sábado, 12 de junho de 2021


Por que não? Porque não!

"Quando a escrita se altera para acompanhar alterações na linguagem falada,
estamos perante uma evolução; mas, se a escrita muda por si só,
porque nem se foi ver, porque a gramática pouco importa, assim se caminhando
para o desconhecimento generalizado de determinada regra e das outras todas
e das razões que lhes subjazem, somos levados a pensar em indiferença,
em descaso, ou em mera ignorância gramatical
"


   1. O que por Aí Vai
   2. Exemplos de Autores Portugueses
   3. Comparação com Outros Idiomas Europeus
   4. Ao Ler, Como Entoar?
   5. Da Alegada Ausência de Objeto
   6. Uma Lacuna Teórica
   7. Conclusão


1. O que por Aí Vai…

Esclareça-se, antes de mais, que este texto não aborda a forma interrogativa por que? no sentido de por qual? Fazê-lo, nada de útil acrescentaria ao debate, uma vez que, a despeito da aplicação frequentemente errada de porque?, a existência de uma regra que manda utilizar, nestes casos, por que? parece ser, entre quem escreve sobre gramática, consensual.

Limita-se, assim, o âmbito do artigo à expressão da interrogação quanto à razão de ser, à causa do facto, à motivação da ação - que também ora encontramos introduzida por por que?, ora por porque?-, omitindo-se, propositadamente, o tema da formulação de perguntas, quanto à forma, ao modo ou a outra variável àqueles respeitante, que possam ser iniciadas por por qual?

- x -

A Internet é vasta e, em termos práticos, quase infinita, pelo que não tenho a pretensão de, na pesquisa a que procedi, ter consultado, sobre o tema, todas as páginas disponíveis.  Devo, no entanto, afirmar que, entre todos os defensores do porque interrogativo, não encontrei um único que fundamentasse a sua posição no livro de gramática de um conceituado linguista: ou, simplesmente, não citam, ou citam autores a partir de finais do século XX, também cada um dizendo a sua coisa sem qualquer fundamentação lógica que a sustente.

Demonstração maior da confusão que grassa é, precisamente, o facto de cada um classificar o famigerado porque interrogativo a seu bel-prazer: para uns é “conjunção interrogativa porque”, para outros “advérbio interrogativo porque?”;  há também quem lhe chame “pronome interrogativo porque?” e, como imaginação não falta, nem faço ideia do que mais por aí poderá haver.

Também encontrei quem citasse um autor que, num discurso emotivo, pretende não existir em por que? qualquer lógica ou análise viável, por, segundo ele, não se saber a classificação daquele que. Parece ignorar, talvez porque não procurou ou não encontrou, que aquele que não tem existência própria, antes sendo uma das componentes da locução adverbial por que? 1.

Esclarecendo o que diz a gramática1, os pronomes interrogativos são: que, quem, qual, quantos (pp.367).  Porque pode ser conjunção coordenativa explicativa (que, porque, pois, porquanto - pp.595),  conjunção subordinativa causal (porque, pois, porquanto, como [= porque], pois que, por isso que, já que, uma vez que, visto que, visto como, que, etc - pp.600) ou conjunção subordinativa final (para que, a fim de que, porque - pp.601).  Já os advérbios interrogativos são por que? (de causa), onde? (de lugar) como? (de modo) e quando? (de tempo).

Assim estabelecem Celso Cunha e Lindley Cintra duas coisas, que os que estudaram e publicaram antes do pântano de indefinição em que vivemos sabiam também:

a)   que tanto conjunções como advérbios podem ser formados por uma ou mais palavras, assim tornando inane e improdutiva a objeção pela – falsa – impossibilidade de classificação do que em por que?;

b)     que os pronomes também podem assumir a forma de locuções (pp.371);

c)  que por que? é o advérbio interrogativo causal ( por que? ) ou o pronome interrogativo ( que? ) que deve ser empregado em interrogações diretas e indiretas – e não porque?  (pp.557)

Não sou eu que o digo, são dois dos mais lidos, celebrados e consagrados linguistas; e, antecipando alguma objeção baseada na teoria peregrina, que já por aí vi, de que o por que? é a forma utilizada no Brasil, há que dizer que Lindley Cintra era português e que, embora editada a Gramática no Rio de Janeiro, os Autores distinguem os casos em que regras diferentes vigoram em Portugal e no Brasil.  Mas não fazem, neste este caso qualquer diferenciação.

O mesmo acontece, aliás, na edição portuguesa2, na qual porque? é inequivocamente referido como “advérbio interrogativo de causa” (pp.366).

Fontinha3 considera, por seu turno, tratar-se de um pronome interrogativo, sem, todavia, deixar de defender a grafia por que? (pp.90, n.º 204), enquanto, também entre os que defendem a classificação como pronome – neste caso, unicamente do que -. Torrinha4 explica que “os pronomes relativos têm um consequente claro ou oculto; mas, quando oculto, pelo sentido facilmente se subentende” (pp.160, n.º 313).

Esta última posição permite-nos, pois, concluir que, no caso do interrogativo por que? - seja ele pronome ou advérbio – estamos, muito simplesmente, perante um consequente oculto como razão, motivo ou outro, sendo esta a única diferença entre, por exemplo, por que razão? e por que (razão)?, assim não podendo a mera elipse do consequente servir para legitimar uma forma diferenciada porque?. Lembra, ainda, o Autor que “os advérbios dizem-se simples se constam de um só vocábulo; compostos ou locuções adverbiais, se constam de um grupo de palavras a que se pode atribuir o valor dum advérbio” (pp.253, n.º 473), assim respondendo à objeção de quem defende a inexistência de lógica em por que? por não se saber a classificação daquele que.

Já Gomes5, sempre sem unir o por ao que, considera estarmos perante a preposição por e o pronome relativo que no caso de “este é o motivo por que te digo isto”; e, tal como Cunha e Cintra, de um advérbio interrogativo no caso de “diz-me por que não vieste mais cedo” (pp.262), deixando ao porque somente o papel de conjunção subordinativa causal (pp.105).

Ressalvadas as diferenças na classificação, temos assim autores de diferentes épocas do séc.XX a defender a separação do por e do que sempre que empregues na forma interrogativa direta ou indireta, e independentemente da eventual ocultação do consequente.

Voltando aos que defendem o porque? interrogativo – os quais me dispenso de referir, de tantos que são, ultimamente, na Internet e não só, a seguir fielmente uns o que, arbitrariamente, dizem os outros -, até li quem, quiçá por não encontrar uma lógica clara e uma fundamentação precisa, se contentasse em sustentar que numa frase parecida com "porque não vieste?" não há objeto, pelo que a frase implicaria... causa! Mais não fazem do que manifestar aparente incapacidade para ver além do óbvio, designadamente identificando a bem patente elipse do consequente.

Mas que nexo de causalidade poderá existir entre a alegada falta de objeto e a suposta aquisição da componente causal?  E, se uma interrogação visa questionar sobre a causa, como pode pretender-se que a ideia da última não está na primeira, indelevelmente incluída desde a formação da questão?

Adiante revisitarei este assunto.

 


2. Exemplos de Autores Portugueses

Presumir positivamente é grave erro científico, mas, como terá dito um filósofo romano do século II d.C., é impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe.

Ora, curiosamente, os eruditos que, certamente com a melhor das boas vontades, se propõem, em sítios na Internet, esclarecer dúvidas de língua portuguesa a quem as tem, citam exemplos de autores consagrados para a conjunção - afirmativa - porque, mas, que eu tenha encontrado, nunca para o porque? interrogativo cuja existência insistem em defender, assim parecendo presumir que se trata, em ambos os casos, da mesma coisa.  Também isto algum significado há de ter…

O resultado da polémica é que, aparentemente, tanto o por que? como o porque? parecem estar a caminhar para a extinção, já que não são assim tão raros, por essa Internet, textos em que, porventura para fugir à polémica, os autores a eles preferem, sempre ou quase sempre, uma forma com o consequente expresso (cf Torrinha, 1946): “por que motivo?” ou “por que razão?”, relativamente às quais discussão não existe.

Exemplos de frases de mestres da nossa literatura poderão acrescentar alguma humildade ao esforço dos já citados teóricos eruditos, o que amplamente contribuirá para dignificar e credibilizar as suas posições:

Ø  Quem soubera/Por que tudo passou e foi quimera,/E por que os muros velhos não dão rosas!” (Florbela Espanca, “O Meu Orgulho” in “A Mensageira das Violetas”)

Ø  Por que é que não andamos, perguntou” (José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira”)

Ø  Não entendia por que se demorava a mulher tanto” (idem, ibidem)

Ø  Por que te assustas de cada vez?” (José Régio) 1

Ø  Mas por que para este infame comboio?” (Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”, no tempo em que o atual porquê? também ainda era por quê?)

Ø  Por que não ergue ferro e segue o atino/De navegar, casado com o seu fado?” (Fernando Pessoa, “A Minha Vida É Um Barco  Abandonado”, in “Cancioneiro”)

Ø  Por que lhes dais tanta dor?!” (Augusto Gil) 1

Ø  Mas por que não lhe telefona logo à noite, por que não recomeçam a velha e quase esquecida amizade?” (Augusto Abelaira) 1

Ø  Por que vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a cruz ensanguentada do calvário?” (Alexandre Herculano) 1

Em contrapartida, quantos porque? encontrarão os defensores desta inovação em autores anteriores a ter começado esta gramatical deriva que ninguém parece querer fazer parar?  Muito poucos, por certo; e não parece ajuizado defender minorias quando elas estão objetivamente erradas, como poderá ser aqui o caso.

A menos, claro está, que, como dizem que não há maior cego do que o que não quer ver, os defensores do porque? estejam todos certos e, comigo, Herculano, Abelaira, Gil, Régio e os outros completamente errados; até porque ninguém encontrei que encare o porque? interrogativo como uma evolução, mas, simplesmente, como uma intemporal e triste realidade.

Importante será, ainda, referir que Cunha e Cintra (2002)1 nem uma vez utilizam porque? para iniciar uma interrogação direta ou indireta, o que não pode ser considerado sem significação.

Apesar de tais exemplos, entre tantos, tantos outros, se me afigurarem inquebrantável evidência quanto à correção da forma interrogativa por que? também nas situações de omissão do consequente de que fala Torrinha (1946)4, intensificarei, de seguida, a defesa desta posição, dado que, embora fragilizada pela generalizada falta de fundamentação uniforme, coerente, sustentável  e válida,  ainda encontra grande oposição.

 

3. Comparação com Outros Idiomas Europeus

Dado que não estamos sozinhos no Mundo nem falamos só para nós – experimentemos ver a cara de espanto de:

- um francês, quando lhe perguntarmos: “parce que ne pas aller voir une comédie?

- um inglês, perante: “because are you here?

- um alemão, ao nos ouvir dizer: “weil den nicht?”

 

Pois não, não veremos qualquer cara de espanto, mas pela simples razão de, por não querermos fazer triste figura, alarvidades tamanhas nos não atrevermos a pronunciar!

Idioma

Forma Interrogativa

Forma Causal

Português

Por que?

Porque

Espanhol

¿Por qué?

Porque

Francês

Pourquoi?

Parce que

Inglês

Why?

Because

Alemão

Warum?

Weil

Já em português - o nosso idioma nativo! - não parece ter qualquer importância a progressiva corrupção da grafia do advérbio interrogativo por que? para porque?, termo próprio e exclusivo da conjunção coordenativa explicativa e das conjunções subordinativas causal e final.

 

4. Ao Ler, Como Entoar?

A fluidez é um imperativo da boa leitura mas, para que ela seja possível, necessário se torna que quem escreve cuide de, com a antecedência possível, transmitir ao leitor a entoação afirmativa, negativa ou interrogativa que deverá adotar, ao ler para si; ou para os outros, por maioria de razão.

Tomemos, como exemplo de uma hipotética fala, “Porque não conhecemos, de Lisboa para Coimbra, o horário dos comboios, não sabemos a que horas iremos chegar”.

A entender-se que porque deve ser utilizado quer na forma afirmativa, quer na interrogativa, ao começar a ler “Porque não conhecemosserá impossível saber por qual das duas entoações deveremos optar, podendo, facilmente, enveredar pela entoação interrogativa apropriada a “Por que não conhecemos, de Lisboa para Coimbra, o horário dos comboios?”, já que, ao começar a ler, não sabemos como a frase irá terminar.

Ao invés, se adotarmos, como forma interrogativa direta, por que? - e não porque? -, logo à primeira palavra “Porque” da frase do nosso exemplo ficaremos cientes de que a entoação afirmativa deve ser aplicada, enquanto, se a fala começar por por que, será de imprimir um tom interrogativo ao que se lhe seguirá.

Esta objeção tem razão de ser tão evidente quanto a certeza de não haver como, na prática, a contornar.  Dispenso-me, pois, de para ela outros exemplos, de entre inúmeros possíveis, aqui apresentar, considerando-se, assim, sobejamente demonstrado que, além da objeção gramatical propriamente dita, a indiscriminada e indiferente utilização do porque causa, também à fluidez da leitura, prejuízo claro e evidente, que cumpre evitar.

 

5. Da Alegada Ausência de Objeto

Voltando à alegada ausência de objeto (cf 1. supra) em, por exemplo, “por que não vamos passear?”, fácil se torna concluir que ela não ocorre, antes se tratando do recurso à elipse do mesmo – ou “omissão do consequente4 -, por comodidade de expressão.

Por que razão não vamos passear?” significa, precisamente, o mesmo que “por que [razão] não vamos passear?”, dado que a dúvida suscitada é, precisamente, a mesma, como precisamente a mesma é a causa que se pretende conhecer, e precisamente a mesma será a resposta a obter.

Sendo a pergunta e a resposta iguais, não há como argumentar que num caso não existe objeto.  Existe; simplesmente não se encontra expresso, foi elidido, omitido.

Ora, salvo melhor opinião, existindo o objeto e sendo ele o mesmo, nenhum fundamento existe para que sejam escritas ou classificadas de forma diversa uma e outra interrogações;  tampouco para, de forma absolutamente arbitrária, quebrar uma vez mais, do idioma, a estabilidade e a clareza essenciais à adequada e universal compreensão.

Se, ao perguntarem quando me irão tratar um dente, eu responder apenas “Tratam amanhã”, garanto que a elipse não gerará falta de objeto.  Pelo menos, na cadeira do dentista, onde o vou sentir da mesma forma que se tivesse respondido “Tratam o meu dente amanhã”.

Simplesmente, tal como acontece quando a seguir a por que? omito motivo ou razão, me terá parecido que o facto de cortar uma palavra ou duas não prejudicaria o significado nem o sentido da oração, o que é um facto.

Só porque escolho não mostrar alguma coisa, ela não deixa de existir.  Seria bom, por exemplo, se, para que o que é mau deixasse de existir, nos bastasse escondê-lo...

 

6. Uma Lacuna Teórica

Quando, como aqui acontece, queremos demonstrar a alguém a nossa razão, importa que seja firme e honesta a nossa convicção, havendo, outrossim, que esgotar, a favor e contra, a possível argumentação.

Devo, assim, sempre com o devido respeito, salientar que Celso Cunha e Lindley Cintra – e, com eles, a generalidade de quem, sabedor, escreveu sobre gramática - poderão não ter previsto todas as possibilidades ao classificar unicamente por que?, onde?, como? e quando?  como advérbios interrogativos.

Isto, porque apesar de também serem expressões interrogativas formadas por uma preposição seguida do pronome que, não se encontra, percorrendo a sua obra1, classificação para até que?, com que?, de que?, em que? entre que?, para que?, sem que?, sob que? e sobre que?.

Fica, pois, ao leigo a inevitável dúvida quanto à razão pela qual por que? merece a classificação própria de advérbio interrogativo causal, enquanto as outras expressões não são, por exemplo, para que? um advérbio interrogativo final, e até que? um advérbio interrogativo temporal?  Ou, inversamente, por que não é por que?, como elas, uma mera preposição seguida do pronome que?

Para esta aparente dualidade de critérios não encontrei, nas fontes consultadas, qualquer explicação.

Note-se, porém, que a dúvida se refere, unicamente, à classificação gramatical, é meramente adjetiva, e não afeta, de forma alguma, quanto aqui se disse relativamente à questão substantiva da indispensável utilização diferenciada do por que? interrogativo e do porque unicamente causal.

Esta aparente opção dos Autores por uma análise menos transversal do problema não deixa de sugerir, no plano prático, uma derradeira questão: se se insiste, atualmente, em transformar por que? em porque?, por que não fazem o mesmo com atéque?, conque?, deque?, emque?, entreque?, paraque?, semque? e sobreque? ?

Ridículo?  Sem dúvida, tal como o porque? o será também.

 

7. Conclusão

Toda esta polémica em redor da forma interrogativa por que? é notoriamente injustificada e vazia de fundamentado conteúdo, além do que que, sobre o tema, existe doutrina bem firmada na gramática portuguesa.

O perigo verdadeiro está naquilo para que me não tenho cansado de alertar: a arbitrariedade, a arrogância com que qualquer um se atreve a, com o maior dos à vontades, “esclarecer”, como dizem, os leitores mergulhados na dúvida – cada vez mais legítima dada a proliferação de informação errada – por ação de meras opiniões não fundamentadas, expressas como se autênticos dogmas fossem as respetivas conclusões.  Tudo isto agravado – e muito - pelo facto de o corretor do Word em que escrevo sugerir a utilização de porque sempre que escrevo por que; e aqui pode estar uma bem importante causa da estonteante proliferação do erro.  Note-se que falo do mesmo infalível Word que não se coíbe de contar como uma palavra qualquer coisa que seja ladeada de espaço, antes e depois, ainda que se trate de uma consoante isolada ou um simples hífen.   Experimentem lá… E é esta coisa que dita, junto dos menos instruídos e não só,  as regras da gramática portuguesa!

Eis, pois, belíssimos exemplos das razões que - na perspetiva do leigo que, por isso mesmo, se sustenta em autores consagrados - me levaram a dedicar algumas linhas à reflexão sobre o crescente facilitismo na utilização da Língua Portuguesa.  Eis, também, por que, no texto de apresentação da mesma (v. "Tanto Faz!" - Fev 2021), falo de liberdade e ambiguidade, de indiferença e facilitismo, de falta de fundamentação.

A verdade por detrás de toda esta discussão estéril parece bem simples: agravada pela tendência social crescente para o “Tanto faz!", a manifesta dificuldade, devido à deficitária consciência gramatical da generalidade da população, em destrinçar o que separa o por que? interrogativo do porque causal – sem interrogação - tem levado a que, nos anos mais recentes, o primeiro tenha sido substituído por uma espúria forma supostamente interrogativa porque?

Apesar da enormíssima asneira que tal representa – não só pela ambiguidade de inquina a expressão verbal, como pela inútil dificuldade que introduz na leitura -, a pouco laboriosa investigação por parte de quem, de forma empenhada a deveria ter empreendido antes de, supostamente ex catedra, se pronunciar, terá levado a que certos autoproclamados linguistas se tenham encontrado num beco sem saída, pleno de classificações criativas mas inexistentes em qualquer gramática que por eles não haja sido escrita – ou por outros como eles nestes mesmos tempos mais recentes -, entre elas diferindo substancialmente:  ora é pronome, ora conjunção, ora até advérbio porque?

Confundidos, foram procurar justificações numa alegada mas inexistente perda de objeto, num suposto tratamento diferente em Portugal e no Brasil – sem explicar que o mesmo se deveu, simplesmente, ao facto de o Brasil se não ter (ainda) deixado levar na onda de degeneração do advérbio -, até, quiçá ignorantes da existência de locuções, argumentar com a impossibilidade de classificação gramatical do que de por que?

Ora, quem se queixa da alegada impossibilidade de classificar, individualmente, o que de por que?, como classificará o que de para que? ? Ou deveremos, mesmo, adotar o (ainda) inexistente paraque? ?

A investigação foi, também, descuidada ao não ter analisado a realidade de algumas das línguas europeias mais comummente faladas entre nós, nas quais existem, sempre, termos diferenciados para a interrogação – direta ou indireta – e para a afirmação causal;  e descurou, até, a comparação da evolução de outras interrogativas formadas por preposição seguida do tal inclassificável quecomo para que? -. também elas possíveis locuções interrogativas.

Aos que discordam da afirmação de que a ignorância e o facilitismo se encontram na génese da confusão, lembrarei quem tem "nada porque viver", "aquilo porque passei", "porque caminho vais?", e outras das mais chãs manifestações de gente que não sabe escrever, tão correntes na imprensa e nas legendas que, diariamente, nos entram na mente através da televisão. Não tarda, andará por aí quem esclareça dúvidas da língua portuguesa com base no advérbio ou pronome interrogativo de lugar poronde, e outras originalidades que tais...

- x -

Quando a escrita se altera para acompanhar alterações na linguagem falada, estamos perante uma evolução; mas, se a escrita muda por si só, porque nem se foi ver, porque a gramática pouco importa, assim se caminhando para o desconhecimento generalizado de determinada regra e das outras todas e das razões que lhes subjazem, somos levados a pensar em indiferença, em descaso, ou em mera ignorância gramatical.

Em prol da manutenção da clareza e da estabilidade da língua, bem como da essencial fiabilidade da mensagem, proponho que o Word corrija o seu corretor, e que quantos se manifestaram a favor do porque? interrogativo apaguem os seus esclarecimentos dos sítios em que os afixaram - já que nos livros pouco haverá a fazer -, ou me corrijam fundamentando devidamente em autores consagrados da gramática portuguesa as suas tão criativas opiniões.

Proponho, também, que a forma interrogativa porque? seja, definitivamente, erradicada da escrita, mantendo-se a utilização de por que?interrogativo que sempre foi e que, querendo quem manda, sempre será.

* *

A verdade é, porém, que um vício, em especial um vício linguístico, é muito difícil de curar, de reverter, já que as pessoas que a ele rapidamente aderem são às dezenas de milhar.

"Dezenas de Milhar"? Ou deverá, antes, dizer-se "dezenas de milhares"? Ou uma e outra expressões, conforme o caso em que as queremos aplicar?

Leia aqui o desenvolvimento desta questão!


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará.


1 Cunha, Celso e Cintra, Lindley  – “Nova Gramática do Português Contemporâneo” – 7ª edição, 2016 – Lexicon Editora Digital, Rio de Janeiro

2 Cunha, Celso e Cintra,Lindley – “Breve Gramática do Português Contemporâneo” – 15ª edição, 2002 – Edições João Sá da Costa – Lisboa

Fontinha, Rodrigo Fernandes – “Gramática Portuguesa Elementar” – 2ª edição, 1951(?) - Editorial Domingos Barreira – Porto

4 Torrinha, Francisco – “Gramática Portuguesa” – 7ª edição, 1946 – Edições Marânus – Porto

5 Gomes, A. - “Lições Práticas de Gramática Portuguesa” – Livraria Simões Lopes - Porto


sábado, 5 de junho de 2021


Sporting: Direito de Comemoração?

"Ao aceitar, apesar de tudo, manter-se em funções, poderá o infeliz e desajeitado
Ministro da Administração Interna estar a fazer um enorme favor ao amigo que o nomeou,
mas é incomensurável o dano que, nessas mesmas funções,
causa a cada um dos desgovernados que agora somos"


   1. Direito de Manifestação ou Direito de Comemoração?
   2. O Imperativo Legal de a Câmara Municipal de Lisboa Impedir as Comemorações
   3. O Improviso Quase Encomendado
   4. Desmandos a Mando do Futebol
   5. Hooligans à Portuguesa
   6. Os Poderes Políticos Foram Eleitos, Nomeados e Mandatados para quê?


1. Direito de Manifestação ou Direito de Comemoração?

Mais do que uma necessidade, a desambiguação vocabular*) constitui imperativo de quantos primam por fazer-se entender na significação estrita que quiseram exprimir, mormente em questões de índole jurídica ou política, por serem das que mais expressivamente afetam a vida e o bem-estar individual e coletivo e, no caso de que aqui trataremos, dando especial relevo às relacionadas com a preservação da saúde e da vida num cenário de epidemia ou de pandemia - de COVID-19 ou de qualquer outra que, a mais ou menos breve trecho, não deixará de vir.

Refletirei brevemente sobre a diferença entre os substantivos objeto e objetivo, reflexão essa antecedida de outra sobre o que se entende, por um lado, por direito de reunião ou direito de manifestação e, por outro lado, por direito de promover ajuntamentos de pendor mais ou menos chauvinista, destinados à glorificação de sucessos desportivos, ou a exaltar as assim chamadas conquistas de um ou outro clube de futebol.

Exemplificarei com aquilo que ocorreu em Lisboa*) e um pouco por todo o Portugal*) no dia em que se soube que, ao fim de dezanove anos de jejum, o campeão nacional português de futebol de 2020/2021 iria ser o Sporting Clube de Portugal.

- x -

A diferenciação entre o direito de reunião e o direito de manifestação não mereceu, por parte dos Constituintes de 1976,  ser contemplada no Diploma Fundamental. No entanto, enquanto o direito de reunião não tem uma conotação necessariamente política, pode significar o que quisermos, o direito de manifestação radica na própria ideia de democracia, parecendo inegável ser dirigido à divulgação e salvaguarda dos direitos políticos de cidadãos que pretendam fazer valer, junto de terceiros, os seus pontos de vista, na defesa de causas que, num quadro democrático, lhes mereçam atenção e dedicação.

Dificilmente fará, assim, qualquer sentido confundir com manifestação um ajuntamento magno de adeptos de uma associação desportiva ou qualquer outra de cariz mais ou menos lúdico, visando o simples alarde da vitória de umas dezenas de milionários que passaram boa parte do ano – e da vida - a procurar enfiar uma bola de dimensões relativamente ínfimas numa rede imensa, mesmo que esteja ela zelosamente defendida por um abnegado guardador.

Estas explosões de cariz irracional e primário promovidas, de forma rotineira, por claques nascidas do fanatismo de uns poucos que parecem pouca ou nenhuma ideia ter do que por aqui aos outros andam a fazer - e, por assim dizer, descarregam, nos infelizes que pertencem a outro clube, as excrescências humorísticas do sucesso a que chamam “nosso” e que, por instantes, quase os faz esquecer a futilidade das sua vidas sem rumo –, enquadram-se, portanto, não no direito de manifestação, mas no direito de reunião que, no final da década de setenta do século passado, pelos Constituintes, terá, também ele, sido mais mais associado ao direito de reunião política e democrática do que ao das comemorações mais ou menos alarves, dos banquetes ou das festas de aniversário mais ou menos parolas, sobre os quais, porventura por manifesto demérito de tais eventos, nem lhes terá parecido necessário ou útil regular.

Há que lamentar, também aqui, aquela que parece ser uma ideia generalizada por parte de quem legisla, essa de não se ter, amiúde, o cuidado mínimo de clarificar o que se entende por cada conceito ou termo técnico-jurídico utilizado, antes deixando ao mal preparado cidadão a tarefa de adivinhar – porque para mais não sabe - nos termos do art.9º do Código Civil*), e aos tribunais o cuidado de, mais tarde, interpretar quando a coisa dá para o torto e pouco ou nada haverá, já, a fazer para o dano evitar. Depois, fica toda a gente muito admirada com o entupimento do sistema judiciário com coisas que, com um pouco de cuidado, até teria sido bastante fácil evitar.

Entendeu-se, pois, nos conturbados anos da génese desta já não tão jovem democracia, que o direito de reunião era algo suficientemente próximo do direito de manifestação para nem justificar que fosse contemplado em norma distinta, assim tendo o texto do art.45º acabado por dizer, sob a epígrafe “Direito de reunião e de manifestação”, que “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização” e que “2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação”.

Não obstante, o art.1º do Decreto-Lei 406/74, de 29 de Agosto, é bem claro ao interpretar o texto constitucional no sentido de que esses direitos de reunião e de manifestação apenas são reconhecidos “para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à tranquilidade públicas”, explicitando o n.º 2 do seu art.3º que “As autoridades competentes só poderão impedir as reuniões cujo objeto ou fim contrarie o disposto no artigo 1.º (…) *)".

Reza, por fim, o n.º 1 do art.5º que “As autoridades só poderão interromper a realização de reuniões, comícios, manifestações ou desfiles realizados em lugares públicos ou abertos ao público quando forem afastados da sua finalidade pela prática de atos contrários à lei ou à moral ou que perturbem grave e efetivamente a ordem e a tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos das pessoas ou infrinjam o disposto no n.º 2 do artigo 1.º


2. O Imperativo Legal de a Câmara Municipal de Lisboa Impedir as Comemorações

O que, antes de mais, haverá que clarificar é, sob o ponto de vista vocabular, a destrinça entre objeto e fim, conceitos muitas vezes confundidos dada a semelhança terminológica entre objeto e objetivo (substantivo significando finalidade, fim), mas que, porque a letra da lei os separa, haverá, também, que na interpretação assim fazer.

Afastando-nos da tendência para a ligeireza e o facilitismo por parte de quem entende que qualquer coisa pode significar tudo e mais alguma coisa, dir-se-á que, enquanto por finalidade ou fim se designa o objetivo, a motivação, a razão pela qual determinado ato é praticado ou um processo desencadeado, por objeto entende-se aquilo sobre que esse ato ou processo incide ou sofre os seus efeitos sem, todavia, constituir a finalidade do mesmoObjeto é toda a coisa, o assunto, a substância que são afetados pela concretização das medidas que visam a prossecução do objetivo. Todas as pessoas que estão próximas ou que, de alguma forma, podem ver afetados os seus legítimos direitos são, desta forma, objeto de uma comemoração que, mesmo indiretamente, os afete, mas não são o seu objetivo, o qual mais não é, afinal, do que a exaltação, apenas por uns quantos, de determinado acontecimento que noutros tão pouca euforia suscitará.

As pessoas, todas as pessoas próximas, são, então, objeto, ainda que involuntário, de qualquer reunião que tenha, como objetivo, uma comemoração como a que há dias aconteceu em Lisboa, às portas do Estádio José de Alvalade e pela rua fora, até ao Marquês de Pombal*).

Dito isto, nos termos do citado n.º 2 do art.3º do Decreto-Lei 406/74 as autoridades poderão – e deverão, já que de um poder vinculado se trata – impedir a realização de reuniões ou manifestações sempre que, não apenas o objetivo*) declarado seja contrário “à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à tranquilidade públicas”, mas também quando, pelas suas características ou natureza, previsivelmente resultem no afrontamento de qualquer destes valores junto de quem se torna objeto*) involuntário da comemoração.

Exemplificando, se o promotor de determinado evento entrega à entidade competente um aviso prévio nos termos do art.2º do mesmo Decreto-Lei, tem esta o poder-dever de impedir o evento desde que, fundamentando, conclua que o direito dos cidadãos à segurança sanitária em tempos de pandemia será seriamente comprometido pela realização do evento nos moldes previstos, ou que dela resultem danos à ordem e à tranquilidade pública.

Saliente-se que, contrariamente ao que por aí se tem dito para alijar responsabilidades evidentes, nada têm estas disposições a ver com qualquer estado de calamidade ou de emergência, sendo de aplicação genérica, mesmo em conjunturas consideradas normais.

Assim, dúvida não pode existir de que a autoridade do Estado jamais e de forma alguma estará limitada na defesa da ordem e na salvaguarda dos direitos dos cidadãos contra os desmandos de meia dúzia de alarves que preferem ignorar que têm o direito a quase tudo, mas não àquilo que a lei expressamente, no interesse de todos, proíbe.

A Constituição é o garante da democracia, não um pretexto para a claquocracia, para a chauvinocracia ou para a futebolocracia, que em tanta coisa, hoje em dia, parecem mandar e tanto temor junto do poder político suscitar.

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Refira-se, ainda, que embora a redação original do n.º 1 do art.2º dissesse que deveria ser avisado “o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito”, com a extinção do cargo de governador civil a capacidade para receber o aviso passou a ser exclusiva dos presidentes da câmara (cf. art.2º da Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro*)), assim inexistindo qualquer dúvida ou uidade relativamente a ela.

Não é, pelo exposto, verdade que “Dentro do que é o nosso quadro de competências, a Câmara de Lisboa não tem de autorizar manifestações, nem reuniões. Ou elas acontecem espontaneamente ou tentam organizar-se com os promotores"*) . Ocorre antes que, longe de corresponder a uma inconstitucionalidade material, a delimitação casuística, por parte das câmaras municipais, do direito de manifestação no quadro da legislação já referida é um imperativo legal, que em nada diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (cf nr.3 do art.18º da Constituição da República Portuguesa).

Por fim, perante um desfilar de cidadãos fortemente etilizados numa altura em que o consumo de bebidas alcoólicas era proibido na via pública, perante milhares de indivíduos colados uns aos outros e sem qualquer proteção na cara, numa altura em que o distanciamento social é obrigatório, tal como o uso de viseira ou máscara, estes factos constituem razão mais do que suficiente para obrigar as autoridades a determinar às forças de segurança que ponham cobro ao evento ao abrigo do que diz o n.º 1 do art.5º do Decreto-Lei 406/74 – ou nos termos, já que se trata, como vimos, de um poder vinculado.

Ponham cobro”, desde que, naturalmente, lhes disponibilizem os meios adequados*).


3. O Improviso Quase Encomendado

A competência para o desempenho de funções de gestão ou políticas é medida, essencialmente, pela capacidade de integrar, no planeamento da ação, uma precisa antevisão do resultado e a eficaz mobilização dos meios necessários à sua consecução. Bem pelo contrário, dizer que “Uma vitória do Sporting seria sempre uma realidade muito difícil para a cidade de Lisboa *) é como se o Presidente da Câmara encarasse os efeitos mais do que previsíveis da vitória, no campeonato da Primeira Liga de futebol e decorridos tantos anos de jejum, de um dos principais clubes desportivos da Capital com a mesma dose de fatalidade com que contempla o cíclico entupimento de sarjetas e bueiros nas estações do ano em que a chuva molha a sério: simplesmente não sabe o que há de fazer, que medidas há de tomar.

Seria, é verdade, impossível prever com precisão o momento exato em que se declararia a pandemia, mas era inevitável que algo como o que aconteceu entre a Segunda Circular e o Marquês de Pombal sucedesse após quase duas décadas sem vencer o Campeonato por parte de um Clube preponderante num desporto que representa, para muitos, a última esperança de um pouco de euforia na vitória, para esquecer o quotidiano das suas vidas desgraçadas  e em permanente derrota.

Não é, precisamente, esse o papel do Presidente da Câmara, saber o que deve fazer? Não terá, por acaso, ouvido falar da tragédia de Hillsborough*) e do que se lhe seguiu? Como pode, então, assistir impávido e omisso a um ajuntamento selvático, quase com contornos de tumulto, pondo em risco a ordem pública e a salvaguarda do direito à saúde de parte significativa dos munícipes?

Falta de planeamento, falta de reflexos pela Administração, paralisia política no momento, trapalhice e confusão generalizadas em plena pandemia, com fé quase absoluta na eficácia de vacinas ainda incompletamente testadas, são conclusões que sintetizam bem o que se terá passado.

Apesar da desolação das alternativas disponíveis, perante resultados previsivelmente fracos  nas já bem próximas eleições autárquicas, depois de pareceres negativos da Direção-Geral da Saúde e de preocupações veemente expressas pela Polícia de Segurança Pública – cujo email a Câmara alegadamente leu apenas dois dias depois de ter sido enviado -, temos a Tutela, o Partido Socialista e o sucessor tacitamente indigitado do seu Secretário Geral a procurar sacudir a água do capote e alijar responsabilidades, escudando-se, indevidamente, numa lei que, por acaso, até é bastante clara e não dá cobertura às habituais esquivas e golpes de rins. Ou a ficar em silêncio, como, uma vez mais, o eterno e irremediavelmente desajeitado Ministro da Administração Interna*).

Ante a previsível balbúrdia, pensaram, e reuniram, e pensaram, e pensaram horas estiradas sem atinar com a solução, “sempre num cenário muito difícil, que era o de saber que haveria vários milhares de pessoas na rua*), coisa que nem lhes passou pela cabeça impedir, já que tal ato de coragem politicamente irresponsável iria, sem qualquer dúvida, várias dezenas de milhar de votos custar a quem há muito se empenha desesperadamente em, procurando evitar a morte política inevitavelmente ligada à derrota, à tona de água esbracejar.

Se um écran gigante não serve para agregar multidões à sua volta, serve para quê?  E foi pedida licença? Se foi, a quem competia autorizar? Quem autorizou? Porquê?


4. Desmandos a Mando do Futebol

Uma das utilidades sociais do desporto é o facto de permitir drenar a animosidade naturalmente latente em cada indivíduo, assim não sendo se estranhar que o extravasar de emoções aconteça, por vezes, sob a forma de violência bestial e selvagem vinda de brutos acéfalos, indiferentes a quaisquer tentativas ou formas de sensibilização, e que apenas podem ser controlados pela força.

Aquilo a que assistimos pela televisão não são manifestações de alegria, porque não se sabe, sequer, o que é alegria na selva moral onde vivem aqueles bandoleiros desperados, no seu deserto intelectual. Já se sabe que não têm culpa da má sorte que os persegue; que a culpa é um bocadinho de cada um de nós ou de todos nós; que, no estado a que, por nossa causa, chegaram já não têm recuperação possível e por aí fora. Mas, independente de tudo quanto, a seu respeito, possam dizer e possa dizer-se têm de ser controlados; e, se não houver como os controlar, têm de ser punidos, judicialmente afastados do nosso convívio, por magistrados apolíticos e não rendidos aos encantos do assim chamado desporto rei ou de qualquer dos seus clubes, independentemente da dimensão. Não é em vão que futebol é futebol, e o resto são meras modalidades das quais, na maior parte das  vezes, até estranhamos ouvir falar.

Somos economicamente escravos do futebol porque futebolistas e seus treinadores são, por assim dizer, o único produto que lá fora nos granjeia alguma daquela notoriedade essencial à captação de massas de turistas notoriamente parolos, mas cujos sacos de dinheiro são vitais para a atenuação possível do desequilíbrio crónico da balança de pagamentos de um pequeno país que pouco mais sabe fazer do que sorrir ao cámon para assegurar o seu sustento sem ter de pedinchar demasiado lá fora nem aumentar, cá dentro, os impostos a ponto de comprometer, num dos mais corruptos países da Europa e do Mundo, o acesso à panela da República por parte dos mais ou menos crónicos penduras de tão disponível  e cobiçado maná.

Não se diga, porém, que este analfabetismo social e cultural se deve, unicamente, aos famosos quarenta e oito anos de obscurantismo: contei, já, quarenta e sete da suposta época esclarecida e não vejo jeitos de o domínio social e político dos tugas da bola dar sinais de começar a claudicar.

5. Hooligans à Portuguesa

Podemos apiedar-nos, sentir-nos culpados até às lágrimas pela desdita desta gente eticamente enviesada e que, a cair etilizada, de tronco nu, arrastada pela polícia brada, perante as câmaras de televisão e na voz teatral, fininha e esganiçada do popular Zé Chunga que “eu não fiz mal a ninguém”.

Podemos bater no peito as vezes que quisermos, sentir o mais genuíno e premente impulso de correr a salvá-los ou, mais simplesmente, a confortar os seus amargurados e desesperançados corações: têm, mesmo assim, de ser segregados, contidos, em nome do bem maior da segurança de todos os outros que aqueles que aceitam funções governativas juraram proteger e defender, por imperativo constitucional, e independente do impacto no resultado eleitoral.

Num tempo em que ainda se testa a eficácia das vacinas, a simples existência de seres ditos humanos que, nesta ocasião como em tantas outras como, por exemplo, num convívio sem distanciamento ou máscara, não hesitam em nos expor, a todos, a novos surtos ou, mesmo, vagas da pandemia a despeito do sofrimento e da morte dos que foram infetados e dos que, agora, ficaram em risco de o ter sido - sem esquecer a dedicação e abnegação de quantos trabalharam para os evitar - diz bem da maldade, da indiferença, da baixeza de um punhado não tão pequeno daqueles tugas primários e broncos, independentemente do grau de instrução, cujo voto conta tanto como o de qualquer outro, mas que não passam de acéfalos alarves centrados no próprio umbigo, objetivamente feio mas, para eles, tão precioso e digno.

Não se trata de um epifenómeno, mas de uma demonstração da essência daquilo em que, dia a dia, a utilização que temos vindo a fazer do progresso e da técnica está a fazer descambar a civilização como – ainda - a conhecemos; de uma antevisão do futuro se nenhuma medida de fundo no sistema educativo for tomada para o evitar, se nada de eficaz for feito em prol destas pessoas, para dar repouso ao seu desespero latente, para romper neles a crosta do torpor, da indiferença e da inconsciência que, cada vez mais, os afasta dos demais.

Que mensagem estavam, afinal, aqueles indivíduos a tentar passar, que ideal pretendiam, ao abrigo do direito de manifestação, estar a manifestar?

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Os autodenominados manifestantes não expressaram concordância ou discordância com o que quer que fosse. Quando muito, reuniram-se na expressão mais pobre do termo, já que nenhum assunto ali foi tratado. Mais simplesmente, ajuntaram-se amontoaram-se para fazer barulho. Nada mais.

Um mar de gente que, tal como as baleias vão morrer à praia, os usos e o instinto guiaram, amalgamados e sem máscara, para o inevitável Marquês de Pombal. Uma celebração apenas para tornar célebre o feito de meia dúzia de privilegiados, um ajuntamento sem qualquer conteúdo intelectual ou ideológico, uma festarola perigosa nestes tempos de preocupação sanitária e económica, que, como tal, deve ser encarada.

Proponho, assim, a introdução, na Constituição, de um art.45º n.º 3 especificando que “os direitos de manifestação e de reunião não abrangem os eventos de caráter particular, os de índole meramente lúdica nem os relativos a comemorações de âmbito limitado a associações de natureza não política nem sindical, os quais serão regulados nos termos gerais e nos da legislação especial aplicável”.


6. Os Poderes Políticos Foram Eleitos, Nomeados e Mandatados para quê?

A esquálida atuação do poder político contra esta mole humana destacou meios policiais em tão parca quantidade que amiúde se viram forçados a recuar, a reagrupar, a tomar medidas para se proteger.

Com polícias agredidos e feridos, seria de esperar que alguém fosse chamado a pagar por tais crimes. Estamos, porém, em Portugal, paraíso dos brandos costumes, e os políticos e os politiqueiros bem sabem que assim é, pelo que, com a desorientada ação ou com a crónica tendência para a inação, pouco ou nada estão, afinal, a arriscar.

Estamos, também, no Portugal que vai, como sempre, ficar impávido perante o Rt de 1,1 ontem registado no Continente e que acaba de determinar a exclusão da zona verde - sem quarentena obrigatória - na classificação do Reino Unido, automaticamente implicando uma catástrofe económica para o turismo, sobretudo para o Algarve onde o cancelamento de reservas se não fez esperar.

Falta, agora, saber o impacto das comemorações, no Porto, da final da Champions, que fará com que o Presidente da Câmara Municipal do Porto poucas razões tenha, também, para se gabar. Falta, esclarecer, por que foi permitida a presença dos hooligans na Cidade Invicta para uma final entre duas equipas ingleses, quando, em Coimbra, só a uns quantos convidados foi permitido assistir à final da Taça de Portugal.

Portugal continua à deriva, entregue a uma equipa governativa incompetente e totalmente dependente de um Primeiro-Ministro que continua ausente, aproveitando a oportunidade única de campanha eleitoral que a Presidência Portuguesa da União Europeia representa para as suas aspirações a um importante cargo europeu.

Ao aceitar, apesar de tudo, manter-se em funções, poderá o infeliz e desajeitado Ministro da Administração Interna estar a fazer um enorme favor ao amigo que o nomeou, mas é incomensurável o dano que, nessas mesmas funções, causa a cada um dos desgovernados que agora somos.

Por sua vez, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa demonstrou, uma vez mais, não ter a mais ínfima qualidade para almejar o alto cargo de primeiro-ministro, furtando-se a agir com determinação e firmeza quando as circunstâncias, inegavelmente, o exigiam. Faz lembrar aqueles miúdos que limpam as mãos à camisola branca para ninguém ver que estavam sujas, porque ninguém lhes disse - nem têm discernimento para entender - que a porcaria se vê muito melhor na roupa do que nas mãos.

Contas feitas, e porque o que importa é a gente divertir-se e conviver, lá irá a incompetência impor-se nas eleições aí à porta, um pouco como naqueles eventos de certas associações desportivas em que apenas há dois competidores inscritos e um deles, por falta de comparência do outro, o título de Campeão lá acaba por ganhar.

Ut flatus venti, sic transit gloria mundi