"Como explicar que, a par de um atendimento reconhecidamente mais próximo
e eficiente
por boa parte do funcionalismo público, seja,
paradoxalmente, na área da diplomacia
que tamanha aberração acontece?
Que de forma tão grosseira se manifesta, não apenas a ineficiência
funcional,
mas a desoladora indiferença, a desgraçada falta de
coração, de formação, de educação?
Num Estado que se diz humanista, não há lugar para uma diplomacia fria,
dura,
indiferente a quem, com dois, um ou quase nenhum pulmão
caminha
por uma rua cheia de pessoas que não choram, e impede que,
pelo menos,
sobrevivam juntas pessoas que poucas outras têm a quem
dar a mão."
Da missão da comunicação social já muitas linhas se escreveu. Também das
múltiplas formas como é desvirtuada tão nobre missão, formas essas que a
fértil imaginação humana não pára de, pela negativa, enriquecer. Chegaram,
mesmo, as coisas a ponto de serem criados produtos informativos,
impropriamente chamados polígrafos, cuja única função é averiguar e
denunciar mensagens e notícias falsas, num Mundo cada vez mais profundamente
mergulhado na dúvida quanto à bondade das intenções de quem noticia, seja nas
mais agressivas redes sociais, seja na teoricamente mais
cândida blogosfera, seja, enfim, na teoricamente bem mais
responsável imprensa tradicional.
Nada disto é novo, tal como novo não é o facto quase apenas o que é
mau ser capaz de atrair a atenção de uma cada vez menos educada e
menos diferenciada opinião pública, essa solitária mole de mais ou
menos desgraçados mas quase sempre desengraçados seres humanos ávidos de
qualquer coisa picante, ou lastimável, ou terrível que lhe permita sacudir,
ainda que por breves momentos, a poeira que lhes forra o vazio do coração.
Tornam-se, assim, raros os casos em que os mais
consagrados media se podem, do ponto de vista económico, dar
ao luxo de, a um ou outro caso pessoal verdadeiramente desesperado, dedicar
algumas letras por entre os pingos da chuva desta bombástica e inesperada
maioria absoluta que até as repetitivas e já nauseantes notícias da pandemia
para enésimo plano acaba por conseguir relegar.
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Assim aconteceu há uns dias, com o semanário
Expresso*), relativamente à notícia da impossibilidade de obtenção de visto para
entrada em Portugal por parte de uma senhora guineense que pretendia apoiar a
filha doente; com carinho e companhia, já que pouco mais terá para
dar. Uma filha que mora sozinha num primeiro andar sem elevador que,
pelas escadas, mal consegue alcançar. Uma filha, que há vários anos, aguarda
um indispensável transplante pulmonar, e a quem, mesmo com o aparelho portátil
de fornecimento de oxigénio regulado na potência máxima, o ar falta até para
se deslocar até a uma biblioteca para estudar.
Enquanto espera e quase desespera, Isabel Bapalpeme luta para não enlouquecer,
agarrando-se à penosa frequência e estudo de um curso profissional que poderá,
um dia, permitir-lhe outros horizontes vislumbrar.
Apesar de, cinicamente, tendermos a dizer que temos muita pena mas que a
pobreza é preocupação do Estado e cada um de nós, individualmente, pouco ou
nada poder fazer para a debelar, a verdade é que, a menos que não passemos de
bestas insensíveis, notícias de casos de pobreza sempre nos hão de entristecer
e de, de longe a longe, fazer pensar. Mas, por cruel que possa parecer, a
verdade é que casos de pobreza como este - em que, até há poucos dias, os
trabalhos de casa eram feitos no telemóvel por nem um pequeno computador ter
para estudar - não são notícia, ou os noticiários ocupariam as emissões de
dias inteiros, e seriam necessários vários volumes para publicar os jornais.
O que torna este caso escabroso é, antes, o facto de,
apesar das diligências levadas a cabo junto da Embaixada de Portugal na
Guiné-Bissau alertando para a gravidade da situação e para a necessidade
fundamental da presença da família, vai para quatro anos que a Mãe de Isabel vê o seu visto de entrada em
Portugal negado pelas autoridades: ora por não ser possível comprovar a
intenção de abandonar o território português antes de o jamais concedido visto
caducar, ora porque o tipo de visto pedido não era o adequado e ninguém do
facto se dignou esclarecê-la, ora porque há documentos em falta no processo,
ora sabe-se lá por que mais que nem vem nos jornais.
Nos píncaros do ridículo da ação do autoproclamado humanitário Estado, lá
continua Isabel Bapalpeme, ao fim de quatro longos anos, privada da
companhia clinicamente imprescindível da Mãe apenas porque esta, em
lugar de um visto de tipologia E7 terá pedido um visto de
tipologia "E" não sei que mais.
O editor de quem escreveu que "a juventude esbate-se, o amor esmorece, as folhas da amizade tombam, mas
todos sobrevive a esperança secreta de uma mãe" esqueceu-se, por certo, de enviar um exemplar da obra à Embaixada de
Portugal na Guiné-Bissau e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros...
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Eis senão quando, humilhado pela atenção que a inenarrável indiferença de
responsáveis e subalternos a este caso trouxe, salta o bem-aventurado
humanismo mediático do dito Ministério a dar instruções urgentes à
Embaixada no sentido de proceder, sem mais demora, à tão desejada
emissão do visto.
Mas, qual visto?... Isto só visto.
Logo a Embaixada liga, à Mãe a marcar uma hora para lá comparecer a fim de lhe
ser dado o visto nunca visto; comparece até antes da hora; fá-la o segurança
esperar mais duas, alegando não ter sido informado de qualquer agendamento;
por causa desta comezinha questão, telefonemas ao mais alto nível da
diplomacia são trocados; e a mãe, Sábado Babalpeme, lá acaba atendida por um
qualquer funcionário.
Sucesso, finalmente? Não...
Sábado não foi atendida por um simples funcionário qualquer: foi atendida por
um funcionário tão qualquer, mas tão qualquer que, ao que parece, em lugar de,
perante a dificuldade, se ter mexido como a relevância e urgência
do caso requeriam, se terá limitado a, uma vez mais, recusar a entrada do
pedido de visto por... falta de documentação.
Depois de todos os cordelinhos que a notícia do Expresso tinha feito
puxar em bem altas esferas, um enferrujado mas todo importante
funcionário limita-se a entregar à Mãe uma lista do calvário administrativo
todo que teria, ainda, de percorrer. Ela, que nem sabe ler...
Corre, então, o Semanário junto do altivo e displicente Ministério, o qual,
pressionado, logo transmite, à Embaixada ordem de que, para emitir o visto,
nada mais exija do que o relatório médico já em seu poder.
Estarão, finalmente, criadas todas as condições? Talvez...
A verdade, porém, é que o visto ainda não foi emitido, mas apenas foi
processado na Embaixada: falta o "parecer das entidades competentes em matéria de entrada de estrangeiros
em Portugal, aguardando-se a emissão a breve trecho"*).
Decididamente, a débil simplificação administrativa cá do Retângulo não chega
aos casos que, mesmo desesperados, apenas se resolvem depois de um
considerável arraial...
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Terão sido, possivelmente, situações como esta que inspiraram a definição
segundo a qual "diplomacia é a arte de dizermos ´lindo cachorrinho' até encontrarmos uma pedra". Seria, porém, de pensar que Portugal fosse um estado uno, senhor de uma
identidade própria, desejavelmente homogéneo onde quer que se encontre
representado, e seja em que circunstâncias for.
Como explicar, então, que, a par de um atendimento reconhecidamente mais
próximo e eficiente por boa parte do funcionalismo público, seja,
paradoxalmente, na área da diplomacia que tamanha aberração acontece? Que de
forma tão grosseira se manifesta, não apenas a ineficiência funcional, mas a
desoladora indiferença, a desgraçada falta de coração, de formação, de
educação?
Num Estado que se diz humanista, não há lugar para uma diplomacia fria,
dura, indiferente a quem, com dois, um ou quase nenhum pulmão caminha por
uma rua cheia de pessoas que não choram, e impede que, pelo menos,
sobrevivam juntas pessoas que poucas outras têm a quem dar a mão.
* *
Ou será que a diplomacia anda de mãos dadas com o racismo?
(leia aqui o desenvolvimento)