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sábado, 31 de julho de 2021


Otelo: O Espinho que nem a Morte Arrancou

Propositado, necessário ou acidental, o bem que se faz gera, em quem o pratica,
inilidível responsabilidade pela perpétua dignificação da memória dos feitos
junto de quem deles se apercebeu, pelo que nenhum ídolo tem o direito de
boicotar a própria obra; e, em matérias tão importantes e sensíveis
como a Liberdade e a Democracia, não pode a tal ponto desiludir, quase renegar

      1. Fala Breve sobre a Motivação
      2. A Dívida dos Portugueses
      3. O Homem da Revolução
      4. O Lado Mais Negro
      5. Anedotário Politicamente Correto
      6. Cuidar do Futuro
      7. Requiescat

Sobre a Motivação
1. Fala Breve sobre a Motivação

No Palácio da Pena, em Sintra, existe a Sala das Pegas*), cujo teto está pintado com cento e trinta e seis destes pássaros – a quantidade de damas da corte na altura -, cada uma das quais segura a rosa que simboliza a Casa de Lencastre e ostenta, junto ao bico, os dizeres “POR BEM”.

Conta-se que, na origem da pintura, terá estado um beijo que El-Rei Dom João I, marido de Dona Filipa de Lencastre, dera a uma cortesã, gesto testemunhado por uma dama da corte que, qual pega tagarela, terá ido piar ao ouvido da Rainha o ternurento evento.

Justificando-se, responderia o Rei a Dona Filia que beijou “por bem”, com tal expressão querendo afastar qualquer condenável intenção.

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Foi sem querer”. “Foi por bem”.

Quantas vezes não ouvimos já, às crianças grandes que somos e às verdadeiras crianças, expressões como estas procurando justificar algo de menos bom que se fez por acidente? Ou, até, com boa intenção, mas com alguma falta de jeito, qualquer das duas expressões apenas visando fazer aceitar o que, por vezes, parece injustificável, desde um simples pecadilho a uma morte às mãos de alguém.

À morte sem intenção às mãos de alguém, ora chama o Direito crime por negligência, ora legítima defesa, e a pena aplicada é relativamente leve no primeiro caso e, até, inexistente no outro, já que seria aberrante punir quem mata ou fere para se defender ou para salvar a vida de outrem.

Deixando o contexto penal, no mundo dos comum mortais quem também “sem querer”, por mero acaso, obtém um bom resultado para outros, não pratica, na verdade, uma boa ação; logo, não merece especial louvor, já que nada terá, propositadamente, feito para que esse bom resultado acontecesse.

De igual modo, quem, já não “sem querer” mas deliberadamente, com má intenção, acaba por praticar uma boa ação, faz, também uma obra sem mérito, pois com má intenção e a título meramente instrumental a fez.

Ou seja: fê-lo, porque, para alcançar o resultado censurável que o movia, era imprescindível praticar esse tal bem que, mais tarde e sem qualquer mérito, os beneficiários, enganados e indevidamente agradecidos, lhe viriam a atribuir.

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A Conduta do Agente
Numa sociedade que se pretenda minimamente civilizada e evoluída, a valoração da conduta do agente, depende menos do resultado, bom ou mau, do que da motivação na sua génese; e isto vale, tanto para o Direito, como para a Ética, como deveria valer para o desenho da imagem mais ou menos folclórica da personagem, daquilo que, dos seus feitos, fica para contar.

Assim, aquilo que, em dado momento e com resultado positivo acidental para o bem comum, alguém possa ter feito antes não desculpa o mal que vier a fazer depois - ou a quantidade daqueles que na cadeia as culpas purgam seria, seguramente, muito inferior.

 

A Dívida dos Portugueses

Não vou preocupar-me com a demonstração de factos que bem altas instâncias já deram como provados: cingir-me-ei, unicamente, à interpretação dos mesmos tal como me chegaram e que demonstram, antes de mais, que a responsabilidade do então Major Saraiva de Carvalho no êxito da revolução que viria a derrubar a ditadura é inquestionável, e é, e será sempre, digna de assinalável registo histórico, ou jamais seria credível a História.

A fazer fé nas palavras do próprio e relembrando aquilo que, à época, se ouviu e a que se assistiu, o Senhor Major não foi apenas o comandante operacional: foi a mente por detrás do planeamento do golpe militar. Foi, a bem dizer, quase tudo, sendo digna de especial menção a brilhante estratégia de, antecedendo qualquer ação armada de maiores dimensões que poderia resultar num banho de sangue, ordenar a tomada das principais estações de radiodifusão e de televisão.

Silenciou, assim, o regime e, simultaneamente, assegurou, numa altura em que ainda não se falava de telemóveis, um veículo eficaz e simples de comunicação com os revolucionários espalhados por todo o País. Isto, sem esquecer a excecional relevância da ativação de escutas das conversas dos governantes entre si por se haver assegurado, previamente, a colaboração da Escola Prática de Transmissões*).

Entretanto, sob o comando do Capitão Salgueiro Maia*), avançava sobre Lisboa uma gigantesca coluna armada até aos dentes que, num primeiro momento, não passava, afinal, de uma genial manobra de diversão destinada a desviar as atenções das outras e primordiais operações.

Otelo Saraiva de Carvalho
Sem prejuízo de o 25 de Abril, mais tarde ou mais cedo, sempre acabar por acontecer, no planeamento e, talvez sobretudo, no improviso - inevitável em qualquer operacionalização -, dificilmente alguém com menos chama, menos vivacidade, menos carisma teria sido tão eficaz como Saraiva de Carvalho, a quem se deve boa parte do retumbante e tanto quanto possível pacífico sucesso da Revolução - goste-se ou não do Major e da Revolução.

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Já a atuação subsequente, não só pelo que fez, mas pelo que disse sem hesitação ou pudor, dúvidas não pode deixar quanto à certeza de que, quanto na Primavera de 74 fez de bom, lhe granjeou, para toda a vida e além dela, um estatuto que as qualidades pessoais manifestamente não mereciam e com o qual nunca soube lidar; e não deixa, também, dúvidas de que, na base de quanto fez, jaziam projetos e intenções dos quais custa até falar.

A evolução pela via democrática do "País que em 25 de Abril viu abertas com estrondo Pá as portas de uma esperança Pá enorme Pá no Futuro" acabaria por desiludir, profundamente, o Herói a quem arrepiava a "democracia representativa ocidental burguesa" e não escondia que “não viemos aqui para assaltar o poder. Mas queremos transformar o poder” - que, à data, já era democrático, algo que, na visão distorcida do Major, seria, sempre, de condenar.

Quaisquer incertezas que subsistissem relativamente ao que entendia por liberdade e democracia, ficaram definitiva e inequivocamente esclarecidas na sua frase “custa-me a admitir que, estando nós a fazer uma revolução decididamente no campo da esquerda, possamos admitir vozes de direita. Pessoalmente, isso repugna-me, mas, democraticamente, no âmbito da democracia ocidental burguesa, tenho de as acatar e respeitar*).

De outra forma dito: uma democracia em que todos votassem naquilo a que Saraiva de Carvalho chamava esquerda revolucionária - na qual, graças ao estatuto de heroico libertador, as suas modestas qualidades intelectuais de alguma forma pudessem brilhar - estava muito bem.

Mas, nada mais.

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Apesar de toda a sua propensão para o mediatismo, demonstrou ignorar que, propositado, necessário ou acidental, o bem que se faz gera, em quem o pratica, inilidível responsabilidade pela perpétua dignificação da memória dos feitos junto de quem deles se apercebeu, pelo que nenhum ídolo, seja de quem for, tem o direito de boicotar a própria obra; e, em matérias, tão importantes e sensíveis como a Liberdade e a Democracia, não pode a tal ponto desiludir, quase renegar.

Dever Histórico de Agradecer
O dever histórico de agradecer ao competente Oficial pelo que fez para derrubar a ditadura rápida e implacavelmente cedeu perante todo o aberrante que, nascido deste enviesado conceito de democracia, se lhe haveria de seguir.

O que de bom possa ter feito, começou em Março de 74, e logo em Abril seguinte terminou.

O que depois disse e fez demonstra que, desde o início, agiu com propósitos de tal maneira inconfessáveis que obnubilam por completo o mérito residual pela organização e operacionalização do golpe militar, pelo qual muito mais devemos à abnegação e coragem daqueles que, ao longo do tempo, sempre se souberam comportar, e o 25 de Abril souberam dignificar.

 

O Homem da Revolução

Como qualquer um pode ler nas entrelinhas da imprensa de agora e da de há mais de quarenta anos, a personalidade do Extinto era tudo menos complexa, antes de uma simplicidade atroz: tratava-se de um indivíduo intelectualmente pouco dotado, sanguíneo de carácter, sanguinário de temperamento e de educação e instrução assaz elementares no que não dissesse respeito ao combate e à ação militar.

O facto de ter sido um homem dito de esquerda radical que, apesar disso, dizem as más-línguas ter trabalhado para a Comissão de Censura - entre outras incoerências de percurso - não pressupõe qualquer complexidade, antes transmitindo uma ideia de confusão, de indecisão ou, mais simplesmente, de uma absoluta ausência de ideais além de, ora este, ora aquele que aqui ou ali ia apanhar.

De raciocínio e discurso mais que elementares, nele não sobressaía uma espinha dorsal, pessoal ou política: mais parecia um daqueles ditadores pantomineiros que se apoiam no que e em quem lhe vier à mão, só não tendo levado a bom porto os seus desgraçados intentos por ter sido travado a tempo por outros militares, pelas forças de segurança, pelos tribunais e, antes disso, pela clareza do voto popular.

Como ideal, Saraiva de Carvalho tinha, notoriamente, uma narcísica ânsia de protagonismo, anos depois bem patente no símbolo da Força de Unidade Popular (FUP)*)- e que, como caso de estudo, importaria, provavelmente, à investigação de alguma mais ou menos interessante patologia -, bem como uma sede de poder pessoal impossível de cercear.

Presidência da República
Não pode, é verdade, dizer-se que esta postura difira substancialmente da de certos governantes e outros políticos também sem conteúdo ideológico bem definido que em certos regimes ditos democráticos operam e não passam, afinal, de operacionais da luta pela própria imagem e pela saúde do respetivo património, em terras onde a corrupção continua, com o freio nos dentes, a cavalgar. Deve, no entanto, notar-se que, contrariamente a estes, Otelo Saraiva de Carvalho jamais quis assumir a liderança do Estado num quadro democrático, quando teve oportunidade para tal: apenas viria a candidatar-se à presidência da República, cereja no topo do bolo da imortalidade que sempre almejou ganhar.

Estaria, apesar de tudo, ciente de que, apesar da indiscutível competência no plano militar, não detinha qualificações mínimas para governar e que, aceite o poder e exercido este de forma incompetente, se iria a sua bem querida imagem, inexoravelmente, degradar?

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Um patente e avassalador complexo de inferioridade relativamente àqueles a quem, num plano que não fosse o das armas, o Major jamais poderia surgir como igual estava, possivelmente, na origem do ódio mortal pelos opositores sentido por alguém que sempre achou que “se tivesse cultura livresca, podia ter sido o Fidel Castro da Europa”.

Bem, se não tinha, tivesse tratado disso, já que de tal nada nem ninguém o impediu, além da vontade própria de se dedicar a outras artes que conhecemos. Graças a estas, pode alimentar o desgraçado sonho da tomada do poder pela força e posterior instauração de um regime que nada tinha de democrático, antes passando por um Projeto Global dominado por um partido político radical e apoiado por um exército revolucionário que não olharia a meios para garantir a implementação das suas políticas governamentais, “visando a destruição, pelas armas, do regime democrático português*).

Ora, poderá o propósito de eliminação pura e simples de quem não se enquadrasse na tal definição muito própria de democracia - fuzilar os contrarrevolucionários no Campo Pequeno*), quem sabe se depois de os tourear - deixar de nos lembrar, salvas as devidas distâncias e proporções, um alucinado que, décadas antes e apoiado por fidelíssimas, hipnotizadas e poderosas forças armadas e de segurança implementou, não um projeto global, mas uma Solução Final igualmente pensada para a eliminação dos que, na sua doentia opinião, não eram dignos de respirar o mesmo ar que ele?

Será caso para se pensar...

 

O Lado Mais Negro
O Lado Mais Negro

Para vergonha imensa de todos nós, o Português que, com especial preponderância, organizou e operacionalizou o 25 de Abril de 1974 era adepto do terrorismo ideológico, e não tinha qualquer vergonha de considerar fascistas as democracias de tipo ocidental.

Provou-se que cometeu e mandou cometer crimes - não apenas "excessos" -, e o facto de a condenação inicial ter sido revertida por decisão do Tribunal Constitucional*), amnistia ou indulto e ter sido dispensado da pena ainda não cumprida em nada diminui a forte e dolosa culpa ou contamina a decisão relativa à prova dos factos.

Assim, dúvidas não restam de que o posterior sucesso do Major Saraiva de Carvalho na agregação de vontades de uns quantos visionários radicais como ele - que culminaria na formação das Forças Populares 25 de Abril (FP-25) de má memória - apenas serviu para espalhar, nos espíritos da população, o medo; nos corpos a mesma morte que, de forma bem mais pacífica, agora o veio chamar.

Pela força, procurou implementar um reinado de autêntico terror que, sucesso tivesse tido, não hesitaria, como a tentativa não hesitou, em recorrer à banalização do homicídio com dolo direto puro e simples*); à detonação de engenhos explosivos em representações diplomáticas e instalações militares, com o intuito de outras vidas tirar; ao roubo à mão armada a inúmeros bancos para se financiar, e a instalações do Estado para de se apropriar de impressos que permitissem às FP-25 diversos documentos falsificar; à emissão de mandados de captura em branco para mais facilmente ser perseguido quem ao caminho se lhe viesse atravessar.

Não me lembro, em contrapartida, de ter ouvido falar de sequestros: as FP-25 não faziam prisioneiros. A ordem era, sempre, para matar.

Uma antiga piada de gosto duvidoso dizia que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço, o que não era, evidentemente, verdade; mas era verdade que, sem piedade e pelas mãos das FP-25, Otelo mandava matar-lhes os pais*).

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Quem não acreditar neste rosário de crimes dados como provados, que ataque específica, lúcida e fundamentadamente a prova produzida e validada em juízo, ou para sempre há de se calar: bramar à toa contra uma sentença apenas causa alarde e ofende o sistema judiciário que garante a segurança e a paz social, inclusivamente a esses mesmos que o atacam apenas quando à defesa da memória dos seus pouco merecedores heróis isso convém.

Chocam-se, e ajudam à festa do vexame público, quando agora algum outro assassino é condenado - especialmente se tiver vitimado alguém das relações deles. Nesses casos, não se preocupam em criticar as decisões judiciais. Já no caso do Major Saraiva de Carvalho, indignam-se quando se belisca a imerecida e distorcida imagem que o próprio a tantos trabalhos se deu para criar e fazer admirar.

FP-25 Forças Populares 25 de Abril
Chamar romântico e idealista a quem, sem remorso, por um difuso ideal manda matar, apenas fará sentido aos olhos dos que consideram o caminho do roubo e do assassinato como uma mera escolha infeliz, e entendem que algo tão inqualificável como as FP-25 faz parte da inenarrável utopia com que gostam de sonhar.

Diz-se, com verdade, que o 25 de Abril é historicamente mais importante do que as FP-25, que lhe são marginais. Mas Saraiva de Carvalho foi protagonista também nessa Frente terrorista que tentou subverter os ideais da Revolução dos Cravos; e, ao contrário da maior parte dos outros heróis de Abril, fez parte da gente que não soube nem sabe estar.

Anedotário Politicamente Correto

De mortuis nihil nisi bonum *) está muito bem, mas não apaga a memória individual ou coletiva, e apenas é de seguir desde que algo de fundamentalmente, de estruturalmente bom haja a dizer de quem morreu, e não apenas de um ou outro feito mais ou menos sensacional se possa falar.

Não sendo esse, propriamente, aqui o caso, o chavão da personalidade complexa foi a forma elegante que lá encontraram políticos proeminentes e comentadores já não muito incipientes para definir o popular Defunto, assim procurando fugir a acusações de maledicência comezinha e esquivando-se a, sobre ele, ter de dizer algumas coisas necessariamente embaraçosas tratando-se de quem se trata, fossem elas “boas” ou “más”.

Não passam, pois, no quadro aqui descrito, de desengraçadas anedotas as que saem da boca ou da pena de quem pretende estarmos perante de um "enfant térrible" com uma "história empolgante e apaixonante para contar", e uma "personalidade complexa" e dominada por um intrigante "lado lunar".

Bem pelo contrário, das públicas palavras proferidas após a morte - e dos não menos públicos e eloquentes quase silêncios - por quem a seu lado lutou ou nele acreditou, apenas pode concluir-se que o agora Tenente-Coronel não passou de um alucinado sem qualquer vontade de liberdade que não fosse a dele, sem sentido de responsabilidade democrática, sem qualquer competência além da inerente à conceção e operacionalização da preferencialmente violenta ação – sem prejuízo, naturalmente, do derramamento de sangue que, em 25 de Abril, a sua notável capacidade de organização permitiu evitar.

Para muitos, um grande incómodo político enquanto viveu. O mesmo incómodo agora, que morreu sem que alguém que queira ficar bem na fotografia dele aceite dizer alguma coisa: mal, não pode, por causa do dever histórico de agradecer o bem, ainda que acidental; bem, também não, já que dispensar encómios a quem demonstrou ser o que a História sabe que era acarreta um custo político que se não pode desconsiderar.

Verdadeira Liberdade
Saraiva de Carvalho era corajoso, sem dúvida; temerário, até. Foi o comandante da operação, o responsável máximo, o que mais arriscou.

Mas arriscou por ele mesmo, por aquela que, do que mais tarde fez e das palavras que proferiu, emerge como a sua verdadeira e inconfessável causa. Outros, muitos outros, arriscariam tudo lutando por todos nós, pela verdadeira Liberdade. Como entender que um seja mais falado e louvado do que os outros?

Luto nacional? Discorde-se do Governo no que se quiser, mas aqui não é possível deixar de acompanhar.

No entanto, lá conseguiu a sua homenagem: embora em Julho, não em Abril, morreu a 25, distinção que lhe fez, quem sabe, um Além capaz de descortinar para lá dos atos cujas motivações perversas e distorcidas as nossas limitadas e imperfeitas mentes não sabem aceitar; e os nossos corações sangram por não poder negar.

 

Cuidar do Futuro

Não se ouve muito a gente mais nova falar de Otelo Saraiva de Carvalho, mas é pena: como os jovens não viveram as emoções de Abril, estão, talvez, mais habilitados a julgar com objetividade a pureza, a crueza dos factos, sem preocupação com a memória e com o politicamente correto, e sem receio de derrubar de um esboroado pedestal de barro quem há muito lá não deveria estar.

Gratidão aos corajosos Capitães por tudo aquilo que o 25 de Abril significou e significa para cada um de nós, todos a sentimos; em alguma medida, mesmo quem a data faz questão de, estupidamente, continuar a invetivar.

Mas a data tem suficientes heróis, verdadeiros heróis, para que, presa da emoção excessiva e da memória curta, a sua lembrança fique excessivamente dependente de um protagonista que, além da atuação naquele incomparável e decisivo mês de Abril, pouco deixou para louvar.

Nada há de mais natural do que cada um de nós povoar o imaginário com os seus ídolos, e quase os endeusar na exata medida em que a nossa endémica insegurança o recomendar: sentimo-nos mais seguros, sentimos que fazemos parte, que somos importantes ao projetar neles as qualidades que gostaríamos de ter.

Ficamos felizes quando os tais ídolos nos entram em casa pela televisão, quando dizem bem deles, quando têm sucessos, quando marcam um golo. Pelo contrário, ai de que diga mal deles e, se algum não defende um remate ou, pior, a equipa perde, pobres de nós e, sobretudo, daqueles que levam com os despejos mais ou menos explosivos das nossas emoções.

Cromos da Bola
Aos cromos da bola tudo é permitido; e, afinal, pouco importa, já que nos seus pés apenas uma bola está em jogo: nada que a Humanidade possa, verdadeiramente, afetar. Mas a apreciação da pessoa e o julgamento dos atos do então Major Saraiva de Carvalho não pode fazer-se com a ligeireza e o fanatismo inconsequente de quem comenta um desafio de futebol: louvar, apaixonadamente esta sem dúvida importante pessoa é defender e enaltecer os seus feitos, todos os seus feitos, e subscrever, não apenas todos estes, mas a forma de estar na sociedade e na vida a que, com boa parte deles, nos quis condenar.

O que gostaríamos de ver amanhã em Portugal? Será, mesmo, o jugo terrorista de uma ditadura popular? Será a imagem do agora Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho o ideal de Cidadão que  aos nossos jovens queremos passar?

Se não é, vamos lá arrefecer um pouco o ânimo e selecionar com alguma objetividade e critério aqueles que queremos e devemos elogiar…

 

Requiescat

Desenganem-se os que ainda pensam que há dias morreu o alguém de "pouca cabeça e muito coração" de que o recente anúncio de cerveja nos vem falar: quem, há dias, morreu foi um ídolo de pés de barro, o implacável comandante do COPCON, o rosto da FUP, o homicida por detrás das FP-25, o autor e promotor da aberração que, a exemplo de outros ditadores, queria impor a todos nós: o muito seu Projeto Global de imposição, pela força dos explosivos e das armas e ordenando a aniquilação dos adversários, daquilo a que chamava verdadeira democracia, mas não passava de um reinado de terror.

A América Latina teve Guevara. Por cá, e à nossa maneira incuravelmente tuga, tivemos um aluado que nem lhe chegava aos calcanhares e tudo fez para aniquilar, subvertendo-o, o regime democrático que dizia defender e que, por ser instrumental na senda de um objetivo pessoal, com inegável coragem e dedicação num curto e muito feliz momento acabaria por ajudar a implantar.

No dia 25 de Julho de 2021 morreu um duro e rude, mas muito competente,   operacional e estratega, a quem, em vida, a maior parte dos políticos viraria a cara, se pudesse, e agora, morto, reza para que dele lhe não venham falar.

Para os radicais de esquerda que se não podem dar ao luxo de deixar de o idolatrar e para os verdadeiros e valorosos Capitães de Abril, de nobres propósitos a que se mantiveram fiéis, e que souberam, cada um, ocupar na vida posterior o respetivo lugar, o Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho foi, será sempre, o espinho que nem a morte soube arrancar.

O quam cito transit gloria mundi!


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NÃO PERCA!

sábado, 29 de maio de 2021


Podia Ter Sido Eu...

O que não pode fazer-se, por ser socialmente condenável e propiciador da proliferação de
situações congéneres em lugar de ter o papel inibidor que se impõe, é, à boa maneira portuguesa,
passar uma esponja sobre o assunto, como parece quererem fazer meia dúzia de espíritos exaltados,
porventura de boa fé, mas completamente a leste do paraíso quanto ao que a administração da justiça deve ser.

Não posso queixar-me da minha infância.

Claro está que houve quem a tivesse mais alegre, mais ‘feliz’ do que eu, mas não terá sido esse o caso da grande maioria dos meus concidadãos. Posso, pois , considerar-me, sob esse aspeto, privilegiado, não me tendo tornado num daqueles infelizes que, por de uma infância falha de afetos terem tido que aprender a defender-se, durante toda a vida serão avessos às investidas do afeto de quem lho quiser dispensar.

Fui querido e acarinhado, bem nutrido, bem tratado e razoavelmente educado. Sempre tive quem de mim cuidasse com zelo e dedicação exemplares, em casas antigas já arrasadas ou em vias de o ser, e tive tempo para, além daquele que todos gastamos a, mais ou menos intensamente viver o dia a dia, refletir e recordar, com certa nostalgia, como é triste, quando uma casa morre, com todas as recordações que as suas paredes souberam guardar.

Quem me fez crescer sabia bem que não se educa crianças com jogadas táticas, mas com opções estratégicas, e que não se tem crianças por ter, para procriar como os bichos, para mostrar à família e à vizinhança ou seja lá para com que objetivo mais aberrante for, deixando-as depois, mesmo de tenra idade, à sorte delas, já que a vida de quem as fabricou não pode, evidentemente, ser prejudicada ou, sequer, molestada nas suas rotinas – sobretudo nas de lazer – pela necessidade de atender às mais elementares carências e anseios de quem os primeiros passos ainda estará, talvez, a aprender a dar.

Se, como terá dito um eminente estadista francês de há uns séculos atrás, “o destino de uma criança é,sempre, fruto do tratamento da mãe”, não poderemos surpreender-nos com a degradação crescente da qualidade humana de muitos que nos rodeiam, não tanto por culpa própria, mas, desde o berço, pela indiferença, pelo enfado, pelo descuido por vezes não apenas comprometedor da qualidade do futuro, mas, até, da existência dele.

- x –

Ninguém escolhe, é verdade, o agregado familiar em que nasce – se em algum… -, ou o sítio, o ambiente, as condições económicas e sociais, enfim, tudo aquilo de que um ser humano necessita para se desenvolver e, quando acabado de nascer, para sobreviver. Mas todos temos, pelo menos, a obrigação legal de cuidar e de dar proporcionalmente àquilo de que podemos dispor, bem como a obrigação moral de, na mesma proporção, contribuir para que aqueles que nascem se tornem elementos válidos da sociedade, em lugar de parasitas sem escrúpulos, de corruptos despudorados - como alguns que enquanto convidados de comissões de inquérito por aí vemos -, de políticos sem causas e de outras aberrações que, de tantas, aqui não seria possível enumerar.

Quando leio que, em pleno século XXI e independentemente das razões e condições subjacentes, as autoridades depararam com cinco crianças com idades entre os um e os doze anos à guarda unicamente do irmão mais velho, sem quaisquer comodidades, cuidados ou condiçõesde asseio e higiene, o lixo espalhado pelo soalho da casa*), ainda se indignando algumas pessoas por a mãe ter sido indiciada por crime de abandono, não posso deixar de pensar que uma dessas crianças sem eira nem beira, deixadas à triste sorte por quem maior obrigação tinha de delas cuidar… podia ter sido eu.

Quando a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens dá conta de uma quantidade crescente, não apenas de crianças largadas à toa*), mas, lembrando a Roda dos Expostos*), de bebés, de diversas nacionalidades, enjeitados à nascença em Portugal, quer em ambiente doméstico, quer hospitalar, gerando níveis críticos de apreensão quanto à evolução de milhares de casos narrados quase diariamente, é impossível deixar de me comover e de pensar que um desses desgraçados… podia ter sido eu.

- x -

Mesmo quando, na origem de uma tragédia, o dolo, ainda que eventual, inexiste; mesmo quando se trata de mais ou menos grave negligência decorrente de cansaço, de exaustão, de insónias recorrentes, de pressão profissional, de uma daquelas horas em que o tempo e o espaço parecem passar por nós sem que deles nos apercebamos, não deixa de ser evidente, por muito legítimas e até, naturais, que a explicação ou a justificação invocada possam ser, que a criança negligenciada o foi porque não estava a ser, na mente e no coração do cuidador, o principal objeto de atenção; e isto é válido mesmo que a tensão ou a exaustão tenham sido adquiridas em atividades em prol da própria criança ou dos seus irmãos.

Não é vergonha pedir ajuda, quando nos sentimos incapazes, especialmente se a tal ponto chegamos por razões legítimas e, até, louváveis. É, antes, vergonha não o fazer, dessa forma expondo a inevitáveis e desmesurados riscos quem não tem como deles se defender, vergonha tanto maior quanto maior for o grau de formação*)– e, desejavelmente, da correspondente educação - do responsável.

Claro está que a horrível morte por asfixia, ao longo de sete inimagináveis horas, de uma criança de tenra idade simplesmente esquecida no interior de um automóvel não pode, por muito que nos horrorize o facto em si, ser imediatamente imputada a culpa de quem dela se esqueceu, havendo que apurar, em sede de inquérito e, eventualmente, de julgamento, as circunstâncias exatas da ocorrência e as que a antecederam.

Especialmente tratando-se de uma mãe – admitindo, naturalmente, que se trate de alguém capaz de experimentar os sentimentos que consensualmente a sociedade considera naturais e saudáveis por parte de uma mãe -, tampouco pode esquecer-se ou ignorar-se o sofrimento imenso que poderá estar a sentir quem deixou de prestar a atenção e o cuidado necessários a uma menor cuja tenra idade de dois anos evidentemente tornava incapaz de se libertar da clausura e da inerente tortura por privação de ar para respirar.

Não obstante, oblivio signum negligentiae, não sendo verdade que a autora não deve ser investigada e, eventualmente, acusada e punida, se for julgada culpada, mais a mais tendo em conta, por um lado que existe um crime denominado homicídio por negligência e, por outro, que a tese do esquecimento não passa de uma suposição, de mera alegação.

O que não pode fazer-se, por ser socialmente condenável e propiciador da proliferação de situações congéneres em lugar de ter o papel inibidor que se impõe, é, à boa maneira portuguesa, passar uma esponja sobre o assunto, como parece quererem fazer meia dúzia de espíritos exaltados, porventura de boa fé, mas completamente a leste do paraíso quanto ao que a administração da justiça deve ser*).

Não se trata apenas de ser justo para com uma mãe sofredora: há que ser justo para com a criança que morreu, para com o pai e os irmãos, e há, também, que, alertando para as consequências que advêm para quem negligencia o mais elementar, mas precioso, cuidado, defender a vida dos milhões de outras crianças que, um pouco por todo o Mundo, se encontram sujeitas a ser deixadas, estando fechadas as soturnas janelas de vidros fumados, nos automóveis dos respetivos progenitores.

Podia ter acontecido na infância de qualquer de nós, que já nascemos na era do automóvel.

Aquela criança que morreu e tanto sofreu, poderia ter sido o meu caro Leitor.

Podia ter sido eu.

sábado, 3 de abril de 2021


Quero Ser Feliz!

(Introdução à Secção ‘Sociedade’)

"O que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade
consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe,
realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém,
por nossa causa, acabar por perder"

Recebi há dias, na caixa de correio eletrónico, uma mensagem a informar de que vinha a caminho “a encomenda da sua felicidade”, assim se designando, pelos vistos, uma coisa qualquer indiferenciada e sem importância que, por força do dever geral de recolhimento, me vi na contingência de ter de encomendar em vez de, como habitualmente, ir à loja buscar.

Mas, a quem tem de estar fechado em casa, que espécie de felicidade é que uma banalidade daquelas poderia trazer?  Por que razão há de um fornecedor entender que qualquer coisa que venda, mesmo meia dúzia de esferográficas, é suscetível de causar felicidade?  O que é, para estas pessoas, essa tão ambicionada felicidade?

O conceito de felicidade é dos mais difíceis de definir claramente:  para uns, um momento; para outros, uma época; para outros ainda uma quimera, uma mera ilusão.  Para uns, esfusiante alegria; para outros, simples bem-estar; para outros, apenas que a saúde e a mesa não causem preocupação.

Nos tempos que correm, porém, os mais fiéis sinónimos de felicidade parecem ser riqueza, prazer e ostentação, tudo isto orientado, de forma mais ou menos evidente, para o eterno eu, centro do Universo, e sem o qual todos os outros – os infelizes que não sabem ser felizes como eu – passarão a vida inteira de monco caído por não poder admirar e idolatrar alguém como… eu.

Eu sou assim”, estou “muito bem resolvido” e, como consigo irradiar toda essa felicidade, todos me amam, pelo que “estou muito orgulhoso de mim”; e, como tanto faço pelos outros, tudo quanto tenho “eu mereço”.

Balelas!

Tudo isto, herdado, porventura, do bem conhecido e mais subversivo dislate publicitário que os meus olhos e ouvidos alguma vez captaram e, provavelmente, captarão: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” - do qual me não lembro de que as tão sensíveis consciências cívicas que por aí andam alguma vez se tenham queixado; e, como o anúncio continuava a dar na televisão, provavelmente até o  cosmético embevecida e obedientemente  utilizavam e eram, até, capazes de elogiar.

Todavia, dizer que, se eu não gostar de mim, mais ninguém gostará não passa da defesa abjeta do cada um por si, do completo afastamento daquela entreajuda elementar que até os mais ferozes bichos sabem o que é, da absoluta negação de tudo quanto é social e, como tal, vital à manutenção da vida como por cá a conhecemos e, embora com bem necessárias melhorias, gostaríamos de continuar a conhecer.

Seja qual for a capacidade económica, muita desta gente que pensa unicamente em si - e, pateticamente, se leva muito a sério - não se limita à congratulação íntima e ao recatado usufruto daquilo que a carteira lhe permite adquirir: obriga, antes, o egocentrismo desmesurado a que os assim chamados sucessos sejam deliberada e pormenorizadamente esfregados na cara daquilo que, aos seus olhos embaciados por uma espécie de glamour parolo, não passa de uma mole de adeptos tão medíocres que jamais conseguirão imaginar quão pequena fração o pouco que têm representa do suculento bolo que os bem sucedidos empanturra - por não terem sido ensinados a digeri-lo.

Ao adquirir o bem não visam um prazer de uso ou qualquer outro tipo de vantagem que dele possam extrair: compram, simplesmente, a ideia de riqueza que subjaz à posse.

Por não saberem quanto a própria imagem é desoladora, estas autênticas marionetas animadas pelas mãos da vaidade cultivam-na obsessivamente, continuamente impondo, àqueles que não podem deixar de o ver, o desfile patético daquilo com que, raras vezes o dinheiro, muitas o crédito, algumas a troca de favores lhes permite obter, como as acessíveis e inevitáveis unhas de gel, o já não tão acessível conjunto da última moda que viram na revista da cabeleireira, a carripana das mais caras que o dinheiro pode comprar, um iate, um aviãozinho, a leiloada camisola transpirada pela prática desportiva de um notável qualquer.

Talvez inspirados por slogans irresponsáveis como "A Criar Excêntricos Todas as Semanas"*), da desbragada ostentação se não coíbem estes magníficos, estes narcisistas porventura indiferentes ao sofrimento alheio - porque não basta dizer que temos muita peninha... -,mesmo numa altura em que o Mundo inteiro sofre como poucas vezes terá sofrido, em que a miséria grassa, os hospitais transbordam por falta de meios, o medo espreita.  Não obstante, alguma legitimidade há que lhes reconhecer para pensar como pensam, já que nem em tão desoladora conjuntura deixam de ser idolatrados por adeptos com paupérrimas mentes e depauperadas algibeiras, integrados em famílias desesperadas que, para povoar o imaginário das suas vidas sem graça, continuam a depender da alheia e impressa ou televisionada ostentação.

Enfim, sendo a inconsciência o lar da verdadeira felicidade, a alguma dela sempre acharão estes tacanhos e desamparados amigos e seguidores que, embasbacando-se perante tamanha vulgaridade, lá acabaram por aceder - ignorando ou preferindo ignorar que, para aqueles que, com tanta luz, lhes queimam os olhos, cada um destes confrangedores basbaques não passa de “uma pinta num melão verde”.

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Inesgotável manancial para um caricaturista, esta casta de salientes habita os mais diversos lugares - e vive em todos os estratos económicos e sociais -, mais não representando, todavia, do que o papel da sua própria personagem, numa carência de substância total ou quase total.  Apesar do efeito que sabem provocar nas suas plateias, domésticas ou universais, estas estranhas e superficiais pessoas não passam de aprendizes de ilusionistas, de desengraçados comediantes papagueando um mal-amanhado texto e esquecendo-se de que, como acontece com tudo na vida, chamar a atenção para nós mesmos, só é saudável até ao ponto preciso em que deixa de o ser.

A desmedida soberba ainda seria tolerável se, juntamente com a tralha que exibem, nos não impusessem aos olhos a desagradável imagem das suas personalidades e, pior ainda, aos ouvidos as palavras ocas e atiradas ao calhas que já nem pachorra temos para tentar entender.  Agora, e para cúmulo, alguns dos mais abastados até se deixam convencer de que sabem escrever, assim dando razão a quem diz que “com dinheiro no bolso somos sábios, elegantes e até sabemos cantar” - não se ralando minimamente com o facto de não saberem estar.

Trata-se, afinal, de pessoas que são aquilo que não mostram e mostram aquilo que não são, que não são aquilo que mostram e não mostram aquilo que são.  Mas, pelo menos, não macem, não se imponham, nem sequer apareçam: quem vive só para si mesmo, só consigo mesmo deve viver.

Isto, sejam os ditos poderosos políticos, funcionários corruptos, aldrabões profissionais, milionários feitos à pressa, medalhados da treta ou apresentadores arvorados em acionistas de canais de televisão sem particular apetência pelo cumprimento das suas contratuais obrigações, todos eles talvez nem sempre animados das mais nobres intenções e valendo-se da facilidade com que, fazendo-se servir dos mais modernos artifícios comunicacionais, mesmo à distância conseguem ir ganhando injustificada afeição, mormente junto das camadas menos instruídas e educadas da população.

Ou poderá tratar-se daqueles multimilionários que aprenderam a dar uns toques na bola, alguns deles de couro pouco cabeludo mas cheio de pinceladas surrealistas; daqueles que têm, ganham e não cessam de exibir centenas de milhões, evitam, por desconhecimento, as obrigações fiscais, e vêm de longe a longe, alardear na imprensa donativos de parcas centenas de milhar a uns bombeiros, a um hospital ou a um lar.  Não é por terem tido sucesso e conseguido molhar o pão na sopa que, uns ou outros, passaram a fazer parte dela, da mesma forma que uma mosca que aterra numa sopa de legumes não passa a ser um legume: continua a ser uma ridícula e indesejável mosca no meio da gamela.

Lá se vão, pois, esgadanhando uns aos outros esses infelizes na disputa do protagonismo essencial à manutenção dos fluxos monetários que abundantemente jorram da inesgotável fonte da publicidade ou dos fartos seios da República, e dos quais dependem para alimentar os monstros de vaidade em que, sem remédio, se vão transformando, já que “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros*) – coisa que toda a gente sabe mas custa muitos votos dizer.

Fariam bem os teóricos e os politicamente corretos em ter em conta, nos seus comentários, recomendações e decisões, que há muita gente assim; e que muitos deles querem ser felizes, à maneira deles, comprando, ostentando, fazendo mal, ora ourados com a glória assegurada pela simples posse, ora transidos de medo de que lhes reduzam o agasalho ou lhes penhorem os brinquedos que tanto gostam de assoalhar.

Toda esta oca palermice de acenar com muitos bens, com muito eu, aos muitos fans – em inglês, que é mais chic -, aos muitos amigos das armadilhas (perdão: redes!) sociais, não passa da eterna busca pela felicidade; mas é uma busca enviesada e vã, já que os que mais se esforçam por mostrar o quanto são amados, são, quase sempre, os mais infelizes, também: apesar da aura de infuencers, de orientadores espirituais da gulodice dos outros, estes lastimáveis seres, ao mesmo tempo que explodem em simulada alegria, muitas vezes implodem em profunda dor no mais íntimo dos seus corações.

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Mal ou bem, ensinaram-me que ser respeitável não é ter direito ao respeito dos outros, mas sim merecê-lo - coisa que em certos espíritos parece ter grande dificuldade em entrar, já que, seja qual for o nível de vida ou a dimensão da bolha de empréstimos, toda a atividade do cérebro empobrecido de quem se maravilha com a sua pessoa parece focar-se na incontrolável necessidade de causar inveja junto dos atentos e obrigados veneradores que se esgorjam por mostrar que conhecem todos os seus importantes segredos para, pressurosamente, depois os bichanar ao ouvido do vizinho.

Boa, ‘Miga, vão morrer de inveja!” parece ser a frase preferida desta trupe cada vez mais preponderante num país que, a acreditar nos Censos, é maioritariamente cristão e no qual, paradoxalmente, tanta gente parece empenhar-se em fomentar nos outros a prática do um pecado mortal da inveja.

Quando a montanha de notas não tem cume, não deixam estes alpinistas de ter alguma razão, na medida em que estão mesmo a pedi-las aqueles que, tão longe da realidade dos seus ídolos, nem inveja deles e das coisas deles conseguem sentir, já que não é possível invejar algo de nós tão distante que nem logramos vislumbrar sua real dimensão.

Já quando, pelo contrário, as poucas notas que há em casa pertencem todas ao banco ou nem dão para aconchegar a carteira, as canseiras a que os mais pequenos se dão para imitar os poderosos apenas os fazem parecer ainda mais pequeninos, pobretes, mais ridículas, e desproporcionadas as suas pretensões.

Para estes e para aqueles que, apesar de afortunados, são menos dados a essas coisas da inveja e da ostentação, a felicidade não passa da animalesca maximização do usufruto dos bens efémeros a que conseguem aceder, muitos dos quais acabam por ficar na posse de quem, para eles os poderem comprar, caiu na asneira de o dinheiro emprestar.  Também há, é claro, as cirurgias plásticas sem fim, as dependências do mesmo género, os casos dramáticos, as histórias que acabam mal, que toda a gente conhece e de que, por isso mesmo, nem vale a pena aqui falar.

Sempre haverá gente que, mesmo quando se acha feliz, continuará a ambicionar sê-lo ainda mais, em lugar de pensar em passar a dedicar-se à felicidade dos outros.  Gente que sempre confundirá felicidade com facilidade em todos os momentos da vida, e cada vez mais.  Trata-se da abissal diferença entre o ser relativamente feliz e o procurar, ao menos, por uns breves momentos, sentir-se feliz, contentando-se com isso, que já não é nada mau (sei que, a pensar assim, não vou longe, mas apontem à vontade o dedo à minha falta de ambição, a qual prefiro, de longe, a ser adjetivado de algumas outras formas).

"Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas; então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade do dever cumprido".

No entanto, o que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe, realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém, por nossa causa, acabar por perder: perdem os que não ganham, os que são roubados, os enganados, os que pasmam embevecidos ou embasbacados, os que passam a vida infelizes, à espera de acabar.

Nestes conturbados tempos, alguém mais exposto ou vulnerável também perde quando outro alguém fica feliz por ter conseguido uma não planeada picadela de seringa, e alguns inocentes perdem quando outro alguém consegue trazer, como sobra de uma jantarada fora com amigos ou de um bacanal, um microscópico bicharoco cheio de perninhas, da família dos Covid Portugal, seus primos brasileiros, africanos ou ingleses, que, generosamente, esse inocente irá partilhar com quem ao caminho se lhe cruzar, durante ou depois do tal jantar.

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A felicidade está, ou não está, em nós próprios:  é insano contar que no-la deem outros que a querem para eles. O segredo para sermos felizes é saber voar com os pés no chão, desejar, apenas, aquilo que, naturalmente, podemos alcançar ou ter sem, para tanto, coisas bem mais importantes termos de sacrificar.

Não vale, também, a pena tentar compensar com o dinheiro e com o corpo a debilidade do espírito: só é especial quem o é para os outros, quem busca a felicidade procurando fazer do mundo que o rodeia uma feliz cidade.

Ser especial para si mesmo é nada.  Ser especial é darmo-nos; e darmo-nos não é fazer pelos outros aquilo que nos apetece, se e quando nos apetece – mesmo que não apeteça a eles.

Quando não ligamos aos outros, não podemos legitimamente esperar que liguem a nós.

Esta indiferença faz com que, cada vez mais, experimentemos o medo, o pânico próprios de um ser frágil e dependente como o humano, muito especialmente quando, por ignorarmos os outros, acabamos por nos sentir cada vez mais... sós.