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sábado, 18 de setembro de 2021


Esposas: Sede Submissas! Pois...

 

A discussão é boa e saudável apenas até ao ponto em que se torna repetitiva e fastidiosa,
em que se transforma em gritaria que já se não ouve, em que nenhuma luz consigo traz
que esclareça e nos ajude a viver em paz

Em questões socialmente melindrosas, tão imprudentes se revelam as reações a quente
baseadas em afloramentos interpretativos à revelia da razão,
como a razão pobre de uma repetitiva, dogmática, confusa, rebuscada
e nada convincente interpretação

1. O Pomo da Discórdia

2. Como Interpretar?

    2.1. Perspetiva Imediatista
    2.2. Perspetiva Eclesial
    2.3. Perspetiva Histórica
    2.4. Perspetiva Teleológica
        2.4.1. As Relações Sociais Como Objetivo Primeiro das Cartas
        2.4.2. A Motivação Escondida na Polémica Passagem
        2.4.3. Alquimia
        2.4.4. Valorização

3. Prática Eclesiástica
    3.1. Duas Questões de Legitimidade
    3.2. A Questão da Utilidade

4. Conclusão

 

O Pomo da Discórdia
1. O Pomo da Discórdia

Era inevitável, como sempre o é quando, a cada três anos por esta mesma altura, é lida nas celebrações eucarísticas o excerto da Epístola aos Efésios que, literalmente, reza “As mulheres submentam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher (…)*) (Ef 5:22), tal como em Colocenses 3:18 por outras palavras se diz o mesmo.

Quando, por obra de Deus para uns, para cúmulo do azar para outros, manda o calendário que este excerto seja lido numa conjuntura em que a questão da submissão das mulheres domina a cena política e social em virtude da tomada do poder pelos Talibãs no Afeganistão, inevitável se torna que múltiplas línguas e penas venham manifestar-se sobre o assunto, embora os estafados argumentos sejam os de sempre e as palavras pareçam, muitas vezes, provir de cérebros cristalizados, seja em anquilosadas ideias de tempos há muito passados, seja em reações emocionadas por parte de quem se sente ultrajado, seja, ainda, em aproveitamentos políticos ou de mero exibicionismo de quem acha que sempre fica bem dizer alguma coisa.

 

2. Como Interpretar?

Variadas são, necessariamente, as perspetivas com que deparamos, diversas as motivações, embora praticamente inexistentes as fundamentações verdadeiras, sérias, profundas, que permitam erradicar a emotividade recorrente e descabida, e aliviar o patente embaraço de quem não consegue explicar.

Sintetizemos, antes de mais, as duas visões tradicionais, debruçando-nos, então, sobre duas abordagens alternativas que procurarei fundamentar.


2.1. Perspetiva Imediatista

Escusado será dizer que a primeira e, porventura, única reação natural, nos dias que correm, à mera ideia de submissão será, inevitavelmente de rejeição, quer se trate de mulheres, de homens ou de animais de estimação; e é natural que assim aconteça, dada a profusão de escritos em linguagem críptica elaborados muitos séculos atrás, de ideias que a forma rebuscada impede muitos cérebros de encontrar, de manifestações radicais por parte de gente simples mas de ânimos deliberadamente exaltados por terceiros empenhados em divulgar mensagens de legitimidade duvidosa, associadas a causas mais ou menos subversivas que escolheram fomentar e divulgar.

Rejeição de Origem Racional
Não se trata, porém, de uma rejeição de origem racional, resultante de cuidada análise da ideia, como seria de esperar de seres que se consideram superiores aos restantes ou, pelo menos, deles diferenciados: tal como há certos hábitos que parecem colar-se-nos à pele, encontramo-nos, neste caso, no polo oposto, perante uma espécie de reação alérgica de substrato cultural; como que uma espécie de erupção cutânea, de incontrolável brotoeja, perante a imagem clássica do tipo bronco que, enquanto vê a bola na têvê, atira para a mulher um “Vai-me aí buscar uma cerveja! Bem fresquinha, hã? Héhéhé!” e fica todo acabrunhado quando ela, lhe responde “Vai lá tu!”, como, em qualquer terra civilizada, sempre deveria acontecer.

Igualmente irrefletida é a postura daqueles que entendem que submissão implica, em qualquer caso dominação por outrem, o que, como veremos, não é inevitavelmente verdade.

No quadro das reações primárias, encontramos, por fim, aqueles que, ignorantes do facto de as leituras das celebrações eucarísticas estarem, pela Igreja Católica, há muito, definidas para datas precisas em ciclos que, de forma automática, se renovam a cada três anos, reagem tolamente, pretendendo que a Igreja não deixou de aproveitar os acontecimentos que, no Afeganistão, ocorreram dias antes para veicular uma mensagem retrógrada e machista,ou que, pelo menos, a coincidência não evitou*).

Parece, assim, generalizada a tendência para uns e outros reagirem a quente relativamente a um tema delicado, que se quer tratado com o distanciamento e a lucidez essenciais à evolução de uma ideia até patamares de sustentação que a permitam credibilizar e sedimentar.

A discussão é boa e saudável apenas até ao ponto em que se torna repetitiva e fastidiosa, em que se transforma em gritaria que já se não ouve, em que nenhuma luz consigo traz que esclareça e nos ajude a viver em paz.

 

2.2. Perspetiva Eclesial

Na Igreja Católica há quem diga que a polémica passagem bíblica pretende significar que a mulher e o homem são um só, pelo que ninguém é superior a quem quer que seja. Mas, como é hábito na Igreja, não fundamenta, não esclarece a razão pela qual, no seu entendimento, haveremos de interpretar as Escrituras precisamente ao contrário do inequívoco sentido das palavras que nelas lemos ou nos chegam aos ouvidos quando lidas no ambão*).

Igreja

Os bispos portugueses remetem, por sua vez, para o contexto do direito familiar romano que punha em relevo o papel do marido como pater familias, não se apercebendo, porventura, Suas Excelências Reverendíssimas do gritante contrassenso em que tropeça quem sustentar que uma carta dirigida a indivíduos perseguidos pelos Romanos se baseava, precisamente, no direito e na prática impostos pelos mesmos perseguidores: “Tal como os opressores privilegiam o papel do marido fazei-o vós também”?

Como poderia, com tal argumento, um autor pretender pregar eficazmente a libertação pela Fé a partir de uma visão que acabava por, implicitamente, legitimar e, até, advogar a medonha realidade então vivida? (v. 2.3.)

Notoriamente enervado e pouco à vontade num debate televisivo vazio de novos argumentos ou ideias, diz um simpático e jovial ancião jesuíta que a Igreja está a mudar na sua forma de encarar as mulheres, mas que muito caminho há, ainda, a percorrer, limitando-se a sorrir quando confrontado, por exemplo, com a impossibilidade de ordenação de sacerdotizas. Sustenta, também que no texto em grego, se lê subordinação, e que o conceito de submissão agora referido se degradou na nossa cultura.

Mas, em que enriquece isto a discussão? Não é verdade que subordinação, submissão, o que queiram chamar-lhe, é, e será sempre, razão mais do que suficiente para pôr os cabelos das mulheres de hoje em pé - e não apenas os das radicais que se dizem feministas?*)

O jogo de palavras é aqui inane, baseia-se em suposta erudição, na opinião, no dogma, atitude tão querida da Igreja e que, uma vez mais apenas evidencia a falência da patrística e a sua fragilidade perante a manifesta dificuldade de chegar à verdade das coisas pela via da razão, a única capaz de frutificar no seio de uma assembleia cada vez mais exigente no que se refere à clareza e à racionalidade da pregação.

Fala, também, a Igreja do papel preponderante de Saulo de Tarso, chamado São Paulo na promoção da igualdade entre todos os seres humanos, designadamente entre mulheres e homens. Mas, como pode defender-se tal tese se, no mesmo texto e apesar daquilo que reza a saudação, se afirma que não foi o dito Saulo que redigiu a Carta aos Efésios?*) A ser assim, a que propósito vem a associação dessa defesa da igualdade a alguém que, por não ser o autor da Epístola aos Efésios, com tal defesa nada tem a ver?

São Paulo e as Esposas
A capacidade inventiva da Igreja Católica reconhece-se nas muitas e variadas tentativas de suposta clarificação de algo que parece bem claro, por muito que a ela possa doer; mas, em lugar de esclarecer o que quer que seja, todas elas parecem já desesperadas na evidente ineficácia comprovada pelo facto de não terem, ao longo dos tempos, sido capazes de encerrar a discussão; de, em lugar de ser convincentes, cada vez mais descolarem da realidade, de nada, afinal, nos fazerem entender.

Continua a fundamentação a limitar-se ao magíster dixit dirigido a uma audiência que a Igreja parece ainda não ter entendido que, para o bem ou para o mal, a explosão mediática já tirou daquele nível primário em que a palavra dos mestres era aceite sem discussão, e para a qual alguém dizer por dizer que é assim porque é assim, leva a nada, explica nada, convence nada.

Absolutamente nada.

 

2.3. Perspetiva Histórica

Non probandum factum notorium, pelo que, globalmente falando, desnecessário se torna demonstrar a superioridade da capacidade física do homem relativamente à da mulher. É, também, sabido que Gutenberg*) viveu no século XV, só bastante tempo depois tendo o Ocidente começado a saber o que era a impressão em série e o livro de aspeto e divulgação de alguma forma semelhantes aos atuais.

Não será, pois, de admirar que, à data e nas paragens em que, no século I d.C., terá sido escrita a Carta aos Efésios, o ganha-pão da grande maior parte das famílias fosse o trabalho braçal, para o qual o homem estava incomparavelmente mais bem equipado, e que o trabalho intelectual não passasse de algo tão remoto para a quase totalidade dos mortais, que dele mal se ouvia, sequer, falar.

O homem andava a trabalhar por fora, confraternizando e trocando impressões - não apenas no decurso da atividade laboral propriamente dita mas, para muitos pequenos agricultores e operários por conta própria, ao negociar a compra das matérias primas e dos utensílios e, mais tarde, a venda do fruto do seu esforço. À fisicamente menos possante mulher cabia ficar a cuidar da casa e da prole, limitando, provavelmente, os seus contactos com outras gentes à tagarelice nas raras vezes em que ia até ao mercado buscar aquilo com que a terra, o curral ou o galinheiro não abasteciam diretamente a despensa.

O imediato e inevitável efeito desta diferença de papéis ditada pela estrutura física de cada um, terá, assim, sido a aquisição de mais amplos conhecimentos pelo homem do que pela mulher, por isso entendendo o autor da Carta aos Efésios que “o homem é a cabeça da mulher”; e isso, por uma questão das mais elementares lógica e sensatez, acabaria por legitimar que a palavra dele fosse mais considerada e prevalente do que a dela, que detinha um ainda muito mais reduzido acervo de informação que servisse de base às decisões a tomar.

In Illo Tempore - Naquele Tempo
Por muito que hoje nos possa chocar, não há como negar que, in illo tempore, a realidade era esta, e seria tolo e descabido alguém pregar, na altura, que a mulher deveria ser ouvida em pé de igualdade com o – pouco – mais instruído marido, sem prejuízo, naturalmente, de o “maridos, amai as vossas mulheres” inevitavelmente conter a mensagem de que a opinião dela deveria ser considerada – até porque, em circunstâncias normais, ela uma parte da informação assimilada pelo homem através dele viria a conhecer e, por seu turno, a processar também.

Esta última parte, meramente em tese, já que tampouco será difícil imaginar os abusos e desmandos a que um tal quadro não deixaria de convidar pessoas mal formadas e de instintos descontrolados e perversos. Não obstante, e para o que aqui nos interessa, esta perspetiva histórica não deverá ser esquecida quando polémicos trechos textos bíblicos se trata de procurar interpretar.

 


2.4. Perspetiva Teleológica

Os textos sagrados tendem a ser encarados unicamente como mais ou menos dogmáticas exortações à Fé absoluta e inabalável em Alguém que é porque é, e cuja existência não carece de demonstração – contrariamente ao que aqui já defendi quando procurei, à margem da Fé, tal existência demonstrar.

Assim encarados os textos, não causará espanto a cada vez menor adesão efetiva de fiéis: uma coisa é declarar-se “católico” aos Censos do Instituto Nacional de Estatística(INE)*), enquanto outra, bem diferente, é acreditar; e, sobretudo, praticar, já que, enquanto acreditar tem a ver com Fé, a religião é a prática, assim não passando a declaração de “católico” ao INE, na maior parte dos casos, de uma rematada mentira por parte de quem não pratica o que quer que seja; ou, vá lá, de uma imprecisão motivada por uma generalizada incapacidade de destrinçar conceitos entre católico por vontade própria e o bem mais prosaico batizado por vontade dos progenitores.

Tenha-se a coragem de acrescentar aos inquéritos a pergunta “Participa ou, pelo menos, assiste regularmente a atividades da confissão religiosa a que pertence” e rapidamente os números cairão para escassos dez ou vinte por cento… se tanto. Tal como “são muitos os chamados, mas poucos os escolhidos”, haverá muitos que se dizem crentes, mas muito poucos os que uma religião acabem, efetivamente, por professar e praticar.

Ora, como facilmente se extrai da leitura dos primeiros capítulos, não foge a Carta aos Efésios ao tal objetivo primordial de exortar à Fé. Não é, no entanto, esta a motivação única, sendo possível encontrar numa outra uma possível explicação para a infeliz expressão cuja discussão aqui nos ocupa: “As mulheres submentam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher (…)”.

As Relações Sociais Como Objetivo Primeiro das Cartas

2.4.1. As Relações Sociais como Objetivo Primeiro das Cartas

As Epístolas destinavam-se a ser lidas perante a assembleia durante atos de culto evidentemente destinados a adultos e jovens a caminho da independência. Não é, na verdade, concebível esperar que mensagens como “Filhos, obedecei a vossos pais” (Ef 6-1) se destinassem a crianças ou a adolescentes de tenra idade inevitavelmente ausentes do ato de verdadeira temeridade que, em ambiente fortemente adverso, era a participação nessas proibidas reuniões; e que, além do mais, não teriam, ainda, maturidade para entender e apreender a essência daquilo que as Cartas pretenderiam transmitir.

Cumpre, assim, concluir que a dita exortação à obediência filial não visava, propriamente, a obediência de crianças no ambiente do lar onde, encorajadas por oportuno corretivo, seriam facilmente impedidas de se portar mal: a exortação à obediência – essencial à manutenção de um bom ordenamento social ao qual sempre será essencial o conselho dos mais velhos - tinha como destinatários os filhos menos jovens e os já adultos, cujo respeito e obediência não poderiam ser impostos, apenas  promovidos pelo convite e pela persuasão.

Na mesma linha, se tornaria desnecessária e inane a exortação à submissão das mulheres se fosse entendido – como agora parece haver quem queira supor – que ela poderia ser imposta pela força física no seio da família: àquilo que é imposto pela força, será estúpido e inútil continuar a convidar.

Aparece, assim, a referência à submissão mais como um convite a um ato maduro, voluntário e unilateral, por parte da mulher, de aceitação da orientação do marido, baseada no reconhecimento de um mais lato conhecimento da vida por parte dele, do que como um supérfluo e inútil convite ao conformismo submisso com uma situação consumada à qual as consortes não pudessem escapar

Tal como no caso dos conselhos aos filhos mais velhos, essa atitude recomendada às esposas extravasaria, naturalmente, o comportamento nas quatro paredes do lar, assim assumindo relevante papel na génese da nova sociedade que se pretenderia edificar.

Estaríamos, desta forma, na Carta aos Efésios muito mais perante um código de conduta social do que a tratar de normas de relacionamento estritamente familiar.


2.4.2. A Motivação Escondida na Polémica Passagem

Nenhum país, por mais tirânico, por mais numerosas equipadas e treinadas que sejam as suas forças militares e de segurança, alguma vez conseguirá fazer cumprir a lei e manter a ordem a não ser, antes de mais, graças ao temor do castigo que, numa vida depois da morte - que poucos se atrevem a, absolutamente, negar - sobre cada um poderá cair no caso de passar a vida terrena a prevaricar.

As igrejas – por isso mesmo habitualmente ajudadas financeiramente pelos estados - são, pois, indispensáveis como garante primeiro da estabilidade e da paz, atuando as referidas forças da ordem como instrumentos de natureza complementar, já que, sem o temor do que poderá vir depois da morte, não haveria quem controlasse as forças da ordem nem orçamento do Estado para, em quantidade suficiente de efetivos, as contratar.

Combate à Dissolução de Costumes
Exceção a esta regra não é, decididamente, a Igreja Católica, mesmo nos seus primeiros tempos, não sendo imaginável que fosse possível implementar os seus ditames e princípios no quadro caótico de dissolução de costumes de que Roma era, à época, apanágio.

Ora, é, precisamente, do combate a essa dissolução de costumes que a Carta aos Efésios vem ocupar-se, não sendo aceitável a lacuna hermenêutica de qualquer abordagem que a não contemple, sobretudo quando é o próprio Autor que expressamente o declara (Ef 1, 14-19), seja ele quem for.

Juntando a isto o que em 2.4.1 foi dito quanto a serem as relações sociais aquilo que, com as epistolares exortações, se pretendia normalizar, a ideia de as mulheres se submeterem às orientações dos maridos e de, como corolário, estes amarem as suas mulheres parece muito mais provavelmente associada a uma intenção inequívoca, porquanto tácita, de apelar à fidelidade de umas e de outros, fidelidade essa já então, como hoje, obviamente basilar na construção e preservação do modelo estável de sociedade sem o qual a mensagem cristã será, em qualquer tempo, impossível de vivenciar.

Também a ideia de fidelidade estará na base do pedido de que os maridos amem as suas mulheres, pedido que faz, aliás, tão pouco sentido como a promessa de uns e outros se amarem, mutuamente, que é pedida a quem nos nossos dias se casa. É que, sendo o amor um sentimento, e não um ato de vontade, não é algo que se possa impor ou pedir, antes uma emanação do espírito com a qual nenhum humano alguma vez se poderá comprometer: ama-se e deixa de se amar, sem que tal possa ser entendido como quebra de uma promessa de cumprimento à partida humanamente impossível de assegurar.

Submetei-vos, amai-vos, ou melhor, sede fiéis no interesse da sociedade que procuramos construir, parece, assim, ser tudo quanto, na rebuscada linguagem litúrgica, Saulo de Tarso ou alguém por ele pretendia transmitir; e vós, todos, “sede submissos uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5, 21), ou depressa não vai haver quem tenha mão nisto - como, nos nossos dias, cada vez mais parece que já não há.


2.4.3. Alquimia

O problema que subjaz a toda esta discussão é o de que, como escreveu um filósofo, psicanalista e sociólogo contemporâneo, “a maior parte das pessoas vê no problema do amor, em primeiro lugar, o problema de ser amado, e não o problema da própria capacidade de amar”.

Por outras palavras, as pessoas juntam-se, casam-se como um meio para alcançar a própria felicidade, e não para, por amor, tudo fazerem para proporcionar a do outro. Não é que não queiram ver o outro feliz – sobretudo porque é um grande frete viver com alguém que o não é… -, mas querem ver o outro feliz apenas se não tiverem de mexer uma palha para o conseguir.

Esposas: Sede Submissas!
Será isto o chamado amor? Sem submissão – sim, lido hoje, o termo não é feliz -, sem entrega mútua e voluntária, como lá chegar, à tal felicidade, ou amor, ou o que queiram chamar-lhe? Como construir algo em conjunto se o que importa, antes de mais, é cada um usufruir, curtir? O impacto social desta distorcida visão mede-se, facilmente pela absurda quantidade de divórcios - quantos por infidelidade.. - que, excluindo os anos da pandemia, não para de aumentar…

A alquimia do amor é, bem pelo contrário, a entrega mútua; e é, muito provavelmente, à submissão, à entrega voluntária de cada um no que diz especificamente respeito aos sacrifícios, por vezes enormes, a fazer para, em todas as ocasiões nos mantermos fiéis - como tanto importa ao conjunto de todos nós - que o autor da Carta aos Efésios se refere ao falar do amor dos maridos e da submissão das mulheres.

Tudo o mais que se diga poderá fazer tão pouco sentido como pretender que a Carta diz que uma mulher se deve submeter a um marido que, pela força bruta, a domina – ou vice-versa… -, ou que alguma igreja ou estado tem o direito de exigir, a quem quer que seja, que prometa, para sempre, amar alguém.

 

2.4.4. Valorização

Independentemente do sexo, a valorização do ser humano enquanto tal nasce e desenvolve-se, não a partir dos atributos físicos, como acontecia com os maridos ao tempo em que foram escritas as Epístolas, mas do estudo, da reflexão, do massajar das meninges, seja qual for a área de interesse da predileção de cada um.

Isto é válido no século XXI, tal como era válido então.

Por tal razão, há que entender que a força bruta dos maridos de então valorizava-os tanto quanto atualmente mulheres e homens são valorizados pela exibição patega da riqueza material, da supremacia corporal, dos bíceps trabalhados, dos glúteos tonificados, dos seios enchumaçados, da última moda de panos e berloques e da superior capacidade de enfiar uma bola minúscula numa baliza enorme, à custa de muita pisadela, de muita canelada, de muito palavrão.

Todos estes atributos e outros como eles não despertam o amor verdadeiro, apenas paixões levianas e efémeras em pessoas a eles sensíveis, depois à infidelidade, à separação, ao divórcio e, no fim da lista, à ainda mais indesejável desestabilização social.

Quem Não Tem Espírito
Quem tem falta de espírito enfeita o corpo, e tem todo o direito, pois claro. Não venham é, depois, dizer que umas e outros se sentem aviltados ou desconsiderados por trechos saídos da pena de quem viveu num tempo em que, tal como agora, quase só o corpo contava, mas porque, então, o conhecimento e as ideias não tinham veículo capaz de amplamente os disseminar.

Esses veículos existem nos nossos dias - livros, televisões, redes sociais -, mas o que por lá se vê tem interesse muitíssimo reduzido ou nenhum para o que, verdadeiramente, poderá contribuir para as clivagens culturais e os distúrbios sociais atenuar, num ambiente de dissolução de costumes comparável ao da antiga Roma.

Coisas estranhas afixadas por cabeças ocas, para as quais apenas conta o que se vê e o que se compra; gente que inunda as redes sociais com historietas das suas também ocas vidas, as quais intelecto e espiritualidade lhes faltam para preencher.

Era o corpo pela força bruta, antigamente; é, agora, o corpo por aquilo que tem para exibir e que, em lugar de granjear respeito e admiração, apenas serve para rebaixar quem na montra social diariamente se vai pavonear.

 

3. Prática Eclesiástica


3.1. Duas Questões de Legitimidade

Toda esta trapalhada foi motivada, recorde-se, por uma leitura feita no decorrer de uma celebração eucarística transmitida pela Radiotelevisão Portuguesa (RTP) – ou a televisão do Estado, como alguns gostam de lhe chamar.

Não faltou, assim, quem aproveitasse a embalagem para voltar a suscitar a questão da legitimidade dessas transmissões alegando que são pagas pelos impostos de todos nós, ao que as vozes da Igreja retorquiram, como habitualmente, que, sendo a maioria da população católica, existe todo o direito e, até, o dever de a comprazer.

Sabendo-se, porém, que esta maioria é tão verdadeira como é verdadeira a declaração de “católico” aos Censos, a argumentação cai pela base, até porque as igrejas vão estando cada vez mais vazias, e não parece que seja porque os católicos resolveram ficar em casa a ver a missa pela televisão, em vez de nela participa - não obstante as audiências que dizem ser relativamente expressivas, tendo em conta que se trata de Domingo pela manhã.

Instituto Nacional de Estatística
Seja pelo mais elementar receio do que estará para vir - por parte daqueles poucos que ainda se vão lembrando de que um dia irão morrer… -, seja porque foram batizados quase à nascença e, por isso, acham que são “católicos”, a verdade é que a governação do Estado e das suas empresas, como a RTP, deve basear-se em números, na estatística, ou tudo acabaria por fazer ainda menos sentido do que faz; e, sendo os números relativos a ditos católicos o que são, está a posição da Igreja quanto a estas transmissões plenamente segura e legitimada.

Pelo menos, até que a exatidão das declarações aos Censos sejam averiguadas e estes cristãos comecem a ser novamente lançados aos leões, desta vez por prestarem falsas declarações.

- x –

Uma outra questão de legitimidade não pode deixar de ser aqui abordada, mais propriamente a da legitimidade de, nos dias de hoje, passar a mensagem que incita à submissão voluntária e espontânea da mulher perante o marido – o que é substancialmente diferente de incitar ao domínio arbitrário e imposto do marido sobre a mulher.

Quanto a este ponto, o que primeiro há a salientar é que, tratando-se de uma atitude voluntária, apenas interessaria à lei na medida em que pudesse, eventualmente, ser contrária aos bons costumes por aquela protegidos. Não sendo, como não é, o caso, nada obsta a que a Igreja se exprima, quanto a esta matéria como mais lhe agradar.

Do que aqui se trata é da polémica decisão de passar uma mensagem incómoda, maioritariamente condenável na aparência se aplicada à atualidade e não aos tempos da Carta aos Efésios, mas que se encontra no âmbito do mais legítimo direito de qualquer organização definir os pressupostos da sua existência e as normas de conduta que preconiza ou exige para os seus aderentes.

Estamos, também, muito longe da situação resultante de um forte incómodo causado ao cidadão pelo Estado, face ao qual o único recurso fosse a decisão de emigrar, com todo o transtorno que isso implicaria, quantas vezes não apenas para o próprio, mas também para os seus mais diretos familiares.

No caso de uma igreja, quem não estiver satisfeito com o conteúdo da pregação ou com a prática pode, num instante, abandoná-la sem qualquer incómodo semelhante, ainda que remotamente, ao de emigrar.

Resta, pois, concluir que nada obsta, na lei ou na prática social, a que a Igreja continue a mandar ler o tal trecho socialmente proscrito da Epístola, tal como nada obsta a que, quem no seio daquela se não sentir bem, sem qualquer inconveniente vá ouvir outros pregar.

 

Utilidade
3.2. A Questão da Utilidade

Falta, para terminar, refletir um pouco sobre a utilidade – e sobre a verdadeira intenção - de ler, perante as assembleias de fieis, algo tão polémico e retrógrado como estas passagens das Cartas aos Efésios, aos Colocenses e mais uma ou outra que conste do tal calendário dos três em três anos que, independente da conjuntura de cada momento, ninguém parece ter poder para adaptar.

Diga-se, desde já, que a posição episcopal de que “os textos não se mudam, mas educam-se os leitores a entendê-los e a atualizá-los*) mais não plasma do que o incompreensível desconhecimento – apenas aparente, claro – por parte da hierarquia da Igreja Católica do baixíssimo nível intelectual, cultural e, sobretudo, do inexistente dom da palavra por parte de grande parte dos sacerdotes por isso mesmo colocados em pontos remotos, em paróquias de aldeia – e não só… -, alongando-se em homilias desmesuradas e desconexas, que já ninguém ouve, chegando a pontos de, quando o sacerdote começa a perorar, alguns fiéis saírem para fumar um cigarrito ou apanhar um pouco de ar, voltando depois.

Serão oradores deste calibre que irão educar os ouvintes ou os leitores?

Tal pretensão apenas colheria se existisse, na pregação, um nível uniformemente elevado dos educadores, o que não acontece, como bem se sabe, assim não fazendo qualquer sentido – para não ir mais longe… - a referida réplica episcopal.

Por outro lado, a ser o “educam-se” corretamente aplicado na forma reflexa, que capacidade terão para se educar-se, aos próprios, universitários cuja única e remota semelhança com os frutos da universidade pré-Bolonha e pré- outras coisas também parece ser o facto de usarem aquelas vestes negras sem significado que tanto gostam de exibir enquanto aprendem unicamente a empinar e a copiar, relegando os governantes do pelouro da educação para um plano mais do que secundário a vertente educacional e formativa de quem, na maior parte dos casos, em casa a não encontra? De quem nem interpretar sabe nem quer saber o “Filhos, obedecei a vossos pais”?

Esposas na Igreja Católica
Perante a notória e quase absoluta incapacidade de uns interpretarem corretamente e de outros terem quem os eduque na interpretação das escrituras – fenómenos que não podemos, honestamente, pretender que a Igreja Católica continue a ignorar -, haverá que concluir que a insistência em manter na liturgia estes textos aparente crípticos é deliberada, e corresponde à verdadeira convicção social dos sacerdotes e de quem os superintende na Igreja Católica.

Ou, mais simplesmente, como alguém num destes debates que por aí houve sintetizou, que “a Igreja olhapara as mulheres como mãe ou virgem*), revelando-se fundamentais os polémicos trechos de interpretação dúbia Efésios 5:22 e Colocenses 3:18 para, sub-repticiamente, esse entendimento nos levarem a, submissamente, aceitar e defender.

 

4. Conclusão

Em questões socialmente melindrosas, tão imprudentes se revelam as reações a quente baseadas em afloramentos interpretativos à revelia da razão, como a razão pobre de uma repetitiva, oficial, dogmática, confusa, rebuscada e nada convincente interpretação.

Não basta, também, deixar as supostas explicações pela rama, invocando, simplesmente, o desfasamento no tempo e nos hábitos sociais, sem procurar exaustivamente explanar, sem apresentar hipóteses credíveis para a identificação desses hábitos e das razões na
Conclusão
sua génese: deve, pelo contrário, procurar-se assegurar a consistência hermenêutica e a fundamentação racional e objetiva, não repousando enquanto se não encontrar, além do imediato, do óbvio, contributos interpretativos fornecidos pelo autor na introdução e no enquadramento do texto.

A preponderância do conhecimento por parte do marido decorrente da maior atividade social de quem, pela força bruta, mais apto se encontrava, naquele tempo, a assegurar o sustento do lar e a necessidade urgente de normalizar, designadamente no campo da fidelidade conjugal, os hábitos sociais degradados da Roma de então poderão servir os referidos requisitos da fundamentação a ponto de satisfazer intelectualmente boa parte daqueles que sobre o assunto se questionam. Sobretudo numa sociedade hoje supostamente evoluída mas para a qual amar cada mais parece ser amar-se, e não ao outro, a quem, desgraçadamente, até ao divórcio muita coisa ainda se irá ter de aturar.

Da mesma forma que, sem grande incómodo, cada um é livre de decidir se e a que igreja pretende associar-se, cada confissão religiosa é, necessariamente, livre de pregar o que muito bem entender e como muito bem entender, desde que tais ações, ou o seu resultado, ao foro criminal não acabem por interessar.

Fica, não obstante, por explicar a razão verdadeira para a insistência da Igreja Católica em manter no calendário litúrgico leituras que repugnam logo ao primeiro contacto, a maior parte dos ouvintes, fiéis ou não, sabendo-se que a maior parte dessa maior parte ninguém alguma vez conseguirá, de forma convincente, educar, procurando fazer crer que é tudo a fingir, e que a Igreja acredita em algo bem diferente daquilo em que, manifestamente, mais até do que naquele tempo continua a acreditar.

- x -

Passamos por seres inteligentes, sábios, sensatos, superiores?

Mandam, então, hoje como em qualquer tempo, essa inteligência, essa sabedoria, essa sensatez, essa superioridade, que cada um acate e siga a opinião do outro, mulher ou homem, nas áreas que melhor conhece, que melhor domina, nas áreas em que está mais apto a contribuir para um bom resultado, em lugar de procurar fazer prevalecer a decisão absurda de quem do assunto menos sabe ou nem desconfia, apenas porque é assim, porque um livro para alguns sagrado manda, porque uma religião que poucos praticam insiste em impor.

No casal, na família, na escola, no emprego, em qualquer manifestação social, seja onde for.




Afinal, Deus existe mesmo, ou não passa de pura invenção de um ser humano que desespera com a efemeridade da sua existência?

NÃO PERCA uma reflexão lógica, fundamentada, sobre o tema porventura mais elementar e decisivo da vida humana.





A existir um deus, será ele o representado
no teto da Capela Sistina? Jeová? Alá? Manitou?
Ou nenhum destes?

sábado, 31 de julho de 2021


Otelo: O Espinho que nem a Morte Arrancou

Propositado, necessário ou acidental, o bem que se faz gera, em quem o pratica,
inilidível responsabilidade pela perpétua dignificação da memória dos feitos
junto de quem deles se apercebeu, pelo que nenhum ídolo tem o direito de
boicotar a própria obra; e, em matérias tão importantes e sensíveis
como a Liberdade e a Democracia, não pode a tal ponto desiludir, quase renegar

      1. Fala Breve sobre a Motivação
      2. A Dívida dos Portugueses
      3. O Homem da Revolução
      4. O Lado Mais Negro
      5. Anedotário Politicamente Correto
      6. Cuidar do Futuro
      7. Requiescat

Sobre a Motivação
1. Fala Breve sobre a Motivação

No Palácio da Pena, em Sintra, existe a Sala das Pegas*), cujo teto está pintado com cento e trinta e seis destes pássaros – a quantidade de damas da corte na altura -, cada uma das quais segura a rosa que simboliza a Casa de Lencastre e ostenta, junto ao bico, os dizeres “POR BEM”.

Conta-se que, na origem da pintura, terá estado um beijo que El-Rei Dom João I, marido de Dona Filipa de Lencastre, dera a uma cortesã, gesto testemunhado por uma dama da corte que, qual pega tagarela, terá ido piar ao ouvido da Rainha o ternurento evento.

Justificando-se, responderia o Rei a Dona Filia que beijou “por bem”, com tal expressão querendo afastar qualquer condenável intenção.

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Foi sem querer”. “Foi por bem”.

Quantas vezes não ouvimos já, às crianças grandes que somos e às verdadeiras crianças, expressões como estas procurando justificar algo de menos bom que se fez por acidente? Ou, até, com boa intenção, mas com alguma falta de jeito, qualquer das duas expressões apenas visando fazer aceitar o que, por vezes, parece injustificável, desde um simples pecadilho a uma morte às mãos de alguém.

À morte sem intenção às mãos de alguém, ora chama o Direito crime por negligência, ora legítima defesa, e a pena aplicada é relativamente leve no primeiro caso e, até, inexistente no outro, já que seria aberrante punir quem mata ou fere para se defender ou para salvar a vida de outrem.

Deixando o contexto penal, no mundo dos comum mortais quem também “sem querer”, por mero acaso, obtém um bom resultado para outros, não pratica, na verdade, uma boa ação; logo, não merece especial louvor, já que nada terá, propositadamente, feito para que esse bom resultado acontecesse.

De igual modo, quem, já não “sem querer” mas deliberadamente, com má intenção, acaba por praticar uma boa ação, faz, também uma obra sem mérito, pois com má intenção e a título meramente instrumental a fez.

Ou seja: fê-lo, porque, para alcançar o resultado censurável que o movia, era imprescindível praticar esse tal bem que, mais tarde e sem qualquer mérito, os beneficiários, enganados e indevidamente agradecidos, lhe viriam a atribuir.

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A Conduta do Agente
Numa sociedade que se pretenda minimamente civilizada e evoluída, a valoração da conduta do agente, depende menos do resultado, bom ou mau, do que da motivação na sua génese; e isto vale, tanto para o Direito, como para a Ética, como deveria valer para o desenho da imagem mais ou menos folclórica da personagem, daquilo que, dos seus feitos, fica para contar.

Assim, aquilo que, em dado momento e com resultado positivo acidental para o bem comum, alguém possa ter feito antes não desculpa o mal que vier a fazer depois - ou a quantidade daqueles que na cadeia as culpas purgam seria, seguramente, muito inferior.

 

A Dívida dos Portugueses

Não vou preocupar-me com a demonstração de factos que bem altas instâncias já deram como provados: cingir-me-ei, unicamente, à interpretação dos mesmos tal como me chegaram e que demonstram, antes de mais, que a responsabilidade do então Major Saraiva de Carvalho no êxito da revolução que viria a derrubar a ditadura é inquestionável, e é, e será sempre, digna de assinalável registo histórico, ou jamais seria credível a História.

A fazer fé nas palavras do próprio e relembrando aquilo que, à época, se ouviu e a que se assistiu, o Senhor Major não foi apenas o comandante operacional: foi a mente por detrás do planeamento do golpe militar. Foi, a bem dizer, quase tudo, sendo digna de especial menção a brilhante estratégia de, antecedendo qualquer ação armada de maiores dimensões que poderia resultar num banho de sangue, ordenar a tomada das principais estações de radiodifusão e de televisão.

Silenciou, assim, o regime e, simultaneamente, assegurou, numa altura em que ainda não se falava de telemóveis, um veículo eficaz e simples de comunicação com os revolucionários espalhados por todo o País. Isto, sem esquecer a excecional relevância da ativação de escutas das conversas dos governantes entre si por se haver assegurado, previamente, a colaboração da Escola Prática de Transmissões*).

Entretanto, sob o comando do Capitão Salgueiro Maia*), avançava sobre Lisboa uma gigantesca coluna armada até aos dentes que, num primeiro momento, não passava, afinal, de uma genial manobra de diversão destinada a desviar as atenções das outras e primordiais operações.

Otelo Saraiva de Carvalho
Sem prejuízo de o 25 de Abril, mais tarde ou mais cedo, sempre acabar por acontecer, no planeamento e, talvez sobretudo, no improviso - inevitável em qualquer operacionalização -, dificilmente alguém com menos chama, menos vivacidade, menos carisma teria sido tão eficaz como Saraiva de Carvalho, a quem se deve boa parte do retumbante e tanto quanto possível pacífico sucesso da Revolução - goste-se ou não do Major e da Revolução.

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Já a atuação subsequente, não só pelo que fez, mas pelo que disse sem hesitação ou pudor, dúvidas não pode deixar quanto à certeza de que, quanto na Primavera de 74 fez de bom, lhe granjeou, para toda a vida e além dela, um estatuto que as qualidades pessoais manifestamente não mereciam e com o qual nunca soube lidar; e não deixa, também, dúvidas de que, na base de quanto fez, jaziam projetos e intenções dos quais custa até falar.

A evolução pela via democrática do "País que em 25 de Abril viu abertas com estrondo Pá as portas de uma esperança Pá enorme Pá no Futuro" acabaria por desiludir, profundamente, o Herói a quem arrepiava a "democracia representativa ocidental burguesa" e não escondia que “não viemos aqui para assaltar o poder. Mas queremos transformar o poder” - que, à data, já era democrático, algo que, na visão distorcida do Major, seria, sempre, de condenar.

Quaisquer incertezas que subsistissem relativamente ao que entendia por liberdade e democracia, ficaram definitiva e inequivocamente esclarecidas na sua frase “custa-me a admitir que, estando nós a fazer uma revolução decididamente no campo da esquerda, possamos admitir vozes de direita. Pessoalmente, isso repugna-me, mas, democraticamente, no âmbito da democracia ocidental burguesa, tenho de as acatar e respeitar*).

De outra forma dito: uma democracia em que todos votassem naquilo a que Saraiva de Carvalho chamava esquerda revolucionária - na qual, graças ao estatuto de heroico libertador, as suas modestas qualidades intelectuais de alguma forma pudessem brilhar - estava muito bem.

Mas, nada mais.

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Apesar de toda a sua propensão para o mediatismo, demonstrou ignorar que, propositado, necessário ou acidental, o bem que se faz gera, em quem o pratica, inilidível responsabilidade pela perpétua dignificação da memória dos feitos junto de quem deles se apercebeu, pelo que nenhum ídolo, seja de quem for, tem o direito de boicotar a própria obra; e, em matérias, tão importantes e sensíveis como a Liberdade e a Democracia, não pode a tal ponto desiludir, quase renegar.

Dever Histórico de Agradecer
O dever histórico de agradecer ao competente Oficial pelo que fez para derrubar a ditadura rápida e implacavelmente cedeu perante todo o aberrante que, nascido deste enviesado conceito de democracia, se lhe haveria de seguir.

O que de bom possa ter feito, começou em Março de 74, e logo em Abril seguinte terminou.

O que depois disse e fez demonstra que, desde o início, agiu com propósitos de tal maneira inconfessáveis que obnubilam por completo o mérito residual pela organização e operacionalização do golpe militar, pelo qual muito mais devemos à abnegação e coragem daqueles que, ao longo do tempo, sempre se souberam comportar, e o 25 de Abril souberam dignificar.

 

O Homem da Revolução

Como qualquer um pode ler nas entrelinhas da imprensa de agora e da de há mais de quarenta anos, a personalidade do Extinto era tudo menos complexa, antes de uma simplicidade atroz: tratava-se de um indivíduo intelectualmente pouco dotado, sanguíneo de carácter, sanguinário de temperamento e de educação e instrução assaz elementares no que não dissesse respeito ao combate e à ação militar.

O facto de ter sido um homem dito de esquerda radical que, apesar disso, dizem as más-línguas ter trabalhado para a Comissão de Censura - entre outras incoerências de percurso - não pressupõe qualquer complexidade, antes transmitindo uma ideia de confusão, de indecisão ou, mais simplesmente, de uma absoluta ausência de ideais além de, ora este, ora aquele que aqui ou ali ia apanhar.

De raciocínio e discurso mais que elementares, nele não sobressaía uma espinha dorsal, pessoal ou política: mais parecia um daqueles ditadores pantomineiros que se apoiam no que e em quem lhe vier à mão, só não tendo levado a bom porto os seus desgraçados intentos por ter sido travado a tempo por outros militares, pelas forças de segurança, pelos tribunais e, antes disso, pela clareza do voto popular.

Como ideal, Saraiva de Carvalho tinha, notoriamente, uma narcísica ânsia de protagonismo, anos depois bem patente no símbolo da Força de Unidade Popular (FUP)*)- e que, como caso de estudo, importaria, provavelmente, à investigação de alguma mais ou menos interessante patologia -, bem como uma sede de poder pessoal impossível de cercear.

Presidência da República
Não pode, é verdade, dizer-se que esta postura difira substancialmente da de certos governantes e outros políticos também sem conteúdo ideológico bem definido que em certos regimes ditos democráticos operam e não passam, afinal, de operacionais da luta pela própria imagem e pela saúde do respetivo património, em terras onde a corrupção continua, com o freio nos dentes, a cavalgar. Deve, no entanto, notar-se que, contrariamente a estes, Otelo Saraiva de Carvalho jamais quis assumir a liderança do Estado num quadro democrático, quando teve oportunidade para tal: apenas viria a candidatar-se à presidência da República, cereja no topo do bolo da imortalidade que sempre almejou ganhar.

Estaria, apesar de tudo, ciente de que, apesar da indiscutível competência no plano militar, não detinha qualificações mínimas para governar e que, aceite o poder e exercido este de forma incompetente, se iria a sua bem querida imagem, inexoravelmente, degradar?

- x -

Um patente e avassalador complexo de inferioridade relativamente àqueles a quem, num plano que não fosse o das armas, o Major jamais poderia surgir como igual estava, possivelmente, na origem do ódio mortal pelos opositores sentido por alguém que sempre achou que “se tivesse cultura livresca, podia ter sido o Fidel Castro da Europa”.

Bem, se não tinha, tivesse tratado disso, já que de tal nada nem ninguém o impediu, além da vontade própria de se dedicar a outras artes que conhecemos. Graças a estas, pode alimentar o desgraçado sonho da tomada do poder pela força e posterior instauração de um regime que nada tinha de democrático, antes passando por um Projeto Global dominado por um partido político radical e apoiado por um exército revolucionário que não olharia a meios para garantir a implementação das suas políticas governamentais, “visando a destruição, pelas armas, do regime democrático português*).

Ora, poderá o propósito de eliminação pura e simples de quem não se enquadrasse na tal definição muito própria de democracia - fuzilar os contrarrevolucionários no Campo Pequeno*), quem sabe se depois de os tourear - deixar de nos lembrar, salvas as devidas distâncias e proporções, um alucinado que, décadas antes e apoiado por fidelíssimas, hipnotizadas e poderosas forças armadas e de segurança implementou, não um projeto global, mas uma Solução Final igualmente pensada para a eliminação dos que, na sua doentia opinião, não eram dignos de respirar o mesmo ar que ele?

Será caso para se pensar...

 

O Lado Mais Negro
O Lado Mais Negro

Para vergonha imensa de todos nós, o Português que, com especial preponderância, organizou e operacionalizou o 25 de Abril de 1974 era adepto do terrorismo ideológico, e não tinha qualquer vergonha de considerar fascistas as democracias de tipo ocidental.

Provou-se que cometeu e mandou cometer crimes - não apenas "excessos" -, e o facto de a condenação inicial ter sido revertida por decisão do Tribunal Constitucional*), amnistia ou indulto e ter sido dispensado da pena ainda não cumprida em nada diminui a forte e dolosa culpa ou contamina a decisão relativa à prova dos factos.

Assim, dúvidas não restam de que o posterior sucesso do Major Saraiva de Carvalho na agregação de vontades de uns quantos visionários radicais como ele - que culminaria na formação das Forças Populares 25 de Abril (FP-25) de má memória - apenas serviu para espalhar, nos espíritos da população, o medo; nos corpos a mesma morte que, de forma bem mais pacífica, agora o veio chamar.

Pela força, procurou implementar um reinado de autêntico terror que, sucesso tivesse tido, não hesitaria, como a tentativa não hesitou, em recorrer à banalização do homicídio com dolo direto puro e simples*); à detonação de engenhos explosivos em representações diplomáticas e instalações militares, com o intuito de outras vidas tirar; ao roubo à mão armada a inúmeros bancos para se financiar, e a instalações do Estado para de se apropriar de impressos que permitissem às FP-25 diversos documentos falsificar; à emissão de mandados de captura em branco para mais facilmente ser perseguido quem ao caminho se lhe viesse atravessar.

Não me lembro, em contrapartida, de ter ouvido falar de sequestros: as FP-25 não faziam prisioneiros. A ordem era, sempre, para matar.

Uma antiga piada de gosto duvidoso dizia que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço, o que não era, evidentemente, verdade; mas era verdade que, sem piedade e pelas mãos das FP-25, Otelo mandava matar-lhes os pais*).

- x -

Quem não acreditar neste rosário de crimes dados como provados, que ataque específica, lúcida e fundamentadamente a prova produzida e validada em juízo, ou para sempre há de se calar: bramar à toa contra uma sentença apenas causa alarde e ofende o sistema judiciário que garante a segurança e a paz social, inclusivamente a esses mesmos que o atacam apenas quando à defesa da memória dos seus pouco merecedores heróis isso convém.

Chocam-se, e ajudam à festa do vexame público, quando agora algum outro assassino é condenado - especialmente se tiver vitimado alguém das relações deles. Nesses casos, não se preocupam em criticar as decisões judiciais. Já no caso do Major Saraiva de Carvalho, indignam-se quando se belisca a imerecida e distorcida imagem que o próprio a tantos trabalhos se deu para criar e fazer admirar.

FP-25 Forças Populares 25 de Abril
Chamar romântico e idealista a quem, sem remorso, por um difuso ideal manda matar, apenas fará sentido aos olhos dos que consideram o caminho do roubo e do assassinato como uma mera escolha infeliz, e entendem que algo tão inqualificável como as FP-25 faz parte da inenarrável utopia com que gostam de sonhar.

Diz-se, com verdade, que o 25 de Abril é historicamente mais importante do que as FP-25, que lhe são marginais. Mas Saraiva de Carvalho foi protagonista também nessa Frente terrorista que tentou subverter os ideais da Revolução dos Cravos; e, ao contrário da maior parte dos outros heróis de Abril, fez parte da gente que não soube nem sabe estar.

Anedotário Politicamente Correto

De mortuis nihil nisi bonum *) está muito bem, mas não apaga a memória individual ou coletiva, e apenas é de seguir desde que algo de fundamentalmente, de estruturalmente bom haja a dizer de quem morreu, e não apenas de um ou outro feito mais ou menos sensacional se possa falar.

Não sendo esse, propriamente, aqui o caso, o chavão da personalidade complexa foi a forma elegante que lá encontraram políticos proeminentes e comentadores já não muito incipientes para definir o popular Defunto, assim procurando fugir a acusações de maledicência comezinha e esquivando-se a, sobre ele, ter de dizer algumas coisas necessariamente embaraçosas tratando-se de quem se trata, fossem elas “boas” ou “más”.

Não passam, pois, no quadro aqui descrito, de desengraçadas anedotas as que saem da boca ou da pena de quem pretende estarmos perante de um "enfant térrible" com uma "história empolgante e apaixonante para contar", e uma "personalidade complexa" e dominada por um intrigante "lado lunar".

Bem pelo contrário, das públicas palavras proferidas após a morte - e dos não menos públicos e eloquentes quase silêncios - por quem a seu lado lutou ou nele acreditou, apenas pode concluir-se que o agora Tenente-Coronel não passou de um alucinado sem qualquer vontade de liberdade que não fosse a dele, sem sentido de responsabilidade democrática, sem qualquer competência além da inerente à conceção e operacionalização da preferencialmente violenta ação – sem prejuízo, naturalmente, do derramamento de sangue que, em 25 de Abril, a sua notável capacidade de organização permitiu evitar.

Para muitos, um grande incómodo político enquanto viveu. O mesmo incómodo agora, que morreu sem que alguém que queira ficar bem na fotografia dele aceite dizer alguma coisa: mal, não pode, por causa do dever histórico de agradecer o bem, ainda que acidental; bem, também não, já que dispensar encómios a quem demonstrou ser o que a História sabe que era acarreta um custo político que se não pode desconsiderar.

Verdadeira Liberdade
Saraiva de Carvalho era corajoso, sem dúvida; temerário, até. Foi o comandante da operação, o responsável máximo, o que mais arriscou.

Mas arriscou por ele mesmo, por aquela que, do que mais tarde fez e das palavras que proferiu, emerge como a sua verdadeira e inconfessável causa. Outros, muitos outros, arriscariam tudo lutando por todos nós, pela verdadeira Liberdade. Como entender que um seja mais falado e louvado do que os outros?

Luto nacional? Discorde-se do Governo no que se quiser, mas aqui não é possível deixar de acompanhar.

No entanto, lá conseguiu a sua homenagem: embora em Julho, não em Abril, morreu a 25, distinção que lhe fez, quem sabe, um Além capaz de descortinar para lá dos atos cujas motivações perversas e distorcidas as nossas limitadas e imperfeitas mentes não sabem aceitar; e os nossos corações sangram por não poder negar.

 

Cuidar do Futuro

Não se ouve muito a gente mais nova falar de Otelo Saraiva de Carvalho, mas é pena: como os jovens não viveram as emoções de Abril, estão, talvez, mais habilitados a julgar com objetividade a pureza, a crueza dos factos, sem preocupação com a memória e com o politicamente correto, e sem receio de derrubar de um esboroado pedestal de barro quem há muito lá não deveria estar.

Gratidão aos corajosos Capitães por tudo aquilo que o 25 de Abril significou e significa para cada um de nós, todos a sentimos; em alguma medida, mesmo quem a data faz questão de, estupidamente, continuar a invetivar.

Mas a data tem suficientes heróis, verdadeiros heróis, para que, presa da emoção excessiva e da memória curta, a sua lembrança fique excessivamente dependente de um protagonista que, além da atuação naquele incomparável e decisivo mês de Abril, pouco deixou para louvar.

Nada há de mais natural do que cada um de nós povoar o imaginário com os seus ídolos, e quase os endeusar na exata medida em que a nossa endémica insegurança o recomendar: sentimo-nos mais seguros, sentimos que fazemos parte, que somos importantes ao projetar neles as qualidades que gostaríamos de ter.

Ficamos felizes quando os tais ídolos nos entram em casa pela televisão, quando dizem bem deles, quando têm sucessos, quando marcam um golo. Pelo contrário, ai de que diga mal deles e, se algum não defende um remate ou, pior, a equipa perde, pobres de nós e, sobretudo, daqueles que levam com os despejos mais ou menos explosivos das nossas emoções.

Cromos da Bola
Aos cromos da bola tudo é permitido; e, afinal, pouco importa, já que nos seus pés apenas uma bola está em jogo: nada que a Humanidade possa, verdadeiramente, afetar. Mas a apreciação da pessoa e o julgamento dos atos do então Major Saraiva de Carvalho não pode fazer-se com a ligeireza e o fanatismo inconsequente de quem comenta um desafio de futebol: louvar, apaixonadamente esta sem dúvida importante pessoa é defender e enaltecer os seus feitos, todos os seus feitos, e subscrever, não apenas todos estes, mas a forma de estar na sociedade e na vida a que, com boa parte deles, nos quis condenar.

O que gostaríamos de ver amanhã em Portugal? Será, mesmo, o jugo terrorista de uma ditadura popular? Será a imagem do agora Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho o ideal de Cidadão que  aos nossos jovens queremos passar?

Se não é, vamos lá arrefecer um pouco o ânimo e selecionar com alguma objetividade e critério aqueles que queremos e devemos elogiar…

 

Requiescat

Desenganem-se os que ainda pensam que há dias morreu o alguém de "pouca cabeça e muito coração" de que o recente anúncio de cerveja nos vem falar: quem, há dias, morreu foi um ídolo de pés de barro, o implacável comandante do COPCON, o rosto da FUP, o homicida por detrás das FP-25, o autor e promotor da aberração que, a exemplo de outros ditadores, queria impor a todos nós: o muito seu Projeto Global de imposição, pela força dos explosivos e das armas e ordenando a aniquilação dos adversários, daquilo a que chamava verdadeira democracia, mas não passava de um reinado de terror.

A América Latina teve Guevara. Por cá, e à nossa maneira incuravelmente tuga, tivemos um aluado que nem lhe chegava aos calcanhares e tudo fez para aniquilar, subvertendo-o, o regime democrático que dizia defender e que, por ser instrumental na senda de um objetivo pessoal, com inegável coragem e dedicação num curto e muito feliz momento acabaria por ajudar a implantar.

No dia 25 de Julho de 2021 morreu um duro e rude, mas muito competente,   operacional e estratega, a quem, em vida, a maior parte dos políticos viraria a cara, se pudesse, e agora, morto, reza para que dele lhe não venham falar.

Para os radicais de esquerda que se não podem dar ao luxo de deixar de o idolatrar e para os verdadeiros e valorosos Capitães de Abril, de nobres propósitos a que se mantiveram fiéis, e que souberam, cada um, ocupar na vida posterior o respetivo lugar, o Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho foi, será sempre, o espinho que nem a morte soube arrancar.

O quam cito transit gloria mundi!


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sábado, 10 de julho de 2021


De Mãos Dadas: Défice de Comunicação e Défice de Soberania

"Se se pretende educar uma população
e elevar o nível da sua consciência ética e cívica,
há que fazê-la governar por pessoas competentes
e de reconhecidamente elevada qualidade humana:
não, nunca, por
tugas elementares que,
nada tendo de excelente, devemos tratar por Excelência
apenas por serem amigos de alguém democraticamente eleito
"


          1. A Política e a Vital Importância da Comunicação
          2. A Comunicação Política em Tempo de Pandemia
          3. Do Desempenho do Segundo Mais Alto Magistrado da Nação
          4. O Bombo da Festa                                     
          5. As Contradições de Odemira
          6. Inabilidades Avulsas na Comunicação
          7. O Primeiro Responsável pela Governação
          8. O Estado da Nação

 

Eduardo Cabrita
1. A Política e a Vital Importância da Comunicação

Todos dependemos, em menor ou maior grau, do Estado em que estamos imersos.  Literalmente imersos, em certos casos quase afogados; e tanto maior é o mergulho quanto mais impositivo é o Estado, mormente por via da muito justificada insegurança que lhe incute a incompetência genética grudada a certos órgãos ditos de soberania, em diversas épocas, sedes e áreas do governo ou da administração.

Essa incompetência decorre, essencialmente, da abundância e da proliferação, nos mais diversos lugares, de indivíduos oportunistas, ambiciosos, gente de defeituosa formação profissional e, sobretudo, humana, políticos feitos à pressa, abundância essa que fortemente contrasta com a escassez de pessoas devidamente formadas, educadas e, sobretudo, com aquele verdadeiro espírito de missão que, ingenuamente, alguns de nós ainda acabam por, ingenuamente, associar às coisas da governação.

A insegurança endémica - impossível de erradicar de militantes desnorteados que, uma vez eleitos deputados, certos partidos destacam para altas funções governativas -, leva os partidos aos quais incumbe governar a, cada vez mais, querer estar presentes onde não são chamados, a intrometer-se em aspetos do foro privado ou familiar de cada cidadão, nas decisões mais corriqueiras da vida quotidiana e, no plano público, em tudo quanto lhes parecer suscetível de dar visibilidade e de fazer os governantes e os Partidos que os lá poem parecer indispensáveis e insubstituíveis, na ilusória crença de que essa aleatória e tonta azáfama os ajudará a ganhar cada próxima eleição.

Crença ilusória, porque, da verdade indiscutível de não ser possível governar sem comunicar resulta, inevitavelmente, ser impossível governar bem sem comunicar bem; e resulta, também, que, quando se comunica mal, mesmo que se governe mais ou menos bem, sempre o comum dos mortais ficará com a ideia, certa ou errada, de que se está a governar pior do que, efetivamente, poderá estar a acontecer.

Ocorre, assim, que a comunicação, verbal e não verbal, dos incompetentes e, também, dos competentes que comunicar não sabem, acaba por se tornar, progressivamente, tão insatisfatória que redunda, fatalmente, num efeito desastroso que, seguramente, não explica o peso das intenções de voto que sondagens certamente muito rigorosas e cientificamente elaboradas possam, continuamente, assegurar a partidos aparentemente fadados à eternidade no exercício das suas funções, e aos quais, embora nada tendo contra, cada vez encontremos menos razões para agradecer.

2. A Comunicação Política em Tempo de Pandemia

Em política, não é verdade que o que importa é que falem de nós, mesmo que digam mal de nós.

Muito pelo contrário, aplica-se a velha contrariedade atribuível à mulher de César: para se ser, importa parecer, sobretudo quando nem se vislumbra qualidade numa governação da qual todos os dias damos por nós a acreditar em cada vez mais do muito mau que se vai ouvindo dizer.

Graça Fonseca
Um bom exemplo poderá ser o que se passa no país da malograda Seleção das Quinas, no qual a população se sente cada vez menos governada, mais baralhada, menos tranquila e, sobretudo, muito pouco motivada a seguir leis e recomendações, incluindo as de carácter sanitário, que nos convidam a usar sempre máscara, a guardar distanciamento, a não apertar a mão e a aos ajuntamentos dizer “Não!”.

A vontade de nos portarmos bem desvanece-se, nomeadamente, quando, num cenário de emergência sanitária, a comunicação foi, durante longo tempo, assegurada por um sujeito a quem parecia restar apenas uma centelha de vida, como que acabado de arrancar a um sono reparador*), e que, talvez incomodado por lhe ter caído o barrete de dormir, ia soltando palavras entrameladas num arrazoado desconexo e lamuriento*), proferido perante audiências ávidas de estímulo, de segurança, de confiança e de motivação para continuar a acreditar que, contra esta coisa da COVID, valia a pena lutar.

Também não ajuda que uma senhora algo cambaleante, com o ar escanzelado e idoso de uma rígida e implacável mestre-escola de antanho e de palmatória na mão, discorra dias seguidos e horas a fio sobre temas sem novidades que o sejam realmente, procurando, porventura, disfarçar a inutilidade do seu desinteressante e ineficaz esforço comunicacional com um desfilar de toilettes eventualmente apropriado a outras ocasiões*), mas não quando, num tempo já muito sofrido, se trata de transmitir uma imagem de concentração, de seriedade e de rigor no por ela trabalho desenvolvido numa área fundamental.

No meio de muito disparate junto, o que dizer, então, de uma Direção-Geral que, no início de um mês em que se realizava sessenta mil testes diários da COVID-19, afirma que o objetivo é chegar aos cem mil*) para, no fim do mesmo mês e em vez dos tais cem mil, os iniciais e reais sessenta mil terem, ao invés, descido para menos de trinta mil? Claro que, em alguma medida beneficiada por essa efetiva redução de testes, a contagem diária de novos infetados lá acabou por cair para níveis muito convenientes a quem pretendia, à viva força, desconfinar: quanto menos testes se fizer, menos infetados se irá encontrar.

Agora, lançando novamente a confusão, vêm peritos dizer que é necessário reforçar a vacina de toma única da Jansen, ao mesmo tempo que a própria Farmacêutica garante que assim não é.

Que dizer, também de um INFARMED que, numa semana, muda duas vezes de opinião quanto à perigosidade de determinada vacina, ao sabor daquilo que vai ouvindo lá de fora, até parecendo que apenas pela televisão é informado, e mal?

Tudo isto numa área “onde, sem esquisita erudição, é melhor não tocar semelhantes matérias”.

Seria, também, imperdoável não referir aqui o fiasco dos fiascos, que à República terá custado bom dinheiro: quase toda a gente ficou sem saber como funcionaria a Stayaway Covid *) – se funcionasse -, mesmo depois de essa milagrosa e indispensável aplicação muito badalada ter sido nas televisões e nos discursos ministeriais, e de a população se ver ameaçada com a devassa dos telemóveis e com a aplicação de sanções a quem neles a não instalasse.  Da Stayaway Covid, poucos meses decorridos e muitos milhares de euros deitados fora, ninguém sabe o que é, já ninguém ouve falar.

Procurando trazer alguma humanidade à coisa, uma Ministra da Saúde de aspeto jovem e aparentemente cheia de boas intenções – e que agora, ao que parece, apenas sonha com o dia em que se irá embora - dirigia-se às câmaras com a timidez de uma colegial na sua primeira e mal preparada prova oral; e, até falando, por vezes, com as mãos atrás das costas*), dizia, já no início de Março e perante uma audiência ávida de soluções, que ainda era cedo para se perceber o que tinha acontecido… no Natal passado. Isto, quando todos - menos, pelos vistos, a dita Senhora - há muito sabíamos ter sido o facilitismo governativo que nos pôs a circular no Natal por esse País fora, o que o vírus muito agradeceu.

- x -

Eduardo Ferro Rodrigues
Certo é ser obrigação de quem governa pronunciar-se sobre tudo aquilo que sai da normalidade, já que o silêncio indevido deixa sempre a sensação de que se considera estar o anormal dentro da normalidade.

Mas, deixar a esta gente tão mal preparada o cuidado de comunicar o que deveria ser uma mensagem límpida e inequívoca, inspiradora daquela tão necessária dose de confiança nestes dias vitais, apenas lança a confusão e aumenta o descrédito de uma governação já de si trôpega, amadora, deixada à sua sorte por quem tem, claramente, lá pela Europa demasiadas coisas em que pensar, “a bem da Nação” desgovernada que por cá teve de deixar.

3. Do Desempenho do Segundo Mais Alto Magistrado da Nação

Se, como no Partido Socialista há quem pretenda, a Assembleia da República é o coração da democracia*), cumpre, para que se mantenha saudável, livrá-la das gorduras, do colesterol, o que se revela particularmente difícil quando é dirigida por um histórico militante socialista constantemente chamado à atenção – pelos vice-presidentes, pela secretária, e, até, pela dirigente da bancada do partido a que pertence – pelo seu patente desconhecimento, do Regimento, e pelas consequentes irregularidades na condução dos trabalhos do plenário, deixando a ideia de que muitas mais seriam se não fosse o diligente desempenho de quem o assessora em tão altas funções.

Talvez por tudo isto já poucos lhe liguem, no Parlamento, quando, esgotado o tempo, os manda calar...

Além do mais, essa importante figura do Estado arrasta-se, literalmente, nas cerimónias públicas em frente às câmaras de televisão e apresenta, no Parlamento, um ar permanentemente exaurido, por vezes bufando o ar num gesto de enfado que podem alguns confundir com boçalidade e falta de educação, o que não ajudaria no que se refere à eficácia da parlamentar comunicação.

Depois, diz coisas, profere apartes e desabafos que mais valeria guardar para si, como é o caso do último mimo que acabou por fazer com que ficasse apeado em Lisboa, tal como o Presidente da República*), tendo antes um infeliz ministro sido enviado a Sevilha para ficar associado ao desaire da nossa também enfadada Seleção.

Sendo a pessoa bem conhecida e tudo isto há muito sabido – além do facto de se estar a, digamos, marimbar para o segredo de justiça*) e com este, quem sabe, para outros pilares do funcionamento da democracia e do Estado -, não poderemos deixar de nos questionar sobre as verdadeiras razões na base da eleição do dito militante para um segundo mandato, depois de um primeiro que, com a qualidade do seguinte, dificilmente poderia ter permitido, sequer,sonhar.

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Que qualquer um possa candidatar-se a Presidente da República, assim se correndo o risco de o mesmo qualquer um, ainda que iletrado, pouco educado e intelectualmente pouco dotado, vir a ser eleito, é um mal da Constituição para o qual já aqui chamei a atenção*).

Mas, sendo a segunda figura do Estado Português – teoricamente, pelo menos, já que, por vezes, chega a parecer que é um certo ostensivamente abastado e arrogante jogador de futebol -, o Presidente do Parlamento é eleito pelos seus pares, supostamente mais letrados, educados e dotados do que a generalidade de uma população para a qual saber dar uns toques na bola parece importar bem mais do que estar apto a dirigir eficazmente o principal órgão legislativo da Nação.


4. O Bombo da Festa

Escravatura em Odemira

Não param os partidos, a imprensa, toda a gente de bater no monolítico Ministro da Administração Interna, exemplo ímpar de fidelidade canina ao seu amigo Primeiro-Ministro.

Nada empático, de ar sempre zangado e façanhudo, um dos governantes mais essenciais à manutenção da ordem pública comunica pior que mal, movimenta-se atabalhoadamente e aos arranques como um robot; tem, globalmente, uma linguagem corporal que afasta, quase causa alergia e gera, seguramente, estupefação. 

Em situações para ele incómodas, responde de forma enviesada ou assobia para o lado, como perante os inaceitáveis excessos a que assistimos nas comemorações da vitória do Sporting na chamada Liga NOS; ou no caso do crime de ofensas corporais extremamente graves cometido por elementos afetos a órgãos sob sua administração e que levaram à morte de um cidadão estrangeiro, procurando, neste caso, como em outros, justificar o injustificável com chavões proferidos de punhos fechados e em tom mais adequado a um militante perorando num comício perante a multidão, do que a um alto quadro do Estado desculpando-se pelas suas imperfeições. Tempos depois, como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras o tinha deixado ficar mal, manda eliminá-lo, integrá-lo, o que a ato tão ditatorial quanto irracional quisermos chamar.

A completa falta de aparência da mais ténue humanidade no caso do atropelamento mortal de um funcionário da BRISA pela viatura oficial em que o Ministro seguia, e a contradição entre versão oficial do Ministério da Administração Interna (MAI) e a da Concessionária da autoestrada em que o sinistro ocorreu, não podem deixar de suscitar as maiores dúvidas quanto à eficácia política da obstinação do Primeiro-Ministro em manter em funções tal personagem*). A menos, naturalmente, que mais ninguém de confiança  aceite ocupar o difícil lugar, de má memória no que aos mais recentes titulares diz respeito*).

A viatura acidentada imobilizou-se a escassos metros da vítima, que ficou mesmo ali ao pé, e não houve um momento da mais elementar humanidade que impulsionasse o Ministro e sua companhia a precipitar-se para junto do sinistrado.

O homem não só nem saiu do carro para ver o que se tinha passado – e não será fácil imaginar qual teria sido a reação espontânea, em idênticas circunstâncias, do Presidente da República… -, como não se interessou, mais tarde, pela família da vítima. Até emitiu um comunicado sugerindo que seria do próprio trabalhador vitimado toda a responsabilidade pelo sucedido; e, mesmo quando convidado pelo Presidente a dizer alguma coisa que fosse, apenas respondeu, perante as câmaras da televisão, com um seco: “Não! Não!

A cereja no topo do bolo terá, porém, sido a afirmação da Guarda Nacional Republicana (GNR) quanto ao facto de ter sido impedida, por ordem superior, de efetuar, na viatura sinistrada, todas as diligências de prova que entendeu necessária*) . Ora, sabendo-se quem é o superior hierárquico máximo da Guarda – o MAI -, não será difícil adivinhar de onde terá vindo a ordem superior.

Que um político proeminente, atolado até aos ouvidos em suspeitas de nepotismo*) - e que, provavelmente por isso mesmo, tenha sido convidado a não se recandidatar a deputado – venha a terreno falar de imoralidade para defender o dito ministro*), não será, talvez, a melhor forma de lhe limpar a imagem, também…

Graça Freitas
Se se pretende educar uma população e elevar o nível da sua consciência ética e cívica, há que fazê-la governar por pessoas competentes e de reconhecidamente elevada qualidade humana: não, nunca, por tugas elementares que, nada tendo de excelente, devemos tratar por Excelência
apenas por serem amigos de alguém democraticamente eleito.

Num outro episódio mediático, as conclusões, porventura precipitadas, a que a generalidade da população parece ter chegado quanto à nomeação do cônjuge do dito Ministro para um alto cargo de controlo e supervisão também não ajuda a formar a tal imagem de isenção e idoneidade em que o exercício da soberania deverá, desejavelmente, assentar. Mas, enfim, dado que, por tanto terem as más-línguas falado de nepotismo, o cônjuge, outrora Ministra teve de abdicar do lugar, é considerado normal e saudável nesta nossa infeliz e manipulada democracia que, de alguma forma, o Partido o houvesse de compensar*).

O que mais espanta é que, em plena audição parlamentar, o dito cônjuge, questionado quanto a alguma entidade reguladora europeia ter como administrador “um familiar direto de um ministro” – não uma mulher” –, se tenha manifestado ofendido enquanto mulher e vítima de “tentativa de menorização” por “machismo e misoginia”, apenas tendo sido timidamente chamada a sua atenção para o desfasamento da resposta relativamente à pergunta formulada.

Trata-se de mais um episódio de exploração notoriamente abusiva da estafada lengalenga feminista para justificar o injustificável*), e para alguém se insurgir, como que por automatismo, contra um tema com que não tinha sido confrontado.

Como se o que transparece do desempenho do Ministro não bastasse, por si só, para lhe retirar toda a legitimidade substantiva para se manter no lugar, faltava, para piorar as coisas, esta nova vertente familiar.

5. As Contradições de Odemira

Igualmente danoso para a imagem da governação não deixa de ser o facto de o mesmo Ministro da Administração Interna se achar no direito de ordenar a forças de segurança que irrompam à bruta, com armas e canídeos, por uma propriedade privada a fim de dela o Estado tomar posse, numa desesperada, incompetente e autoritária tentativa de resolver uma situação de emergência sanitária nascida de outra situação, porventura bem mais grave, de aparente exploração de trabalho quase escravo de imigrantes amontoados em contentores apinhados de beliches arrendados a preço do ouro por pessoas indignas de ser chamadas empresários.

Também não terá ajudado o facto de uma ministra procurar justificar a anterior inércia governativa sobre este tema da quase escravatura com o facto de os empresários cumpridores não haverem denunciado às autoridades o que se passava noutras empresas, assim demonstrando a Ministra que, ao mais alto nível do Estado, ainda se confunde a atividade empresarial com a de informador, outrora essencial ao funcionamento da polícia política em tempos que até custa recordar. Isto, tratando-se de uma situação de exploração de humanos cuja existência era, patentemente, impossível o Governo ignorar.

Escravatura em Odemira

No rescaldo, não pode haver grandes dúvidas quanto ao facto de, com o seu estilo cáustico e ar façanhudo, o desajeitado e ensimesmado Ministro da Administração Interna se ter convencido – vá lá saber-se como ou porquê - de que os proprietários de segundas habitações de férias não hesitariam em disponibilizar as suas casas para acolher imigrantes confinados: é que um dos piores vícios da maior parte dos ditadores de pacotilha consiste em, à força de tanto pensar que todos devemos pensar como eles, acabarem por se convencer de que, efetivamente, assim pensamos. O que é um erro crasso, claro está.

A jovem Ministra da Presidência justificava, entretanto, a entrada de rompante de forças de segurança, às quatro da manhã, numa propriedade privada em Odemira, com alegadas dificuldades em assegurar adequada tradução aos trabalhadores migrantes; mas, mesmo às quatro da manhã e, supostamente, contando eles já com a tal tradução tão difícil de assegurar, os embasbacados realojados à força – alguns dos quais falavam inglês e poderiam, facilmente, servir de intérpretes junto dos outros - não faziam a mais pequena ideia do que se estava a passar.

Desconheciam, nomeadamente, a razão pela qual estavam os miseráveis tugúrios que habitavam a ser invadidos e eles de lá removidos contra vontade, como se se tratasse de coisas ou de animais.

Já para a GNR, o facto de haverem os trabalhadores sido desalojados a desoras deveu-se a não especificadas “razões de segurança”. Para o Presidente da Câmara Municipal de Odemira, terá sido, antes, por causa da necessidade de articular, com representantes da massa insolvente – que, mais do que provavelmente, dormiam a sono solto nessas horas impróprias -, tão precipitada e achaboucada intervenção.

Ah, como seria bom para a tranquilidade de todos nós que certas pessoas não contornassem tanto a verdade, e o Estado falasse todo a uma só voz!

Toda esta exploração humana se refere, ainda para mais, a uma zona onde a sempre atenta Secretária de Estado da Integração e das Migrações considera viver-se um notável exemplo de integração de migrantes que para cá vêm trabalhar*).

Assim sendo, quantas mais “desconhecidas” e exemplares Odemiras como esta por esse Portugal iremos, ainda, encontrar?

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A tarefa de qualquer Governo minimamente civilizado e cívico não se resume a cuidar dos interesses daqueles que pagam impostos: cabe-lhe, também - e principalmente - zelar por aqueles para quem, por nunca terem tido o direito de viver plenamente, o dia mais importante da vida é, porventura, o da morte, já que, da vida, pouco ou nada de bom terão para recordar.

Odemira foi, é, apenas mais uma etapa do processo de declínio e entropia de um Governo de um só homem, por este temporariamente deixado à sorte e por conta de cada um dos desarticulados elementos de uma heterogénea amálgama que não merece o nome de equipa, que só não é remodelada porque, se estes são maus, o Primeiro-Ministro bem sabe que outros que viessem de fora do seu círculo bem piores poderiam ser ainda.

Em equipa que ganha, não se mexe.

Mas esta não ganha, só (nos) empata, e bem mereceria uma boa mexida, para se manter na competição. Perdão, na suposta governação.

Inabilidades Avulsas na Comunicação
6. Inabilidades Avulsas na Comunicação

Noutro tempo e lugar, a Ministra da Justiça mostrou-se notoriamente incapaz de entender que, perante a opinião pública, se não é corrupto ou aldrabão, é incompetente quem aparece como procurando, em benefício de mais uma daquelas tão cobiçadas candidaturas europeias, encobrir erros curriculares básicos*) que alguns não deixarão de aproveitar para denegrir a imagem de todo um país, muito especial se esta nebulosa sobre a área da Justiça pairar.

Calar demasiado, fugindo, simultaneamente, à questão formulada e às mais elementares normas da cortesia, também não será o mais adequado a uma Ministra da Cultura que, questionada sobre a pressão social e económica sentida pelos profissionais do setor que tutela, se limitaria a sugerir que se reunissem para uma bebida ao fim da tarde*);  ou quando o apagado ministro da tutela e a exuberante deputada orientadora - ex-Ministra da Administração Interna nomeada pelo mesmo Partido  Socialista - ficam, meses a fio, mudos e quedos perante uma alegada semelhança de quarenta e seis por cento, por plágio, na dissertação de mestrado apresentada numa universidade privada portuguesa por um recém-empossado magistrado do Supremo Tribunal de um país irmão*).

Tampouco ajudará, entre tantos outros episódios, que uma jovem governante diga, em determinado dia, que sobre determinado assunto nem valerá a pena falar para, apenas dois dias decorridos, se não coibir de, discursando perante outros jovens do mesmo partido que ela, adiantar pormenores sobre o mesmo determinado assunto do qual, na antevéspera, nem queria ouvir falar, talvez ignorando que, como terá dito um presbítero português do século XVII, “consiste a virtude do silêncio não em cessar o ofício de falar, mas em calar e falar a seu tempo”; ou que a mesma jovem venha, agora, anunciar, com horas de antecedência e o ar hesitante e comprometido de quem sabe estar a fazer asneira e à espera de que não lhe ralhem muito, medidas de utilidade duvidosa e de formulação confusa tendo como alvo setores vitais para a economia nacional, designadamente a restauração e a hotelaria*).

Além do Primeiro-Ministro e, quando muito, do Ministro dos Negócios Estrangeiros, quem tem autoridade, entre toda esta gente, como nunca tanta foi?

Sem autoridade, não há soberania. É como se o Governo não existisse: alguém faz coisas, muitas delas disparatadas, mas a ninguém pode ser associada uma governação efetiva. E os ministros e secretários de estado são tantos, tantos...

As contradições entre mensagens no Governo e na Administração são já encaradas com naturalidade por uma população convenientemente anestesiada pela desconexa ação de quem, excetuando os quase sobrepostos faits divers do originados no Ministro da Administração Interna, parece limitar a sua ação visível à gestão de uma pandemia que parecia ter entrado em velocidade de cruzeiro, mas que as comemorações da vitória do Sporting Club de Portugal na Primeira Liga de Futebol, viabilizadas pela Câmara Municipal de Lisboa*), vieram, agora nas camadas mais jovens, fazer acelerar.

Na primeira Primavera da COVID, era ouvi-los elogiar, uma vez mais, o tal civismo do povo português que ainda bem pouca gente alguma vez terá tido o privilégio de, ao menos, vislumbrar. Vê-se, agora, o impacto negativo da comunicação hipócrita e inábil de quem os males estruturais da sociedade portuguesa teve, então, medo de salientar e de, contra os seus perigos, a restante população alertar.

Além da gestão da pandemia, nada mais parece interessar, atualmente, à política que não seja garantir que, desta vez, não se deixa de aproveitar até ao tutano os fundos europeus que aí estarão para chegar*), e até darão para fazer, daqui a cinco anos, uma festa de arromba para comemorar os cinquenta anos de uma democracia que ainda ninguém chegou a entender no que irá dar, enchendo, entretanto, os bolsos de um coordenador e de uma data de penduricalhos que, pelas benesses da romaria a que, provavelmente, uma escassa meia dúzia irá acorrer, nem se lembrarão de qualquer agradecimento expressar.

Perante o prolongado mutismo do Primeiro-Ministro sobre o assunto, a nomeação unilateral – sem consultar os outros partidos ou, até, o primeiro Presidente da República eleito em democracia - do principescamente remunerado comissário executivo das comemorações do quinquagésimo aniversário da revolução de 25 de Abril de 1974 chocou o País inteiro*). O País inteiro, menos o Partido Socialista, que parece julgar-se o dono das comemorações, tal como a Associação 25 de Abril se julgou dona do aniversário comemorado em 2021*).

Tiques ditatoriais de um Partido que se julga “o dono disto tudo”; e com alguma razão, já que os nada parecem entender, mesmo em casa própria, de política ou do ofício de governar.

O Primeiro Responsável pela Governação
7. O Primeiro Responsável pela Governação

A anarquia está em toda a parte, quando a responsabilidade não está em parte alguma*), e a verdade é que, nestes primeiros seis meses de 2021, enquanto o Primeiro-Ministro andou – e muito bem - a larear a Presidência Portuguesa por essa Europa fora, ficou o País à mercê de um punhado de desarticulados governantes, manifestamente incapazes de, sem o treinador, dar conta do recado.

Num tal cenário, não pode deixar de vir ao espírito o desnorte e o quase silêncio da Administração da Benfica SAD quando há poucos dias, abruptamente deixou se poder contar com os bons ofícios de um presidente com um estilo de governação também monolítico e centralizador.

Aparentemente, ninguém capaz havia para deixar a governar cá na terrinha, onde a irresponsabilidade reinava e os lobos iam tomando conta de um povoado guardado por gente com ar inseguro, como a Ministra da Presidência nas suas comunicações hesitantes, tíbias e desconexas, em que já ninguém entende quem entender se não faz.

É verdade que, no que à popularidade diz respeito, o sorriso, ainda que tenso e fechado, de um primeiro-ministro pode valer milhares de votos contra desiludidos, perdidos, estafados e sisudos oponentes; tal como para assegurar uma certa boa-vontade dos contribuintes pode servir, de vez em quando, o permanente sorriso de um Ministro das Finanças, por muito malquista que a sua atuação possa ser.

O que a maior parte dos políticos não entende, porém, é que o sorriso – mas um sorriso franco, aberto – e um discurso coerente e firme são componentes essenciais da comunicação.

Ora, o Primeiro Ministro já deu sinais de irascibilidade*) e, pelos vistos, aprecia, entre os seus amigos, o estilo, começando pelo eterno Ministro da Administração Interna que, teimosamente, o primeiro se obstina, não apenas em, contra tudo e contra todos, manter em funções, como até em elogiar na sua atuação.

Vale também, quanto a irascibilidade, a pena lembrar o Secretário de Estado Adjunto e da Energia que, referindo-se ao programa da RTP Sexta às Nove, disse, com todas as letras, que "estrume, só mesmo essa coisa asquerosa que quer ser considerada um programa de televisão"*).

Chegam as eleições autárquicas e, apesar de amigos, Primeiro-Ministro e Ministro da Administração Interna andam de candeias às avessas*), defendendo cada um deles o seu modelo de votação, enquanto o primeiro e o Ministro das Infraestruturas e da Habitação – como eles gostam de nomes compridos… - se envolvem numa sempre negada mas evidente peleja*), a que agora se junta, para ajudar à festa, a normalmente apagada chefe da bancada parlamentar do Partido Socialista.

A agir assim, não será de admirar que o cidadão comum acabe, progressivamente, por comparar quem o governa a egocêntricos indivíduos sem rei nem roque, sem rumo, incapazes de, primeiro, planear e, depois, resolver eficazmente os imprevistos, mais não lhes restando do que o recurso a tiques ditatoriais de quem parece sempre preferir entrar à força, através de requisições civis e outras medidas extremas. Falam o menos possível, como quem tem culpas no cartório ou não está inteiramente à vontade com a sua consciência – ou, mais simplesmente, não faz a mínima ideia de como atuar -, em lugar de convidar, não apenas à negociação, mas à própria colaboração de pessoas eventualmente habilitadas a encontrar formas alternativas de resolução.

Também em nada beneficia a credibilidade do Primeiro-Ministro o silêncio – ou o falar tardio - em questões sensíveis, como a da passagem de informações aos russos pela Câmara Municipal de Lisboa. “Não devemos juntar à demência do real a tolice de uma explicação*), mas há limites para aquilo que o CEO do País pode calar; e dentro desses limites não se inclui, seguramente, o silêncio quanto à detenção e às acusações que impendem sobre o recandidato à presidência da dita Nação Benfiquista a cuja comissão eleitoral de honra o dito CEO teve a imprudência de se associar*).

Danos reputacionais na Europa
Não pode, sobretudo, manter o silêncio sobre estes e outros casos, relativamente aos quais são, para Portugal, gravosos e evidentes os danos reputacionais na Europa por onde andou, durante seis longos meses, a deambular.

Depois, quando a falta de coordenação política permite que a autonomia ministerial vá longe demais, alguns ajustes têm de ser feitos, como a desautorização do Ministro da tutela no caso da nomeação do presidente do conselho de administração da TAP*), com todo o impacto mediático negativo que consigo acarretou.

Ora, voltando à mulher de César – o romano, não o açoriano -, a soberania, para ser efetiva, depende muito da aparência de qualidade e de consistência no seu exercício, que atitudes pouco ou nada edificantes por parte de quem tem obrigação maior de saber estar não contribuem para dignificar. Isto acontece especialmente quando lugares de topo de um ministério ou de uma câmara municipal forem ocupados por militantes diletos do Secretário-Geral do Partido que, esquecendo-se de que quem começa como figurante raramente chega a astro, nem tentam disfarçar as suas candidaturas a uma mais ou menos rápida sucessão de quem poderá ter-se esquecido de que, em política, é insensato dar força a alguém sem, ao mesmo tempo, nos prepararmos para mais tarde poder vencê-lo.

Será distanciamento, ou uma já muito expressiva debilidade política do Primeiro-Ministro no seio do próprio Partido Socialista? O recente incidente com a Concelhia do Porto dá que pensar*) tal como não pode deixar de fazer pensar a indigitação, para presidir ao novíssimo Banco de Fomento, de um putativo conselheiro financeiro de um certo empresário recentemente detido para interrogatório e de cuja comissão de honra, na recandidatura à presidência da Nação Benfiquista, o mesmo Primeiro-Ministro fez parte *). E, tanto tempo depois, ainda falam da mulher de César, coitada...  

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O Governo tem lepra.

Está a cair aos bocados, com ministros a precisar de ser removidos*), e outros a querer ir, recatadamente, tratar das suas vidinhas*), em lugar de, independentemente do eventual mérito de um ou outro, estar a deixar desgastar a imagem pela incontrolável e justificada irrisão que o ridículo de que se reveste, em Portugal, o exercício da soberania, suscita em milhões de desgovernados que por aqui andam a penar.


8. O Estado da Nação

O défice de soberania que inquina uma qualquer estrutura governativa e parlamentar eivada de impreparados arrivistas - alguns dos quais pouco mais terão feito na vida do que arrastar-se pelo pantanal dos órgãos partidários e afins e, outros, lambuzar-se com as benesses e proventos proporcionados pelos mesmos – decorre da perda de legitimidade para governar e legislar por parte de quem, em lugar de refletir sobre as questões de fundo e planear estrategicamente grandes opções de acordo com uma linha coerente e bem definida, mais parece preocupar-se em cuidar de, sob o ponto de vista da popularidade fácil, maximizar o aproveitamento mediático de emergências com as quais, patentemente, está impreparado para lidar e satisfatoriamente resolver.

Recorre-se, assim, à velha tática de pintar o quadro mais tenebroso em que os governados sejam capazes de acreditar para, em seguida, aparecer como o obreiro de… coisa nenhuma.

Num tal quadro, o facto de, no topo da pirâmide, poder estar alguém que pareça carregar às costas um aeroporto móvel que ora vai ser construído aqui, como sem dúvida alguma ali, como desta vez é que é mesmo acolá e, quando enervado ou irritado, come metade das palavras que pensa, não agravará muito, talvez, o enorme dano causado pelos seus seguidores mediante uma comunicação institucional tão pobre como a que estas linhas procuraram caracterizar.

No mesmo cenário, não será de admirar que na população se instale a convicção crescente de que a democracia poderá não passar de uma excelente ideia com um péssimo resultado, pelo qual ninguém parece querer responsabilizar-se.

Défice de Soberania
Que pessoas habitarão um país em que, para algumas das mais altas funções do Estado, os partidos não conseguem arregimentar gente menos incompetente e mais adequada do que esta? Será que, afinal, o mal não é exclusivo do tal Partido de que já nem se consegue ouvir falar, e cujas pessoas e valores de antigamente apenas conseguimos, com nostalgia, recordar?

Não estamos em presença de um simples e pontual défice de autoridade, mas já de um inilidível défice de soberania, desde há meses agravado, e de que maneira, pelo défice de escrutínio democrático decorrente da redução drástica da quantidade de debates parlamentares, redução essa da responsabilidade, em conluio, do Partido Socialista e do Partido Social Democrata, contra toda a restante oposição e perante um primeiro veto presidencial, cuja verdadeira mensagem nem houve o cuidado de respeitar*).

Portugal continua, assim, em imparável deriva para o paraíso de oportunistas e de incompetentes em que meia dúzia quer transformá-lo, como acontece em qualquer pseudodemocracia que, a tais abusos e desmandos, verdadeira e eficaz oposição não saiba concertar.

Já as sondagens – com cujos indicadores tantos se admiram – são bem fáceis de explicar: mal ou bem, lá vão estes socialistas formados à pressa levando o barco, ora a um porto, ora a outro, às apalpadelas, cedendo aqui, cedendo acolá, sem rumo definido, enquanto as tripulações alternativas que governar se propõem, além de claramente incapazes, nem têm, ao menos, quem as saiba comandar.

Em quem mais iriam os Portugueses, num tal cenário, votar?

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Quando, algures, aos primeiros raios de Sol do último Sábado de Fevereiro e fazendo vista grossa ao dever geral de confinamento, mais de quarenta por cento dos habitantes saem de casa para, pelo paredão da praia, ir caminhar; quando, por parte de quem supostamente governa, é flagrante a pusilanimidade perante a oligarquia do futebol, a ponto de, com os novos casos de COVID a triplicar, termos ficado sem as romarias dos Santos e as inerentes receitas comerciais, por causa das imprudentes e ilegais comemorações de uma final estrangeira da Champions e da muito tuga vitória do Sporting na Liga NOS*), algo está a funcionar mesmo muito mal, quer ao nível da soberania, quer ao da indispensável e subjacente necessidade de comunicar.

Como escreveu um autor irlandês da atualidade, num trecho bem ilustrativo da comunicação política que por aí vai:

Vivemos numa cultura de advocacia extrema, de confronto, de julgamento e de veredicto.
A discussão cedeu lugar ao debate. Comunicar transformou-se numa competição de vontades. O discurso público tornou-se obnóxio e insincero. Porquê?
Talvez seja porque, no fundo, debaixo de todo este palavreado,
tenhamos chegado a um ponto em que sabemos que sabemos... nada.
Mas ninguém está disposto a dizê-lo
”.

Sic transit gloria mundi


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