"Não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro,
mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado?
Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários
com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações? "
gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública
é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos? "
Qualquer que seja a resposta, parece certo que a razão de ser e o objetivo da fala é a comunicação entre os humanos, tal como já sucedia com a expressão corporal e viria a acontecer com a bem mais recentemente inventada escrita.
Sabemos também, à saciedade, que só quando prosseguida de forma rigorosa e contemplando a possível perfeição será qualquer atividade animal razoavelmente conseguida no seu propósito. A falta de caso, a preguiça, o facilitismo e vícios similares comprometem, seriamente, a eficácia e a eficiência da ação, a ponto de, em casos extremos, tornar contraproducente o resultado final.
Se, na infinidade de sinais a que poderia recorrer, a mera linguagem corporal era, inevitavelmente, pouco rigorosa, imprecisa, a linguagem verbal viria, decisivamente, complementá-la como uma forma eficaz de limitar a dispersa e caótica sinalética, assim tornando potencialmente muito mais precisa a correspondência entre a ideia e a mensagem que a veicula entre os espíritos.
Através da combinação, em palavras, de fonemas de correspondência sonora relativamente constante dentro de um mesmo idioma, apurou-se, pois, a transmissão e a captação da ideia contida na mensagem, drasticamente reduzindo a ambiguidade e a indefinição.
Na senda do mesmo objetivo, a evolução inteligente da utilização da palavra deveria, então, ser a da constante afinação e da cada vez mais rigorosa utilização do idioma: nunca a da sua deterioração, seja por via da desenfreada polissemia, seja pela do desprezo que cada vez mais vamos notando para com as mais elementares regras gramaticais.
Esta inversão de sentido, esta desvalorização da função elementar da linguagem verbal encontra-se, porém, de tal forma enraizada no tendencialmente permissivo espírito humano que qualquer norma é prontamente revogada à primeira violação pela pena de um escritor, como se, ao subverter, supostamente em benefício da manifestação artística, o edifício gramatical e a precisão vocabular, qualquer romance fosse, por natureza, um código, uma cartilha pela qual todos nós a língua portuguesa devêssemos estudar.
Bem pelo contrário, e como já aqui opinei, "um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar".
Daqui decorre que, seja quem for que, por indiferença ou em nome da criatividade, sistematicamente utilize de forma inadequada o vocabulário e viole as regras da gramática jamais poderá ser confundível com um teórico da língua.
Apenas patenteia, em tal matéria, inaceitável ignorância larvar.
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O princípio da incerteza, de Werner Heisenberg, sustenta que, observando uma determinada partícula de matéria, não é possível, com exatidão, determinar a posição e, simultaneamente, medir a velocidade daquela - algo que, cingindo-nos aos conhecimentos e aos métodos da física clássica, deveria ser possível fazer-se.
Segundo a física quântica, apresenta-se, assim, o dito princípio como mais uma forma de demonstrar que o Universo age mais misteriosamente do que aquilo que nos têm feito crer - embora a conclusão pela impossibilidade de apurar os valores com absoluta certeza se deva ao facto de serem utilizados, à falta de outros disponíveis, métodos invasivos para efetuar as medições.
Ora, instruídos que foram todos os atuais comentadores do programa da assim chamada CNN Portugal "O Princípio da Incerteza" na conjunto de áreas do conhecimento conhecida pela designação genérica de humanidades, será que foi o postulado de Heisenberg o inspirador do título adotado? Dificilmente, ou estaríamos perante uma provável demonstração de despudorada presunção, ou de desmesurada cosmética mediática.
Será, então, que, no título do programa, princípio exprime a ideia de início, e não de lei geral da física, de parte da sua informação fundamental?
Mas, a assim ser, também aqui se manifesta insanável dúvida. Pois não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro, mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado? Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações?
Falar do início da incerteza seria, pois, refletir sobre as origens do Universo, ou seja, algo muito distante da linha editorial do programa televisivo de cujo título aqui se trata.
Considerada esta, poder-se-á, naturalmente, considerar a possibilidade de se tratar do início, não da incerteza absoluta, primária, mas, por exemplo, da incerteza ou insegurança na gestão política do Estado. Mas como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da corrupção e a dependência do compadrio gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos?
Até que alguém que saiba a esclareça, a dúvida subsistirá, assim, quanto ao sentido em que, na escolha do título, o termo princípio foi selecionado: lei fundamental, ou início de algo? Neste caso, início de quê?
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Preferir, na circunstância, a utilização do termo início - ou começo - eliminaria qualquer dúvida quanto a ideia a transmitir: início exprime, sempre, o primeiro estágio, o lançamento. Isto, apesar de poder discutir-se a correção de atribuir-lhe, como alguns fazem, o significado de preliminar ou preambular, já que não parece seguro que pre não signifique que antecede o início da ação propriamente dita, a qual se destinaria a preparar ou enquadrar.
Em qualquer caso, o que importa reter é que a ambiguidade vocabular sempre será de evitar, sem prejuízo, naturalmente, da saudável criatividade, da originalidade que, desejavelmente, se procurará imprimir às manifestações do espírito, sob pena de, assim não sendo, tudo se resumir ao sensaborão, ao acinzentado de uma vida em que, praticamente, nos limitaríamos a respirar.
A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início da incerteza, mas a própria essência da mesma, a par com o facilitismo gramatical que, em boa parte por via da importação de vocábulos e estruturas próprias de variantes do idioma desenvolvidas noutras partes do Mundo, mina, não apenas a clareza da ideia, o rigor da mensagem, a destreza do raciocínio, mas, com elas, a qualidade da interação do ser humano com os seus pares.
A riqueza vocabular reside na diversidade da utilização de termos com significados semelhantes, próximos, sem deixar de respeitar a particularidade de cada um deles: não no empanturrar das palavras com significados, levando a que, um dia, qualquer coisa querer dizer uma coisa qualquer, e deixemos de conseguir captar a ideia precisa ou, sequer, uma aproximada da que pretende exprimir quem escreveu ou está a falar.
Generalizada muito para além da mais ampla razoabilidade e longe de
corresponder ao enriquecimento da língua, antes à degradação da sua
beleza e da sua utilidade, a desenfreada polissemia apenas torna mais
difícil a já de si difícil arte de comunicar.
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica, e não pela
utilização
mais ou menos própria que, aqui ou ali, um ou outro escritor
dela fará.
A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de
definir como devemos exprimir-nos,
a gramática se limitar a observar
como vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada
hipercorreção
qualquer tentativa de resistência à degeneração.