cada termo ou, obedientemente, aos primeiros ir aditando todas as semelhanças, por muito ténues, que o falador mais ignorante resolver começar a associar-lhe, por ignorância, arrogância ou parola gabarolice?

Não tarda irá aparecer por aí um autodenominado dicionário que nos dirá que, além da vintena de significados que já lhe atribuem, rasgar significa também arrasar, dar cabo de, como agora é uso dizer-se nas redes supostamente sociais.  Será, então, caso de rasgar mas é o dito dicionário – ou melhor, de o deletar, como alguns gostam de dizer, já que bytes ainda ninguém descobriu como rasgar.

Ao gosto pela elegância na escrita sucedeu o mau gosto pela agressividade. Por este andar, a falta de exigência, de um mínimo de rigor, levará a que, um destes dias, rasgar signifique também… oferecer uma flor.


3. Confusão no Tribunal

Do que antecede haverá, naturalmente, que ressalvar termos como escrita, em que substantivos homónimos significam quer o ato de escrever, quer o seu resultado; e até o correspondente adjetivo qualificativo, para complicar. No plano global, porém, a proliferação vocabular não apenas traz consigo inevitável prejuízo para o rigor e para a fiabilidade dos significados inscritos nestes gigantescos índices de palavras, como facilmente conduz a evidentes erros lógicos, por vezes com repercussões lamentáveis, nomeadamente em áreas particularmente sensíveis do conhecimento e, dentro destas, a profissões cuja dignidade imprescindível ao funcionamento do Estado nos levaria, com toda a legitimidade, a esperar que cuidassem os seus agentes de falar e escrever de forma estruturada, até elegante e, sobretudo, clara.

Um caso evidente é o da magistratura, com especial acuidade no que se refere ao rigor e clareza da redação das decisões judiciais e de outras peças jurídicas, elaboradas por técnicos dos quais, em prol da fiabilidade das decisões prolatadas, seria de esperar que, em todas as situações, soubessem demonstrar especial capacidade para interiorizar, com precisão e critério, os conceitos e as respetivas e evidentes diferenças, em lugar de ceder a este novo facilitismo lexical que se apresenta, não apenas absolutamente injustificado e inútil, como contraproducente, apenas servindo para descredibilizar o desempenho de quem a ele adere e para, nos espíritos menos esclarecidos, a dúvida e a confusão fomentar.

O léxico comum, mesmo corrompido pelo facilitismo e pela indiferença, distingue-se de forma inconfundível do léxico jurídico, por maioria de razão quando se trata de conceitos técnicos muito específicos e frequentemente nomeados.  Sobretudo, não pode esse léxico comum inquinar ou desvirtuar conceitos que a teoria jurídica consagra e, até há algum tempo, a prática cuidava de aplicar.

Voltando aos atos e aos factos, e salvo melhor opinião, facto jurídico é qualquer ocorrência suscetível de gerar ou extinguir um direito, podendo também servir para manter ou alterar um direito previamente existente.  Já por ato jurídico entende-se, não um acontecimento, mas uma ação humana que, se for censurável, poderá corresponder a um comportamento deliberado ou meramente culposo.

Para o Direito, um facto é, assim, o efeito da causa que, quando originada num ser humano, se designa por ato, legítimo ou não. Trata-se, pois, de duas realidades distintas, de duas definições inconfundíveis. 

Consequentemente, ninguém pode ser responsabilizado pela mera ocorrência de um facto, mas,  unicamente, pela eventual autoria de um ato que, direta ou indiretamente, o haja provocado: pratica-se atos, comete-se crimes ou contravenções, enquanto os factos ocorrem, espontâneos ou provocados.

Como admitir, então, que em peças jurídicas, designadamente em acórdãos de altos tribunais e, até, de tribunais superiores, tantas vezes se leia que o arguido “cometeu os factos”, “praticou os factos pelos quais vem acusado”? (Para ver que não exagero, experimente o Leitor procurar no Google estas expressões…)

Como entender e aceitar que, durante a leitura do resumo do despacho instrutório*) relativo ao mais mediático megaprocesso da democracia portuguesa tenha o juiz hesitado visivelmente ao referir os “factos cometidos” por um dos arguidos? Como acatar uma decisão vinda de quem não reflete sobre alguns conceitos fundamentais que a ela subjazem?

Como, enfim, admirar e respeitar o legislador de um Código Penal Português que dispõe, repetidamente, sobre a "prática do facto"?

Salvo o devido respeito, como poderemos, com as devidas confiança e deferência, submeter-nos um dia ao julgamento de um magistrado, por muito graduado e considerado que seja, que reiteradamente demonstre nem algo tão elementar como a diferença entre os conceitos de facto jurídico e ato jurídico haver interiorizado, referindo-se a um e a outro como da mesmíssima coisa se tratasse? Como poderemos, em tais circunstâncias, confiar que a decisão do Areópago*) é sábia, segura e, sobretudo, rigorosa, características que lhe são legitimamente exigidas por quem à sua justiça se submete?

Isto, para não falar das trocas e das omissões de preposições, com as quais já ninguém muito parece ralar-se, como há dias encontrei num aresto em “pugna que sejam dados como não provados os factos” e outras maravilhas da produção de pessoas para quem a gramática não passa, porventura, de uma ligeira contrariedade para quem não tem, com ela, tempo a perder.

No entanto, “uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete” *).

Falar e escrever corretamente é um exigente, constante e contínuo exercício de inteligência e de lógica, executado sobre um suporte teórico que desde os primeiros anos da instrução primária nos é transmitido; é uma permanente demonstração do cuidado dispensado às coisas sobre as quais temos de nos interessar – como o modo de nos exprimirmos, ainda que ao nível mais rudimentar -, bem como da maior ou menor competência para, em tempo real, decidir quanto à mais correta utilização da palavra, no escrupuloso respeito pelas regras gramaticais.

Ora, se mesmo na fala a responsabilidade é tamanha, dado o mais dilatado tempo disponível, muito maior na escrita ela é, por maioria de razão.

Como acontece com a generalidade das peças jurídicas, a decisão judicial apenas é credível – logo, respeitável - se arrimada na análise rigorosa dos atos e dos factos, bem como, naturalmente, do direito a que eles possam ser subsumidos. Esta fundamentação precisa e objetiva é essencial e incompatível com qualquer tipo de indiferença ou de facilitismo, designadamente o lexical, assim não se afigurando possível olhar como boa uma decisão baseada em conceitos que, na mente do julgador, são, patentemente, vagos e confusos: como poderá levar a cabo uma judiciosa análise da prova – dos factos e dos atos na respetiva origem - e decidir qual o Direito aplicável, alguém que até uma distinção tão elementar como a que existe entre facto e ato demonstra ser incapaz de entender?

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4. Notas Finais

Não é verdade que Tanto Faz! 

A falta de rigor na expressão, particularmente na escrita, inquina fortemente a credibilidade de quem escreve, pondo em causa, muito especialmente no caso da magistratura, o âmago de uma função que é, simultaneamente, uma missão essencial ao assegurar do cumprimento de leis pensadas e elaboradas para a manutenção da ordem e da paz social, só nestas encontrando legitimação.

Podemos, até, ser os juízes mais sérios, mais sábios e tecnicamente mais sabedores que alguma vez prolataram uma decisão: ninguém alguma vez reconhecerá nos nossos escritos uma ciência que exprimimos com as palavras erradas; ainda que, quanto à substância, possamos ter, do nosso lado, a mais ampla razão.

Não basta saber:  é preciso saber dizer.

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Caso bem recente e nascido, ao que tudo parece indicar, da ânsia de, através de uma suposta mas falsa originalidade, aparentar sabedoria que se não tem, é o da substituição de resistência por resiliência.

Ora, tratando-se, como se trata, de conceitos bem distintos, a utilização à toa dos correspondentes vocábulos apenas conduzirá a uma enorme confusão.