sábado, 19 de junho de 2021


Orgulho e Pompa sem Circunstância

 

"Por haver constatado que um espião de leste operava no seu gabinete,
demitiu-se sem hesitar um outrora chanceler da República Federal Alemã.
Por haver, com dolo ou negligência, sido praticado um ato de espionagem
pelos Serviços, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não se demitiu.
Sendo as situações equivalentes, atentas a importância relativa dos dois cargos,
a diferença de atitudes apenas revela que muito pouco de comum existirá
entre o outrora Chanceler e o atual Presidente da Câmara Municipal"

Merece pouco crédito um país no qual se tende a olhar para os governantes mais como gente que prefere governar-se a governar. Mas não será esta a nota dominante da sociedade de faz de conta em que estamos mergulhados e na qual, por uma ou outra razão, muitos de nós são obrigados a continuar a viver?

Não é simplesmente a capacidade de registar a tradição pela escrita que distingue os povos civilizados, mas a capacidade de, individual e coletivamente, elevar o espírito um pouco que seja acima da preocupação com o carrito acabado de sair do stander ainda com o capum a brilhar; acima das imagens de carantonhas horrivelmente feias com esgares supostamente sorridentes a olhar para os basbaques em redes sociais onde pontificam relatos com imagens mal enquadradas de glúteos musculados, peitos descaídos, cochas moldadas em celulite em estado de negação; acima da ostentação básica, primária, de quem, por ter aprendido a dar uns toques na bola acena com milhões a populações esfomeadas e sanitariamente enfraquecidas; acima da vaidade desmesurada e da febre de protagonismo de quem nem miolos tem para olhar para o Mundo e entender o que lhe está a acontecer.

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No caso específico dos políticos e dos aspirantes a políticos, é conhecida a tendência para uma espécie de justificado evemerismo relativamente aos pais fundadores dos respetivos partidos, embora ele apenas se manifeste em colagens à imagem dos seus deuses particulares, sem que tal aproximação para consumo mediático corresponda ao mais ténue propósito de os bons exemplos lhes seguirem.

Havia, entre os povos bárbaros, quem pensasse que, por vezes, os deuses adormeciam para voltar um dia em toda a sua pujança e poderio. Nos partidos políticos, todavia, sabe-se que os  deuses particulares, os seus chefes endeusados, quando desaparecem, é para sempre - e para alívio de uns quantos alarves vazios de valores, de ideais e de ideias, que apenas sonham subir a pulso por patológica necessidade de os seus complexos de inferioridade mitigar, mandando nos outros com um poder vazio de autoridade, e com o planeamento, a disciplina e o rigor próprios das ondas do mar.

Cientes, lá bem no fundo, da própria incapacidade para se guindar e manter em funções cujos requisitos excedem, largamente, as suas capacidades intelectuais, emocionais e educacionais, praticam e fomentam a prática do big brother que lhes convém enfaticamente condenar - e muito bem - nos sistemas ditatoriais, espiando os comportamentos, perscrutando os segredos mais íntimos, ordenando escutas, transmitindo a regimes totalitários dados confidenciais acerca dos respetivos opositores, assim lançando o anátema sobre os países ou cidades que administram*) na forma incompetente de quem apenas cuida de acumular créditos junto daqueles de quem, em regimes aparentemente democráticos, dependem para a contagem dos votos.

Pouco importa se a indiscrição vem de cima, do meio ou de mais abaixo: se o ato é deliberado, é crime com dolo eventual, a existir prática firmada e sobejamente conhecida, por parte do regime que governa o Estado beneficiário da informação, da perseguição política indo não raramente até ao homicídio; se o ato não é deliberado*), a simples possibilidade de ocorrência da fuga de informação diz bem da efetiva indiferença com que a questão dos direitos fundamentais - designadamente da segurança e da privacidade - é encarada por gnomos subservientes de olhar perdido e sem vontade própria, além da vontade de ficar bem visto aos olhos do chefe ou do patrão e, se possível, também da mal governada população.

Tempos houve em que, independentemente da responsabilidade direta, havia o bom hábito de os superiores hierárquicos em cargos públicos se afastarem na sequência de faltas dos seus subordinados, fosse pela prática de crimes, fosse por atos de espionagem*), fosse, ainda, por responsabilidade em catástrofes na sequência de erros técnicos ou de mera incúria funcional*).

Nestes quadros, tal como no de partilha, com outros países, num ato facilmente equiparável a espionagem, de dados pessoais que possam comprometer a segurança, a liberdade e, mesmo, as vidade pessoas que lutam pela liberdade de terceiros*), substituir a demissão espontânea por um débil pedido de desculpas públicas*) - expressão intensa mas inane - não passa de mera hipocrisia, de mais um expediente para salvar um residual de imagem; e um punhado de votos.

Por haver constatado que um espião de leste operava no seu gabinete, demitiu-se um outrora chanceler da República Federal Alemã. Por haver, com dolo ou negligência, sido praticado um ato de espionagem pelos Serviços, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não se demitiu*). Atenta a importância relativa dos dois cargos e sendo as situações equivalentes, a diferença de atitudes apenas revela que muito pouco de comum existirá entre o outrora Chanceler e o atual Presidente da Câmara Municipal.

No entanto, o papel de um autarca de Lisboa não se limita a preocupar-se (pouco) com a situação da Rua Maria Pia*) ou do Bairro das Murtas*); a deixar morrer, como o fez um seu antecessor, prematura e inutilmente ícones como o Teatro Vasco Santana*) e a Feira Popular*); a assobiar para o lado perante edifícios que apodrecem, como o Hospital de Arroios*), o antigo Liceu Rainha Dona Amélia*), ou o Palácio das Águias*), ou a desprezar a Tapada das Necessidades*), já para não falar da vergonha do estacionamento na Avenida Almirante Gago Coutinho*) e do maná garantido pela EMEL em zonas em que os parquímetros estão bem longe de se justificar*).

Ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa cumpre zelar pela honra e pela dignidade da Cidade e de quantos lá mora, em lugar de negligenciar medidas elementares que assegurem a salvaguarda dos direitos constitucionais dos cidadãos que lá moram, em lugar de procurar alijar responsabilidades procurando fazer, de forma insidiosa, classificar como mero erro burocrático *) um flagrante e muito grave incumprimento da lei.

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Certas pessoas vivem imersas em orgulho e pompa, mas sem circunstância; e não é gloriosa a sua egocêntrica e, por vezes, despudorada guerra.

A ânsia de ser eleito para, dessa forma, poder servir uma organização ou uma comunidade deu lugar à ânsia de ser eleito ou promovido para assim poder servir-se de uma mole humana impreparada e cada vez mais indiferente, também ela preocupada apenas em fazer-se valer, quanto mais não seja no papel de capacho, de chega-me isso, de satélite de bem mais competentes manipuladores. É bem verdade que “a melhor forma de te não dizerem pequeno é dizeres dos outros que são grandes. Sobretudo se for mentira *)”.

Basta lembrarmo-nos do indescritível sentimento que experimentamos quando vemos e ouvimos supostamente ilustres mas notoriamente impreparados e pouco capazes deputados da Nação balbuciar os escritos que lhes põem à frente, hesitando nas palavras difíceis, na pontuação, errando a entoação.

As coisas são o que são e, quase sempre, são também aquilo que parecem: “La radio et la télévision fabriquentdes grands hommes pour de petites gens *)”.

O mal não se restringe à classe política: é endémico, na sociedade portuguesa e também lá por fora, tendendo a corrupção e o nepotismo a grassar incontrolavelmente. Os seus efeitos manifestam-se, seja na administração pública, seja em empresas nas quais o interesse dos investidores cede perante a doentia sede de autopromoção de dirigentes que, de gestores, apenas têm, em cartões de visita mais ou menos folclóricos, a designação por baixo do nome. Num e noutro caso, geralmente em países económica e socialmente falidos - como não será difícil exemplificar.

A questão de fundo é, no entanto, de uma simplicidade para muitos quase atroz: a inevitável ignorância da origem, da essência, da finalidade, do destino, próprios, de todos os outros e de todas as coisas. Mas como entender que a fragilidade imanente desse estado de dúvida não resulte, inversamente, na necessidade de dar, de apoiar, de consolidar, de valorizar o tempo que todos sabemos que, tarde ou cedo, para cada um de nós irá acabar, em lugar de tirar desta vida aquilo que se habituaram a dizer que é o que, para a tumba, ainda podem levar?

Se for verdade que a verdadeira imortalidade é a que resulta da memória com que os outros ficam da passagem de cada um de nós pelas suas vidas, bem melhor fariam certos lastimáveis palermas cheios de si em passar uns minutos a imaginar – já que gostam tando da mais ou menos parola imagem - que bela imortalidade para os seus vindouros irão deixar.

A menos que esses vindouros não sejam melhores seres humanos do que eles, o que, da maneira como isto para aí vai, não será, seguramente, uma hipótese a descurar.

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