“A missão fulcral,
quase única, do Estado é assegurar a produtividade,
procurando criar, nas mais diversas áreas de atividade, as condições para que
ela aconteça”
“O Estado não passa
de uma abstração, de um conceito distante,
e a distância não conforta, não mitiga as penas, muitos menos mata a solidão”
“Será assim tão
difícil gerir a coisa pública por forma a que os velhos carenciados
tenham um poucochinho mais de apoio? Se sintam motivados, úteis, se não, até,
felizes?”
Habituamo-nos a olhar o Estado
como uma criatura voraz, que procura, através do sistema fiscal, sugar o que
pode dos nossos mais ou menos parcos rendimentos, supostamente em prol do mesmo
Estado - que somos, afinal, todos nós.
Alguns, não poucos, olham-no
também como um viveiro de corruptos que vão para a política para... digamos que
para aproveitar as benesses dadas a quem serve o Estado ou, pelo menos, é pago
para o fazer.
Centra, para tal, a atenção na
população ativa ou potencialmente ativa, na respetiva formação e
desenvolvimento, na criação de estruturas e infraestruturas adequadas a
aumentar a produtividade e o bem-estar dos seus elementos profissionalmente
válidos – válidos em teoria, pelo menos... -, para que a atividade dos mesmos
gere riqueza para alimentar o Estado através receita fiscal, assim se
reiniciando o interminável ciclo.
Não nos iludamos, pois: a missão
fulcral, quase única, do Estado é assegurar a produtividade, procurando criar,
nas mais diversas áreas de atividade, as condições para que ela aconteça.
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Trata-se, assim, de uma missão
essencialmente económica, na qual se inserem, é verdade, importantes vertentes
sociais; mas estas, sempre subordinadas ao objetivo de alimentar e manter o
Estado enquanto tal, e tão independente quanto possível da caridade de bancos e
de países terceiros.
Por outras palavras, a educação
enquanto tal, a saúde enquanto tal, a justiça enquanto tal, e por aí fora, nada
disso interessa ao impessoal, indiferente e objetivo Estado, já que nenhuma
utilidade para ele teriam, a não ser enquanto potenciadores indispensáveis da
atividade e da saúde económicas.
Neste quadro, que interesse têm,
para o Estado, os improdutivos ou pouco produtivos velhos que há mais ou menos
tempo inverteram o seu papel de produtores para o de meros consumidores, na
maior parte dos casos dependentes de prestações sociais que tanto oneram o
mesmo Estado?
Interesse nenhum, claro.
Os "reformados e os
pensionistas" - cuja defesa supostamente ainda dá o que resta de ânimo a
decadentes e também envelhecidas estruturas políticas - são tão úteis ao Estado
como outros "inúteis", doentes crónicos, reclusos e outros que tais. Isto
porque o problema do Estado social não reside, apenas, numa eventual falência
dos sistemas de segurança social, mas também, já hoje e sempre, nas avultadas
quantias subtraídas ao consumo por via da cobrança de taxas sociais e nos perdidos
impostos que tais montantes gerariam se por aí andassem a circular, em lugar de
servirem para pagar pensões e subsídios a enfermos, anciãos e outros que tais.
Porquê?
As possibilidades de resposta
abundam, claro, das mais piedosas às mais cínicas, e não faltará quem vá
aventando novos e inovadores fundamentos para a manutenção do paquidérmico, mas
indispensável, Estado social.
Porém, sejam quais forem os
fundamentos, as razões invocadas, sempre prevalecerá a dura verdade de que o
implacável ogre cuida dos velhos apenas por obrigação, já que, enquanto
entidade abstrata, não conhece a bondade, a piedade, a ética, a generosidade:
apenas um infindável rol de imperfeitas normas jurídicas, nas quais encaixa
recursos humanos para o servir e recursos económicos para estes sustentar.
Os velhos - mesmo aqueles que o
serviram - são um frete com que o Estado, o Estado puro, não tem de se
preocupar. Faz aquilo a que as circunstâncias obrigam, mas não cuida, não
protege, não acarinha, porque o Estado não passa de uma abstração, de um
conceito distante, e a distância não conforta, não mitiga as penas, muitos
menos mata a solidão.
Só um velho entende os velhos, os
que, como ele, chegaram ao ponto em que, o que já foi, agora apenas serve para
alimentar o sonho, e vivem – ou sobrevivem - saudosos do tempo em que o tempo
passava sem terem de o empurrar para a frente.
- x -
Proclamou a ONU, alguns anos
atrás, o Dia Mundial da Justiça Social. É muito fácil fazer proclamações, e
dias mundiais de qualquer coisa, são-no já os dias quase todos.
Mas será a dita justiça social
apenas dar dinheiro?
Será assim tão difícil gerir a
coisa pública por forma a que os velhos carenciados tenham um poucochinho mais
de apoio? Se sintam motivados, úteis, se não, até, felizes?
Será, mesmo, impossível gastar
algum dinheiro de todos nós, não apenas a alimentar e vestir os velhotes, mas
em procurar fazê-los sair do torpor solitário e desalentado em que, desiludida,
a maior parte deles acaba por mergulhar?
Será assim tão dispendioso
intensificar a fiscalização dos lares – alguns deles, meros depósitos de quem gente
já não se sente -, em prol da dignidade de quantos lá arrastam, penosamente, os
seus dias?
Em vez de apenas alimentar e
tratar os que não têm abrigo, será, mesmo, impossível encontrar um mecenas que
se empenhe em os albergar e deles cuidar?
Empenhar recursos dos sistemas de
saúde para prolongar a vida de uma ancianidade caduca e acabada não é obra
meritória: é tortura, é sentença de prisão perpétua, de morte lenta de quem já
nada tem à frente, já pouco ou nada de belo tem para contemplar.
Fugit irreparabile
tempus