"Do ponto de vista ético, pessoal e da solidariedade que o Governante
deveria,
pelo menos, aparentar para com quem, na altura, o conduzia,
a coisa parece deplorável,
feia, inqualificável. Demitiu-se do cargo,
e muito bem, que outra coisa não haveria a fazer.
Só pecou por tardar
e por, na declaração da saída, tergiversar"
Deixando à margem os comentários inflamados e subjetivos que por aí andam
sobre a atitude do Ministro da Administração interna ao declarar-se um mero
passageiro na viatura que, há meses, atropelou um trabalhador da Brisa,
vamos lá tentar, em abstrato, arrumar as ideias e por um pouco de ordem
nisto tudo.
Faz toda a diferença cometer um crime por negligência ou com dolo eventual.
Quando um condutor amador como a maior parte de nós circula, a 166 km/h, numa
auto-estrada
em zona não sinalizada como nela decorrendo trabalhos de manutenção, e
acaba por, inadvertidamente, colher e matar um peão, estamos perante um crime
por negligência, com mera culpa. Ou seja: o condutor distraiu-se, ia a pensar
que não tinha dado de comer ao gato antes de sair de casa, ou vinha aborrecido
com alguma coisa, acelerou e não viu que um maluco qualquer ia a atravessar a
faixa de rodagem numa zona onde ninguém deveria estar.
Neste caso, a culpa do condutor não reside no facto de ter atropelado quem,
inopinadamente, apareceu a caminhar na auto-estrada, o que ninguém poderia
prever. A culpa estaria no facto de não ter podido parar a tempo por
circular com um excesso de velocidade de 46 km/h relativamente aos 120 km/h
permitidos. Apenas isto; e, por se tratar apenas disto, estaríamos perante um
homicídio por negligência, como tantos outros que, por essas estradas,
acontecem e continuarão a acontecer.
Bem diferente é a situação de um motorista profissional que conduz na
auto-estrada a 166 km/h e, sem abrandar, irrompe por uma zona de trabalhos
devidamente assinalada, caso em que a velocidade máxima sinalizada seria, possivelmente, de 80
km/h. O excesso já não seria de 46 km/h, mas de 86 km/h, o que faz uma
diferença muito grande. Mas, mais diferença faz ainda o facto de, ao
contrário do primeiro exemplo, em que a presença do peão seria absolutamente
inesperada,
numa zona de trabalhos ser natural e expetável encontrar pessoas!
Quanto mais não fosse, apenas por isto, não se trataria, neste caso, de uma
excesso de velocidade meramente negligente que teria tido como efeito
dificultar o controlo do automóvel, mas de uma
vontade de prevaricar estando plenamente consciente da fortíssima
probabilidade de encontrar pessoas cujas vidas seriam postas em sério
risco.
De outra forma dito, o motorista ter-se-ia conformado com o resultado mais do que previsível:
causar danos irreparáveis à integridade física de terceiros ou, mesmo,
tirar-lhes a vida.
Esta evidente conformação com o
resultado nefasto previsível define a existência de dolo eventual, que, aos
olhos da lei, transforma um homicídio por negligência, punível com uma pena
máxima de três anos de prisão nos termos do art.137º do Código Penal,
num homicídio simples, ao qual corresponde uma pena máxima de dezasseis
anos de prisão, conforme dispõe o art.131º do mesmo Código. Falta dizer que, enquanto no
primeiro caso a pena pode ser suspensa nos termos do art.50º e seguintes, no
segundo o condenado vai ter mesmo de a cumprir.
"Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for
representada
como consequência possível da conduta,
há
dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização"
Código Penal Português, art.14º n.º 3 (Dolo Eventual)
Se me der para conduzir a cem à hora em Lisboa, na Almirante Reis, não tenho a
certeza de ir atropelar alguém, mas é muitíssimo provável que tal aconteça.
Se, sabendo-o, insistir na ideia, me puser para ali a acelerar e acabar por
atropelar alguém, terei agido com dolo eventual, pensado talvez não aconteça,
mas pode muito bem acontecer. Paciência. Tanto pior para quem ao meu caminho
aparecer.
Lá fora, existe a expressão depraved indiference.
Indiferença depravada diz, de facto, muito mais da monstruosa dimensão da atitude assumida
por estes criminosos perante o próximo que, aos seus objetivos, não hesitam em
sacrificar.
Mesmo em marcha de urgência, uma ambulância abranda ao aproximar-se de
uma zona de obras.
Ao que parece, o motorista do Ministro não abrandou!
- x -
Daqui de longe, a única razão plausível para que, no caso do
motorista profissional do Ministro da Administração Interna,
agora acusado de homicídio por negligência, este tipo de crime tivesse sido
escolhido pelo Ministério Público em lugar do de homicídio simples - com dolo
eventual - seria
a eventualidade de os trabalhos não terem sido devidamente sinalizados pela
equipa que os executava*), o que
a concessionária da auto-estrada prontamente desmentiu*).
Terá a omissão acontecido? Será isto plausível? Ou possível, até?
É que não estamos a falar daqueles empreiteiros de beira de estrada com
raquetas encarnadas de um lado e verdes do outro, que quanto utilizam
semáforos nem sincronizá-los devidamente sabem; que deixam os sinais de
máxima trinta na berma da estrada durante todo o fim de semana sem
que lá estejam máquinas ou quem quer que seja a trabalhar, ou os mantêm em
vigor ao longo de uns bons cinco ou dez quilómetros para andarem por ali a
aparar umas ervinhas enquanto, quilómetros atrás ou à frente, por vontade
deles uma interminável fila de automóveis andaria, inutilmente, a
pastelar.
Não. Estamos a falar de uma grande empresa, concessionária da maior parte das
auto-estradas nacionais e
com códigos de conduta e manuais de procedimentos estritos e completos, e
com rotinas executadas por diversos elementos e controladas por diversos
outros, todos eles com exigentes qualificações profissionais.
Mais simplesmente: alguma vez o Leitor passou por obras ou trabalhos numa
auto-estrada portuguesa que não estivessem devidamente sinalizados largas
centenas de metros atrás?
Eu, não.
- x -
Muito se diz e escreve, hoje, por aí sobre a atitude do Ministro ao declarar
que
era um mero passageiro *).
Sim. Do ponto de vista ético, pessoal e da solidariedade que o Governante
deveria, pelo menos, aparentar para com quem, na altura, o conduzia, a coisa
parece deplorável, feia, inqualificável.
Demitiu-se do cargo*), e muito bem, que outra coisa não haveria a fazer. Só pecou por tardar e
por, na declaração da saída, tergiversar.
Mas, por muito que nos doa, legalmente, o Ministro tem razão: era, de facto,
um mero passageiro, cabendo ao motorista toda a responsabilidade pela condução
do automóvel, como acontece, por exemplo, quando viajamos de avião. No avião,
há o comandante, e nós todos, os outros: bloggers, políticos,
governantes, sejamos quem formos, não passamos de passageiros nem mandamos o
que quer que seja na pilotagem (e ainda bem...).
O mesmo acontecia no carro do Ministro, com a condução. A menos que... ele
tenha sugerido ao motorista que estava com pressa, que fizesse o favor de se
despachar, caso em que poderia ser acusado de cumplicidade ou de incitamento -
coisa que, em qualquer caso, sem uma improvável confissão seria sempre difícil
de provar.
- x -
Seja o que for que tenha, de facto, acontecido, cabe agora aos tribunais
averiguar.
Mas fica sempre aquele cheirinho a poder - perdão, a podre, que ser escreve de
maneira quase igual.
Fica aquela suspeitazinha no ar...
Como quase sempre, em Portugal
"Age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a
realização do facto criminoso.
Existe dolo necessário quando o agente sabe que, como
consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto
que preenche um tipo legal de crime, não se abstendo, apesar disso, de
empreender tal conduta.
No dolo eventual cabem os casos em que o agente previu o
resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso,
leva a cabo tal conduta, conformando-se com o respectivo resultado" *)
Acórdão de 12.03.2009 (Processo 08P3781)
do Supremo Tribunal de Justiça