terça-feira, 5 de julho de 2022


Luís Marques Mendes

LMM - Luís Marques Mendes


"A autoridade é um bem que se degrada quando não se usa
"

Luís Marques Mendes*)              
(SIC - Jornal da Noite)          

Veio isto a propósito do lamentável espetáculo oferecido pelo Ministro das Infraestruturas e pelo Primeiro-Ministro na sequência do despacho mandado publicar por um secretário de estado do primeiro decidindo a nova configuração aeroportuária da zona de Lisboa, seguido da quase imediata ordem de revogação*) do mesmo transmitida pelo segundo ao primeiro.

Assim aconteceu, e de outra forma não poderia ter acontecido, já que, a omitir-se o Primeiro-Ministro de usar do poder que detém após uma decisão de tamanha responsabilidade ter sido tomada a solo por um simples ministro - que nem é primeiro e, para cúmulo, mandada formalizar a um ainda mais simples secretário de estado -, poderia alguém começar a questionar-se sobre qual ministro será, efetivamente, o segundo e qual o primeiro.

Bem, deixemos o trocadilho, que não é este o nosso assunto.

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Nos tempos que correm, não admira que alguma comunicação social menos dada a estas coisas parvas do rigor na palavra falada e escrita tenha anunciado a coisa como tendo o Primeiro-Ministro revogado o disparatado despacho, algo que a lei lhe não permite fazer.*)

O erro não admira, já que, imposto pelas audiências essenciais à obtenção das indispensáveis receitas publicitárias, o frenesi de conseguir a pole position na transmissão da novidade conduz, quase invariavelmente, a que as notícias sejam papagueadas sem qualquer análise, crítica ou estudo prévios, desta forma ficando a qualidade e o rigor que as irão caracterizar a depender, apenas, do cada vez mais escasso substrato cultural do redator.

Anestesiados que muitos vamos estando pela dor provocada por sucessivos impactos de baixíssimo nível daquilo que, desgraçadamente, nos vai sendo dado ouvir e ler, lá acabamos, quantas vezes, a dar por nós a absorver, ora ideias substantivamente erradas, ora outras formalmente expressas de maneira menos correta, menos elegante - inadequada, até -, seja por arautos do facilitismo linguístico agora tão na moda, seja por pessoas educadas e cultas a quem a pressão mediática do comentário regular falado ou escrito convida, também, a facilitar. Ou, como, para dourar a pílula sói dizer-se, a simplificar.

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A citação que aqui é assunto refere autoridade no sentido de habilitação legal para o exercício do poder, o que é um significado evidentemente admissível, correspondente à capacidade - nem sempre legítima - de alguém se fazer obedecer.

Não obstante, a verdadeira autoridade, bem distinta do bem mais pobre e elementar poder, emana naturalmente de quem a detém: não por lhe haver sido atribuída por outrem, mas por o sujeito a ter adquirido através do competente e credível exercício das funções que lhe tiverem sido cometidas, por tal exercício se tendo tornado merecedor da confiança na qualidade das decisões tomadas, a qual impele os respetivos destinatários à pronta, serena e, mesmo, grata obediência, independentemente de vigorar, ou não, norma que legitime a respetiva imposição.

Num tal e cada vez mais raro cenário, as relações humanas fluem, a educação manifesta-se, a alegria brota, a economia floresce e os políticos exercem, tranquila e complementarmente, o poder formal e efetivo que a Constituição e a lei lhes conferem.

A fazer uso deste poder meramente formal estão, assim, limitados aqueles que o detêm, não por o haverem granjeado por mérito pessoal imediato e direto, mas por aquele lhes haver sido confiado - quantas vezes à falta de melhor candidato... -, seja por nomeação, seja por um mais ou menos democrático ato eleitoral.

Se dúvidas houver, lembremo-nos da expressão "fazendo uso dos poderes conferidos" - seguida da identificação da norma habilitante - presente, a título de legitimação, em praticamente todos os diplomas legais.

Admitamos, enfim, que esse conjunto de poderes possa, também, ser considerado autoridade, desde que não confundamos esta, imposta e formal, com a outra, meritória e substantiva.

Assim, embora sendo preocupante que já nem palavras tão singelas como aquelas que designam as cores estejam livres da polissemia de que as inquina a conotação com certas tendências - "é um verde", "é um vermelho" e por aí fora -, também o termo autoridade pode ser utilizado para designar algo que nada tem a ver com a autoridade nobre, eficaz, verdadeira, mas apenas com a pessoa ou entidade a quem, por algum processo, tenha sido conferido determinado poder..

Tal é o caso da moda recentemente adotada por sucessivos governos para designar certos organismos que o politicamente correto desaconselha designar por polícia, departamento ou outra coisa mais condicente com as atuais atribuições daqueles. Acreditam, quiçá, que a tal confusão entre autoridade e poder acabe por garantir uma acrescida vontade de obedecer, por o termo mais sonante conseguir inspirar maior temor, uma vez que, pela outra autoridade que, habitualmente, os respetivos responsáveis detêm em dose tão fraca como quem os nomeia, é que a bom porto não chegarão.

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Diga-se, por fim, que, embora preferindo, na citação acima reproduzida, poder a autoridade, não fica como deixar de concordar com a ideia nela expressa pelo Exmº Autor, bem como com a forte probabilidade de ter sido a exibição da detenção e do uso do poder a motivação última de um Primeiro-Ministro que passa por andar cada vez mais entretido com a apetecível Europa, e menos com as inadiáveis mas sempre adiadas reformas estruturais e decisões de fundo para as quais, manifestamente, não nomeou competentes ministros.

De muito pouco servirá, na verdade, uma demonstração de poder na situação descrita, bem eloquente quanto ao notório défice de autoridade do primeiro governante - défice esse aliás muitíssimo natural na sequência de uma escolha de governantes que parece ter seguido, quase exclusivamente, o critério da proximidade pessoal e da simpatia política, ou do temor inspirado por uma certa antipatia política, como terá acontecido e continuará a acontecer no caso aqui vertido.

Comprometida que, com incidentes destes, vai ficando, no Partido Socialista, a sucessão do Secretário-Geral, não estará, mesmo, na altura de o Senhor Primeiro-Ministro bater com a mão no peito e, sem mais demoras, proceder à substituição de diversas pessoas que carreou para o Governo?

O nem terá já, no Partido ou fora dele, quem com ele esteja, efetiva e saudavelmente, disposto a colaborar?

* *

Tal como acontece com o termo autoridade, a multiplicação descontrolada de sinónimos desvaloriza a essência dos vocábulos, esboroa o idioma, atirando-o para um pantanoso charco de mal-entendidos, de ambiguidades, de imprecisões.

Aliás, a discutível escolha de palavras, designadamente em algo tão sério como decisões judiciais, não é, infelizmente, coisa nova, já aqui tendo sido objeto de desenvolvida atenção,. Não passa, na verdade, de mais um efeito nocivo da tendência para a desenfreada polissemia, inevitável no reino do Tanto Faz!, da indiferença, da desistência, sob a capa daquilo a que hoje alguns chamam inovação e originalidade.

sábado, 2 de julho de 2022


José Sócrates em Perigo!


"O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga,
considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar
que o acusado se apresentará à Justiça!
"

"Apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar,
já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana
ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear
"


Em perigo de fuga, claro. Como acontece com todos aqueles presumíveis inocentes que, apesar da proteção necessária e constitucionalmente garantida, a dada altura, ou desde sempre a Justiça considera não serem de, como tal, considerar.

Mas, não: devo ter lido mal a notícia. Será, talvez, a idade que já me não deixa ver as coisas como as vêem os atentos e expeditos olhos destes novos e esforçados magistrados, por certo saídos de escolas de ensino e da vida muito mais sofisticadas e exigentes do que aquelas que, no meu tempo, havia por aí.

Vejamos: reza a notícia do Expresso*) que a Meritíssima Juíza, no mesmo despacho em que quanto a José Sócrates, considerou que, "quando se vir confrontado com a possibilidade de ser julgado pela prática dos crimes pelos quais se encontra pronunciado, o arguido pode decidir eximir-se à ação da justiça (...)" - ou seja, baldar-se... -, conclui o Tribunal que "atentos os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, afigura-se suficiente, para afastar o perigo de fuga que no caso se verifica, sujeitar o mesmo à obrigação de apresentação periódica".

De outra forma dito, e se bem entendi - o que espero bem que não seja o caso -, entende o douto despacho que, para afastar o perigo de que, perante uma cada vez maior proximidade do julgamento, o indivíduo em causa entenda deixar-se ficar lá pelo Brasil onde, agora, tanto parece gostar de estar, é suficiente obrigá-lo a apresentar-se no posto da Guarda Nacional Republicana (GNR) da Ericeira a cada quinze dias para garantir que, quando chamado pela autoridade judiciária, não deixará de se apresentar.

Entende o caro leitor a fina sagacidade da decisão? Eu explico...

Em menino, José Sócrates olhou, um belo dia, para um militar da GNR muito alto, muito forte, com um grande e ameaçador bigode e, desde então, treme à simples vista de um dos companheiros de corporação do dito Adamastor, assim bastando entrar, a espaços, num posto cheio deles para nem pensar em falhar a obrigação, transido que fica de puro pavor.

Não? Bem, nesse caso, talvez tenha visto ou ouvido, ao passar por uma esquadra ou posto de uma força policial lusitana ou estrangeira, os gritos desesperados de um qualquer desgraçado a ser, selvaticamente, agredido por se ter portado mal. Bom, talvez mais no estrangeiro, já que coisas dessas não há em Portugal.

Ou terá sido um sonho mau que tenha contado durante um interrogatório cuja ata a Juíza tenha lido? Ou alguma particular e recente alergia do Arguido a esquadras da Polícia e a postos da Guarda que o ponha em sentido apenas por lá entrar?

Não, não parece; sobretudo atendendo ao pouco caso que o Exmº Arguido parece fazer da autoridade, desde logo pelo manifesto desrespeito por aqueles a quem cada deslocação ao estrangeiro ficou por comunicar.

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Ora, a probabilidade de se furtar ao julgamento e suas consequências existe, como sustenta o despacho, e é gigantesca, como qualquer de nós poderá acrescentar atendendo a que o aplicado Estudante se desloca, com frequência, ao longínquo País Irmão no âmbito do desenvolvimento do doutoramento em que se inscreveu por lá.

Que melhor desfecho, então, para toda esta sórdida história do que acabar por lá fixar residência e a ficar, tranquilamente, a leccionar, baralhando e manipulando, ao seu belo estilo e até mais não poder, o acordo de extradição*) e dando aqui e ali uns certeiros apertos de mão a quem considerar mais apto e disponível para o ajudar?

Depois, se a coisa começar a correr mal, inesperadamente - para o Tribunal, leia-se - bastará resolver, na esteira do recentemente sucedido com um malogrado banqueiro, dar um saltinho até um paraíso qualquer ali bem perto para tratar da saúde e fazer, depois, saber que não tenciona voltar a Portugal - talvez aconselhado por alguém mais competente do que quem, no outro caso, terá entendido que a distante África do Sul seria inexpugnável refúgio para quem um fugitivo tentasse apanhar.

Cumpre deixar bem claro que, apesar do inominável que representaria, jamais aqui estaria em causa uma eventual conclusão de sentido contrário a esta da Exmª Magistrada quanto à real existência do perigo de fuga. Tal conclusão de que o perigo não existiria também seria, na verdade, legítima, por se encontrar no âmbito do poder discricionário do Tribunal e resultar do julgamento livremente realizado no íntimo do quem a questão tivesse apreciado.

Não. O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga, considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar que o acusado se apresentará à Justiça!

Será a opção por tão tíbia e inoperante medida uma simples e tosca tentativa de enterrar o incómodo assunto, obnubilando um eventual e inconfessado e, necessariamente, inconfessável temor pela distinta personalidade em causa, a exemplo do que poderá ter acontecido perante o importante, rico e poderoso João Rendeiro, um punhado de meses atrás? Dada a recente postura da Juíza, tal não parece de acreditar.

Ou será que esta boa gente não aprende, mesmo os rudimentos indispensáveis àqueles a quem cumpre decidir, julgar? Que, o que lhes ensinaram quanto à arte de julgar, foi insuficiente para tornar evidente que, apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar, já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear?

Mas será que, coisas destas, é preciso ensinar?

Dever-se-á, antes, a manifesta pusilanimidade da medida ora decidida a um manifesto défice de noção do tempo cronológico? A não entender a douta Magistrada que apenas a apreensão do passaporte poderia, em alguma medida, a fuga contribuir para evitar?

Ah! Não! Claro! Coitado! Como pude não me lembrar?

Sem passaporte, José Sócrates ficaria impossibilitado de ir ao Brasil, e o tal doutoramento, tão importante para todos nós e para a Justiça, ficaria por acabar. Seria uma ignomínia, uma ingratidão sem igual, uma tal patifaria fazer a quem, pela brilhante ação política e governativa desenvolvida, Portugal tanto tem a agradecer e a pagar.

* *

Por estas e por outras, a cada vez mais desacreditada magistratura judicial portuguesa, não cessa de nos desencantar com histórias de pasmar!...

A mais recente - lembram-se? - foi mesmo coisa de arrepiar...

(continua aqui)