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sábado, 1 de maio de 2021


Os Factos e os Seus Atos

"Para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado,
facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo,por este andar,
de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário,
desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender"


   1. O Descrédito Crescente dos Dicionários
   2. Polissemia que Degenera em Confusão
   3. Confusão no Tribunal
   4. Notas Finais


1. Descrédito Crescente dos Dicionários

O que é um dicionário?

As pessoas da minha não muito ínclita geração, habituaram-se a venerar estes anafados volumes em papel como uma espécie de cardápio de todas as palavras que compõem um idioma - excluindo, naturalmente, as conjugadas e declinadas, bem como o mais pesado palavrão -, e a eles sempre recorriam ao deparar com um vocábulo novo e, para elas, desconhecido, ou quando uma dúvida emergia relativamente a determinado significado ou ortografia.

Dicionários – sempre em papel, já que o digital ainda não era, sequer, uma quimera -, havia diversos, uns mais conhecidos e tidos como fiáveis do que outros, mas todos credores do maior respeito e tidos por fiáveis e rigorosos.

Isto, era dantes.

No século XXI, o significado de dicionário parece ter-se alterado substancialmente, por vezes mais não parecendo agora muitos deles do que róis de palavras seguidas da indicação, não apenas de significados reais, como, muito além da há muito estabelecida polissemia, também daqueles que, quase a esmo, vão elas vendo ser-lhes arbitrariamente acrescentados a um ritmo que os formatos digitais tornam cada vez mais alucinante, assim bem evidenciando o crescente primado da quantidade sobre a qualidade, como se o melhor dicionário fosse aquele que atinge uma maior média na quantidade de significados propostos por palavra. Não tardará que alguém invente um critério objetivo, uma norma europeia, para os classificar como, talvez, uma MSPP, com isto significando média de significados possíveis por palavra, independentemente do rigor, da objetividade e da fiabilidade da enumeração.

O mais triste é que nada disto verdadeiramente espanta, se tivermos presentes as adaptações e concessões que simultânea e constantemente vão desvirtuando até as próprias regras gramaticais, hoje em dia eivadas de explicações no mínimo criativas - embora, muitas delas, de espantosa ilogicidade -, cada um palrando como muito bem lhe apetece, indiferente à teoria e à forma desde que, melhor ou pior, lhe pareça que se faz entender.


2. Polissemia que Degenera em Confusão

A título de exemplo, uma breve pesquisa nos dicionários em linha na Internet, mostra-nos, para a palavra facto e entre muitos outros, o significado de “coisa realizada, ato, feito”, ou de “ação, resultado acabado ou que está em vias de execução”, “ação de fazer alguma coisa; processo”.

Para ato, encontramos, por sua vez, “ação considerada na sua essência ou resultado.  [Por extensão] Feito, facto”, “Funcionamento da habilidade de atuar ou agir, ou referente àquilo que dessa ação resulta; (Por extensão) Ocorrência ou facto”.

Quer isto dizer que, para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado, e facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo, por este andar, de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário, desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender.

Aplicando a esta fantasiosa cartilha a propriedade transitiva "se é verdade que, se A é igual a B e B é igual a C então A é igual a C", teremos que facto e ato são a mesmíssima coisa, o que cedo se apresentará como um rematado dislate a qualquer pessoa que se disponha a dispensar uma porção mínima dos seus neurónios a refletir sobre a matéria.

Já aos outros, que querem lá saber, que propalam a anomia linguística ou se limitam a, de forma mais ou menos subserviente, continuar a confiar cegamente no que dizem dicionários de pouco crédito - para os quais, não obstante, olham com os mesmos maravilhados olhos com que mirávamos os rechonchudos e valiosos dicionários em papel do meu tempo de escola - bastará neles lerem que “Tanto faz! uma coisa como outra para não hesitarem em, por sua vez, atirar para o ar ou para o papel a primeira que lhes vier à cabeça, ou a que lhes parecer mais bonita, ou mais rebuscada – para parecer bem –, ou seja qual for e por que for.

Note-se que não estamos, sequer, em presença de um caso de ambiguidade ou vagueza, uma vez que entre uma ação (ato) e o correspondente acontecimento (facto) não existe confusão possível: o segundo é, sempre, resultado do primeiro, ainda que este nasça de um ato da Natureza - ou como lhe quisermos chamar -, com isto se entendendo qualquer coisa desde um movimento tectónico até ao ataque por um lobo em busca da sua vianda diária, passando por tudo o resto que não decorra de um ato humano explícito, identificável e atribuível a um sujeito, sem prejuízo, naturalmente, da eventual responsabilidade de seres humanos em outras ações ou omissões identificadas como causas, ainda que indiretas, desses naturais acontecimentos.

Um incêndio é um facto, e não passa de um facto. Pode é dar-se que a causa direta desse facto tenha sido um ato, doloso (fogo posto) ou negligente (um fósforo em brasa atirado, impensadamente, ao ar), que o tenha determinado.

Um facto, ou é espontâneo, ou é gerado mediante a prática, por alguém, do ato que o origina.

Não se pratica uma cadeira: constrói-se uma cadeira, dá-se-lhe existência (facto) através da prática dos atos necessários à obtenção do resultado pretendido: serra-se a madeira, prega-se os pregos e por aí fora, todos eles atos visando a conssecução do resultado final idealizado: uma cadeira.

Para que ocorra o facto de a cadeira passar a existir, é necessária a prática de uma série de atos na sequência definida no procedimento técnico adotado pelo marceneiro. Da mesma forma, jamais uma pessoa poderá praticar um facto, apenas lhe sendo possível dar-lhe existência, torná-lo real, como resultado mediato ou imediato do ato ou dos atos que praticar.

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Qual é, então, a função de um dicionário?

Elucidar quanto aos significados que o costume sedimentado e enriquecido pela obra de consagrados autores gradualmente foi associando a cada termo ou, obedientemente, aos primeiros ir aditando todas as semelhanças, por muito ténues, que o falador mais ignorante resolver começar a associar-lhe, por ignorância, arrogância ou parola gabarolice?

Não tarda irá aparecer por aí um autodenominado dicionário que nos dirá que, além da vintena de significados que já lhe atribuem, rasgar significa também arrasar, dar cabo de, como agora é uso dizer-se nas redes supostamente sociais.  Será, então, caso de rasgar mas é o dito dicionário – ou melhor, de o deletar, como alguns gostam de dizer, já que bytes ainda ninguém descobriu como rasgar.

Ao gosto pela elegância na escrita sucedeu o mau gosto pela agressividade. Por este andar, a falta de exigência, de um mínimo de rigor, levará a que, um destes dias, rasgar signifique também… oferecer uma flor.


3. Confusão no Tribunal

Do que antecede haverá, naturalmente, que ressalvar termos como escrita, em que substantivos homónimos significam quer o ato de escrever, quer o seu resultado; e até o correspondente adjetivo qualificativo, para complicar. No plano global, porém, a proliferação vocabular não apenas traz consigo inevitável prejuízo para o rigor e para a fiabilidade dos significados inscritos nestes gigantescos índices de palavras, como facilmente conduz a evidentes erros lógicos, por vezes com repercussões lamentáveis, nomeadamente em áreas particularmente sensíveis do conhecimento e, dentro destas, a profissões cuja dignidade imprescindível ao funcionamento do Estado nos levaria, com toda a legitimidade, a esperar que cuidassem os seus agentes de falar e escrever de forma estruturada, até elegante e, sobretudo, clara.

Um caso evidente é o da magistratura, com especial acuidade no que se refere ao rigor e clareza da redação das decisões judiciais e de outras peças jurídicas, elaboradas por técnicos dos quais, em prol da fiabilidade das decisões prolatadas, seria de esperar que, em todas as situações, soubessem demonstrar especial capacidade para interiorizar, com precisão e critério, os conceitos e as respetivas e evidentes diferenças, em lugar de ceder a este novo facilitismo lexical que se apresenta, não apenas absolutamente injustificado e inútil, como contraproducente, apenas servindo para descredibilizar o desempenho de quem a ele adere e para, nos espíritos menos esclarecidos, a dúvida e a confusão fomentar.

O léxico comum, mesmo corrompido pelo facilitismo e pela indiferença, distingue-se de forma inconfundível do léxico jurídico, por maioria de razão quando se trata de conceitos técnicos muito específicos e frequentemente nomeados.  Sobretudo, não pode esse léxico comum inquinar ou desvirtuar conceitos que a teoria jurídica consagra e, até há algum tempo, a prática cuidava de aplicar.

Voltando aos atos e aos factos, e salvo melhor opinião, facto jurídico é qualquer ocorrência suscetível de gerar ou extinguir um direito, podendo também servir para manter ou alterar um direito previamente existente.  Já por ato jurídico entende-se, não um acontecimento, mas uma ação humana que, se for censurável, poderá corresponder a um comportamento deliberado ou meramente culposo.

Para o Direito, um facto é, assim, o efeito da causa que, quando originada num ser humano, se designa por ato, legítimo ou não. Trata-se, pois, de duas realidades distintas, de duas definições inconfundíveis. 

Consequentemente, ninguém pode ser responsabilizado pela mera ocorrência de um facto, mas,  unicamente, pela eventual autoria de um ato que, direta ou indiretamente, o haja provocado: pratica-se atos, comete-se crimes ou contravenções, enquanto os factos ocorrem, espontâneos ou provocados.

Como admitir, então, que em peças jurídicas, designadamente em acórdãos de altos tribunais e, até, de tribunais superiores, tantas vezes se leia que o arguido “cometeu os factos”, “praticou os factos pelos quais vem acusado”? (Para ver que não exagero, experimente o Leitor procurar no Google estas expressões…)

Como entender e aceitar que, durante a leitura do resumo do despacho instrutório*) relativo ao mais mediático megaprocesso da democracia portuguesa tenha o juiz hesitado visivelmente ao referir os “factos cometidos” por um dos arguidos? Como acatar uma decisão vinda de quem não reflete sobre alguns conceitos fundamentais que a ela subjazem?

Como, enfim, admirar e respeitar o legislador de um Código Penal Português que dispõe, repetidamente, sobre a "prática do facto"?

Salvo o devido respeito, como poderemos, com as devidas confiança e deferência, submeter-nos um dia ao julgamento de um magistrado, por muito graduado e considerado que seja, que reiteradamente demonstre nem algo tão elementar como a diferença entre os conceitos de facto jurídico e ato jurídico haver interiorizado, referindo-se a um e a outro como da mesmíssima coisa se tratasse? Como poderemos, em tais circunstâncias, confiar que a decisão do Areópago*) é sábia, segura e, sobretudo, rigorosa, características que lhe são legitimamente exigidas por quem à sua justiça se submete?

Isto, para não falar das trocas e das omissões de preposições, com as quais já ninguém muito parece ralar-se, como há dias encontrei num aresto em “pugna que sejam dados como não provados os factos” e outras maravilhas da produção de pessoas para quem a gramática não passa, porventura, de uma ligeira contrariedade para quem não tem, com ela, tempo a perder.

No entanto, “uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete” *).

Falar e escrever corretamente é um exigente, constante e contínuo exercício de inteligência e de lógica, executado sobre um suporte teórico que desde os primeiros anos da instrução primária nos é transmitido; é uma permanente demonstração do cuidado dispensado às coisas sobre as quais temos de nos interessar – como o modo de nos exprimirmos, ainda que ao nível mais rudimentar -, bem como da maior ou menor competência para, em tempo real, decidir quanto à mais correta utilização da palavra, no escrupuloso respeito pelas regras gramaticais.

Ora, se mesmo na fala a responsabilidade é tamanha, dado o mais dilatado tempo disponível, muito maior na escrita ela é, por maioria de razão.

Como acontece com a generalidade das peças jurídicas, a decisão judicial apenas é credível – logo, respeitável - se arrimada na análise rigorosa dos atos e dos factos, bem como, naturalmente, do direito a que eles possam ser subsumidos. Esta fundamentação precisa e objetiva é essencial e incompatível com qualquer tipo de indiferença ou de facilitismo, designadamente o lexical, assim não se afigurando possível olhar como boa uma decisão baseada em conceitos que, na mente do julgador, são, patentemente, vagos e confusos: como poderá levar a cabo uma judiciosa análise da prova – dos factos e dos atos na respetiva origem - e decidir qual o Direito aplicável, alguém que até uma distinção tão elementar como a que existe entre facto e ato demonstra ser incapaz de entender?

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4. Notas Finais

Não é verdade que Tanto Faz! 

A falta de rigor na expressão, particularmente na escrita, inquina fortemente a credibilidade de quem escreve, pondo em causa, muito especialmente no caso da magistratura, o âmago de uma função que é, simultaneamente, uma missão essencial ao assegurar do cumprimento de leis pensadas e elaboradas para a manutenção da ordem e da paz social, só nestas encontrando legitimação.

Podemos, até, ser os juízes mais sérios, mais sábios e tecnicamente mais sabedores que alguma vez prolataram uma decisão: ninguém alguma vez reconhecerá nos nossos escritos uma ciência que exprimimos com as palavras erradas; ainda que, quanto à substância, possamos ter, do nosso lado, a mais ampla razão.

Não basta saber:  é preciso saber dizer.

* *

Caso bem recente e nascido, ao que tudo parece indicar, da ânsia de, através de uma suposta mas falsa originalidade, aparentar sabedoria que se não tem, é o da substituição de resistência por resiliência.

Ora, tratando-se, como se trata, de conceitos bem distintos, a utilização à toa dos correspondentes vocábulos apenas conduzirá a uma enorme confusão.

sábado, 17 de abril de 2021


As Portuguesas e os Portugueses

"A gramática destina-se a fazer com que cada um entenda o que o outro está a querer dizer-lhe;
e o que diz a linguagem pseudo-inclusiva - mas, na verdade, divisionista - é que
existem dois tipos bem distintos de seres humanos, e não um único e indiviso,
ao qual uma regra manda referir, no plural, como  portugueses,
como a consulta da mais elementar gramática rapidamente esclarecerá"


   1. Perdeu-se a Noção do Ridículo
   2. Partidos Mendicantes Apoiam a Violação das Normas Constitucionais por Desnorteados Radicais
   3. A Gramática como Instrumento de Manipulação Política


1. Perdeu-se a Noção do Ridículo

...ou, para observar a regra da cortesia, “os portugueses e as portuguesas”, se for uma senhora a falar.

Quem se dedica à causa das animaizinhas e dos animaizinhos, não deverá, também, esquecer-se de dizer “as gatas e os gatos”, “as cadelas e os cães” e por aí fora, não vão as fêmeas dessas espécies achar que nos esquecemos delas; ou as donas e os donos das ditas fêmeas assim pensar;  e quando temos um aquário cheio de peixas e de peixes… o corretor ortográfico queixa-se com um impiedoso sublinhado encarnado.

Como, decididamente, nada disto vem de uma generalizada ignorância da gramática – designadamente por parte da Exmª Linguista que coordena um dos partidos que mais insistem nesta coisa -, todas estas alusões específicas aos elementos femininos não passam, desde a primeira que escrevi, de uma redundância patetoide e deliberada, apenas explicável como tentativa de manipulação comunicacional dos ânimos com o fim exclusivo e popularucho de angariar, quando muito, mais um punhado de votos junto de ingénuas apaixonadas e de ingénuos apaixonados por causas que não chegam a sê-lo, ou de almas hipersensíveis ao politicamente correto a ponto de se embevecerem com coisas destas.

A linguagem neutra em português não é arrimada na gramática, que sustenta, como bem se sabe, que o plural de um conjunto – ainda que parcialmente enumerado – se forma no masculino sempre que, pelo menos, um elemento deste género o integre.  Isto não é discriminação, não é sexismo, não é política: é gramática pura e dura*); e não é a política, mas a gramática, que deve determinar a nossa forma de escrever e de falar.

Não deixa, outrossim, de ser disparatado que esta forma rebuscada e bacoca de gastar mais tinta com descabidas redundâncias provenha, se a memória me não trai, da metade esquerda da bancada parlamentar, na qual tem assento, entre outros, o partido que teve, como destacado militante, o iluminado ser que promoveu e fez aprovar a patetice ortográfica vigente*), cuja única virtualidade parece ser, paradoxalmente, a de economizar uns quantos caracteres de tinta – boa parte dos quais indispensável à boa leitura e à compreensão do que se lê - que, aqui e ali, por artificiosa síncope, se foi tratando de amputar, diligência essa que a manipulada e estafada verborreia feminista de agora, obrigando-nos a gastar mais tinta, vem contrariar.

Como sou exagerado, dei comigo a pensar por que razão não teria o Hino Nacional*)sido, ainda, alterado em consonância com a nova moda: “Heroínas e heróis do mar” e por aí fora, assim irremediavelmente arruinando a métrica - e obrigando, mesmo, a escolher outra música, já que o Autor*) da atual não está entre nós para a poder alterar.  Heroínas e heróis”, “as tuas egrégias avós e os teus egrégios avôs”, quando fosse cantado por elementos masculinos; o inverso quando fosse cantado por elementos femininos e, num coro… a confusão generalizada. 

Lá acabei por concluir que a ideia era parva, quanto mais não fosse porque as egrégias avós não andavam embarcadas em cascas de noz*), privilégio esse então reservado às também egrégias – e heróicas - caras metades.

Convenhamos que, além de gramaticalmente incorreto, “portuguesas e portugueses” se apresenta excessivo na leitura.  No entanto, na linguagem falada de umas quantas políticas e de uns quantos políticos que não se importem de alardear chã ignorância a troco de um poucochinho de popularidade acrescida junto de setores mais permeáveis ao discurso demagógico…  por que não?  Até se faz, por aí, figuras bem piores, como aquela pirosice do Cartão de Cidadania*).  Ou deveria ser Cartona de Cidadã e Cartão de Cidadão?  Ou talvez a solução esteja na gíria das redes sociais*):  Cart@o de Cidad@o?  Sim, o @ não admite – ainda – o til.  É pena…

Já agora: como se lê est@ cois@?

Vendo bem, “Portuguesas e portugueses” poderá não ser, gramaticalmente, um pecado capital.  Mas onde, em qualquer ortografia do Mundo – mesmo naquela idiotice do acordo ortográfico – encontramos portugues@s, a não ser na linguagem abstrusa daquela cena das redes sociais?  Que tal, então, a ideia também abstrusa de substituir Direitos do Homem por Direitos Humanos?  O que muda, neste caso, se a raiz homo da nova palavra é a mesma da anterior?  Talvez Direitos Mulieranos e Humanos, então?

Se anthropos, em grego, significa homem, que nome irão dar, a partir de agora, à antropologia?

Mas anda tudo doido, afinal?

A propósito: já alguém ouviu um desses defensores desta desgraçada coisa dirigir-se-nos de viva vós dizendo "Cares Portugueses"? Ou espera-se que o ridículo seja só para nós?


2. Partidos Mendicantes Apoiam a Violação das Normas Constitucionais por Desnorteados Radicais

À míngua de resultados eleitorais dignos desse nome por parte da amálgama de movimentos radicais de esquerda, talvez toda esta antigramatical trapalhada acabe por captar mais uma meia dúzia de votos junto de quem mobiliza boa parte dos neurónios que lhe restam a magicar o que irá tirar da despensa para, ao magro salário, poder surripiar aqueles preciosos dez por cento indispensavelmente destinados à rotina quinzenal de nail art*)- em inglês, para sermos chic como gostam.

O problema com as radicais e com os radicais é serem obrigadas e obrigados a defender até ao fim determinada construção intelectual erigida em torno de um certo ideal ao qual sacrificaram toda a sua energia e, por vezes, toda a vida.  Não podem ceder um milímetro que seja, pois, fazer perigar essa construção, questionar esse ideal, seria, para elas e para eles, o mesmo que questionar a utilidade da sua própria existência; e há quem pense que não há maiores radicais do que as idealistas e os idealistas, principalmente as e os que defendem as minorias contra as maiorias.

Ocorre, porém, que as mulheres não são uma minoria*).  Bem pelo contrário:  são, em Portugal, uma – embora ligeira – maioria; e acontece, também, que os indivíduos de um sexo dizerem mal dos do outro é prática habitual desde tempos imemoriais, por mera picardia e sem que algum prejuízo sério seja conhecido como decorrente dessa prática.  Ademais, sendo este maldizer próprio, quer das mulheres, quer dos homens, ao não se intrometer está o Estado Português simplesmente a dar cumprimento à alínea h) do artigo 9º da Constituição*), que o obriga a “promover a igualdade entre homens e mulheres”.

Entre parênteses, direi que, como tantas outras, esta disposição constitucional corre sério risco de ser considerada, em si mesma, discriminatória, uma vez que refere primeiro os homens e só depois as mulheres.  Haverá, assim, que rever e substituir este discriminatório preceito machista por “promover a igualdade entre @s portugues@s de ambos os sexos” - fazemos figura de parvos em tantas coisas que, mais uma, menos uma, a ninguém fará grande impressão.

Fechando os parênteses, e com o devido respeito, aquilo que diz a Constituição japonesa interessa-me tão pouco como o que diz a Constituição portuguesa poderá interessar ao japonês médio.  Mas já me interessa, e muito, que algumas portuguesas e alguns portugueses achem muito bem que, semanas atrás, o Presidente do Comité Olímpico Japonês tenha sido forçado a demitir-se*), nada mais, nada menos, do que por ter dito mal das mulheres – por, na sua opinião, tenderem a retardar o andamento dos trabalhos ao falar bastante mais do que os colegas homens, nas reuniões.

Por alguma razão que desconheço, é verdade que a Constituição da República Portuguesa não reconhece, expressamente, a liberdade de expressão individual, a qual parece ser prerrogativa exclusiva da comunicação. Não obstante, o seu artigo 16º é bem claro ao dispor que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, e que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem*).

Por força do mesmo artigo 16º é, assim, aplicável o que diz o artigo 19º da Declaração Universal: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

O n.º 2 do artigo 13º da Constituição portuguesa impõe que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão (…) do sexo (…)”.  Conjugado com quanto antecede, quer isto dizer que nem as mulheres podem ser impedidas de dizer mal dos homens, nem os homens podem ser impedidos de dizer mal das mulheres.

Pretender que não se pode opinar livremente acerca das mulheres é desmerecer a nobre motivação e a corajosa atuação dos movimentos feministas*), nascidos para promover a igualdade de direitos entre os sexos e para pôr cobro aos maus-tratos de que eram vítimas as mulheres; não, decididamente, para fomentar a coscuvilhice e o diz que disse, e muito menos para coartar o direito de expressão dos masculinos.

O Mundo foi criado por um homem ou por uma mulher?  Criador masculino ou Criadora feminina?  Embora, com esta parvoíce linguística supostamente feminista, passem o tempo a discutir o sexo dos anjos, uma tal sandice parece que ainda ninguém se lembrou de suscitar…


3. A Gramática como Instrumento de Manipulação Política

A gramática destina-se a fazer com que cada um entenda o que o outro está a querer dizer-lhe; e o que diz a linguagem pseudo-inclusiva - mas, na verdade, divisionista*)- é que existem dois tipos bem distintos de seres humanos, e não um único e indiviso, ao qual uma regra manda referir, no plural, como  portugueses, como a consulta da mais elementar gramática rapidamente esclarecerá.

Os excessos só levam a afastar cada vez mais as pessoas umas das outras: a que olhem umas para as outras como um incómodo, ou como alguém de menor capacidade que se tem de, como se de crianças se tratasse, olhar com carinho e proteger. A vitimização desrazoável e descabida equivale a um autêntico atestado de menoridade passado, paradoxalmente, por quem pugna por se libertar – ou, mais propriamente, por se evidenciar – com a preciosa ajuda das revistas que, para fomentar a igualdade e o equilíbrio, publicam artigos sob o título “As 100 Mulheres Mais Poderosas do País*).

Mas não tem, mesmo, esta gente coisas mais interessantes com que se entreter, coisas verdadeiramente importantes a tratar?  Têm, mesmo, de perder tempo a assassinar a sangue-frio a língua que falamos, numa terra onde tanto se fala e, havendo tanto para fazer, tão pouco se faz?

Só não discriminando garantimos que os outros se não sintam discriminados: não, mediante a utilização de uma assim chamada linguagem inclusiva,  cujo primeiro e imediato efeito é, paradoxal e inevitavelmente, nada mais, nada menos do que lembrar constantemente ao discriminado que, efetivamente o é, que contra ele existe discriminação.  Não passa, assim, de tremendo e oportunista disparate, esta linguagem inclusiva, esta politiquice primária, parola e... contraproducente.

Agora, muito à séria (que horror!) e muito a sério…

Escreveu um filósofo suíço do século XVIII que “no que têm de comum, ambos os sexos são iguais; no que têm de diferente, não são comparáveis*).

Ora, além de ser manifesto erro tratar como igual o que é tão diferente como as Portuguesas e os Portugueses, perante tão flagrante ausência de argumentação válida querer mudar, através da forma de nos exprimirmos - a assim chamada linguagem inclusiva -, o que vai nas cabeças das eleitoras e dos eleitores afigura-se caminho bem pobre, muito redutor, de duvidosa eficácia, quase subversivo, até;  sobretudo na cabeça das eleitoras prospetivas e dos eleitores prospetivos, assim se deseducando a juventude na direção pretendida por umas quantas e por uns quantos… poucas e poucos, esperemos.

Nada disto passa, evidentemente, de uma forma sinuosa mas despudorada de manipulação dos espíritos, mediante a inversão da tendência natural e saudável para ser a língua a acompanhar, a par e passo, a evolução da cultura e das mentes, como quase sempre aconteceu e penso que, no respeito pelos princípios e pelas regras gramaticais, deveria continuar a acontecer.

Ou será que, perante a generalizada resistência à mudança, não passará toda esta fantochada do canto do cisne, do grito de desespero de quem cada vez encontra menos eco para a sua deriva para os temas fraturantes, num derradeiro e patético atirar de poeira aos olhos das menos esclarecidas e dos menos esclarecidos, das menos sensatas e dos menos sensatos, impondo-lhes expressões inventadas à revelia da gramática e que, com a realidade, pouca ou nenhuma correspondência acabam por ter?

Mudar o Mundo é difícil, mas mais difícil ainda sempre será tirar a derradeira tábua de salvação da mão de um político prestes a afundar-se.  Ou de uma política.

Convém, não entanto, que as políticas desesperadas e os políticos desesperados não esqueçam aquilo que, apesar de tudo, boa parte dos seres humanos ainda sabe: que uma mulher que se comporta como um homem tem, para um homem, tanto interesse quanto para uma mulher tem interesse… um homem que se comporta como uma mulher.

Portuguesas e portuguesas significa que existem mulheres e homens; e que não são iguais.

sábado, 20 de março de 2021


Demagogia à Portuguesa

"A catalepsia política destes partidos foi habilmente aproveitada para,
desembainhando a espada em pretensa defesa de alguns dos setores mais críticos
do descontentamento laboral (...) e cavalgando a passadeira estendida por grupos profissionais
dos mais insatisfeitos outrora no feudo do PCP, conseguir o 
Chega!, em tempo incrivelmente curto,
a almejada e indispensável visibilidade inerente a uma elementar
mas preciosa representação parlamentar"


   1. Introdução
   2. Na Génese da Demagogia Portuguesa
   3. Primeira Sacudidela
   4. A Inversão da Tendência
   5. O Trambolhão
   6. De Onde Fugiram os Votos
   7. Hipótese

1. Introdução

Apregoou-se por aí, durante quase cinquenta anos, que Portugal era uma democracia madura, de maioria de esquerda e fortes convicções políticas.

A sustentar essa tese, quatro fatores principais caracterizavam uma vivência política na verdade desinteressante e pantanosa, que a generalidade dos políticos e dos comentadores se foi habituando a confundir com estabilidade.

Por um lado, as frequentes maiorias do Partido Socialista (PS).  Por outro, as contribuições do mais jovem Bloco de Esquerda (Bloco), aparentemente potenciadoras de sinergias numa esquerda que se acreditava forte no plano eleitoral.  Acima de ambos, a tão propalada lealdade estoica de uma parte do eleitorado fiel à proposta do Partido Comunista (PCP), sobretudo em Setúbal e no Alentejo. 

Por fim, a manifesta dormência à direita de todos estes, mormente num Partido Social Democrata (PSD) que não parece saber como se livrar da perene imagem de maior partido da oposição e num Partido do Centro Democrático e Social (CDS/PP) demasiado próximo do anterior, sem margem para uma expansão democrática à direita e que nem com a inflexão para Partido Popular soube encontrar espaço político onde apenas havia um razoável campo de manobras e trampolim para quem dele se soubesse aproveitar.

Os humilhantes resultados da extrema esquerda na eleição presidencial de 2021*) fizeram soar, no pantanal, campainhas de alarme, cujas pilhas a coincidente ascensão da votação na extrema direita esteve a pontos de completamente gastar.

Muitas opiniões autorizadas se fizeram, então, ouvir, desdobrando-se na apresentação de explicações aritméticas para tão estranha, inesperada e abrupta transferência de votos – alguma dela, entre os extremos que alguns dizem tocar-se. Ora, pelo menos quanto à dependência da demagogia, os extremos tocam-se ou tocaram-se mesmo, e misturam-se bem com o centro, como nas linhas seguintes procurarei demonstrar.

 

2. Na Génese da Demagogia Portuguesa

Até ao final do século XX, se alguém perguntasse qual era, no panorama político português, o partido que, imediatamente, associávamos à ideia de esquerda, a resposta evidente seria o PCP; aliás, a única, já que, na extrema mais extrema ainda, procuravam manter-se à tona minúsculos partidos que apenas uma vez ou outra lograriam obter representação parlamentar - sempre meramente  simbólica e que jamais souberam potenciar.

Não é difícil recordar as causas do PCP, as suas bandeiras, a que, para concitar as suas hostes, parecendo dinâmico e aguerrido, prefere chamar lutas.  Note-se que a escolha vocabular é acertada, desde logo porque, digam o que quiserem continuar a dizer, a prática democrática nunca foi, até à data em que a maior parte acabou por cair com estrondo, a dileta dos governos ditos comunistas, que o PCP ainda hoje diz admirar;  e continua a não ser naqueles países que, contra toda a lógica e evidência, afirmam encontrar nas comprovadamente ocas e ineficazes teorias marxistas legitimidade ideológica para os respetivos povos democraticamente oprimir e espezinhar.

A escolha do termo lutas é acertada também porque o que, em tempos há muito idos, valeu ao PCP aqueles quinze por cento – ora mais uns pós, ora menos uns pós - que lhe permitiram afirmar-se foi a imagem de força desalinhada, de partido antirregime, que só o não era mais porque, como não o deixaram impor-se à batatada, alternativa não lhe restava a sujeitar-se ao voto popular.

Para angariar votos, caia-lhe, então, às mil maravilhas o ambiente pós-revolucionário, o desejo de mudança há muito legitimamente sentido e alimentado.  Mais do que tudo, foi fulcral a sagacidade de um Secretário Geral, cuja inteligência fina e trato cordial souberam camuflar o objetivo final e a verdadeira estratégia atrás do mais antigo discurso demagógico da democracia portuguesa, prenhe de chavões proferidos em incessante catadupa, naquele tom bem conhecido e característico que alguns dirigentes do PCP de hoje nas suas cacofónicas prosas ainda não conseguem – ou não querem - evitar.

Nesse registo de então, paradoxalmente monocórdico e acutilante, quase agressivo, cujas promessas soavam como música aos ouvidos dos mais descontentes, dos mais oprimidos, dos menos esclarecidos, sucediam-se referências a bandeiras como a da prolongada luta pelo direito à reforma e a uma pensão digna*), a da luta pela reforma agrária*), a da luta contra o pacto de agressão da direita com a Europa contra a Segurança Social*), a da luta pelo aumento do salário mínimo*) e por aí fora, habilmente visando cada foco de descontentamento – espontâneo ou induzido e mesmo que tal foco fosse politicamente explorável apenas no limiar da irracionalidade -, independentemente da disponibilidade económica e financeira do Estado, a qual jamais pareceu preocupar.

Todas estas lutas iam sendo travadas sob a égide de duas ideias estruturantes da mensagem:  a união de todos os trabalhadores em torno dos ideais comunistas salvadores, e a defesa de uma Constituição da República Portuguesa*) originariamente feita à medida do Partido.  O braço armado – por assim dizer - residia, então como agora, na CGTP Intersindical*), estrutura reverberante e pujante a brandir a espada da greve como ameaça permanente à cabeça dos governantes.

3. Primeira Sacudidela

Desgraçadamente para o PCP, o Secretário Geral decidiu retirar-se no ano seguinte ao do desaire de 1991 – acontecido poucos dias antes da há muito anunciada queda do Muro de Berlim*) -, ato eleitoral em que a compacta coligação com o estranho satélite denominado Partido Ecologista os Verdes (PEV) fez um enorme buraco no patamar daqueles quinze por cento que, na verdade, desde 1987 eram só doze. Excetuando, curiosamente, as eleições europeias, mergulharam de então em diante os números nas profundezas abaixo dos dois dígitos, numa queda livre da qual, até hoje e excetuando uma ou outra insignificante oscilação, o PCP jamais conseguiria recuperar.

A saída do Secretário Geral levou com ela a substância, a superior inteligência e a empática habilidade do discurso demagógico do Mestre, passando aquele a ser tentado pela pena de próceres simpáticos, mas de postura frouxa, nada convincente, visivelmente pouco elaborada, sem carisma, e que, aliada à absoluta falta de alternativa válida e disponível, apenas a proverbial obstinação do Partido em fazer passar uma imagem de inabalável segurança e de continuidade durante tantos anos acabou por sustentar.

As ideias, entretanto, eram as mesmas, os processos idênticos, e o discurso encontrava-se esvaziado já que, além de faltar quem soubesse enriquecê-lo, colapsara ante múltiplos e inegáveis fracassos o substrato ideológico essencial para o suportar.

A morte política do comunismo um pouco por todo o Mundo, acabaria por atingir, também, os minúsculos partidos da extrema esquerda portuguesa.  Apesar disso, apercebendo-se da entropia que ia aniquilando o outrora bastião antissistema, alguns deles lá trataram de engolir um sapinho aqui, outro ali, acabando, quase no fim do século passado, por se entender num amalgamado Bloco que pretendia ser – e durante certo tempo foi – a nova pedrada no charco.

O discurso demagógico, outrora bandeira do PCP, foi então encabeçado, à esquerda, por um coordenador do Bloco de Esquerda que, não obstante se apresentar algo tímido e reservado, lá conseguiu, ao fim de uma década e em eleições legislativas, quase atingir os dois dígitos, beneficiando do marasmo do gigante comunista, que continuava inanimado.

Cabe abrir aqui um parênteses para referir que, no extremo oposto do hemiciclo parlamentar, encabeçava então as hostes do CDS/PP um político de gema, mestre na arte da manipulação de cariz demagógico, que, no fim da primeira década ficou conhecido pelos apelos ao voto junto das peixeiras do Mercado de Benfica, em contraponto com o Coordenador do Bloco que, ao que diziam, ali as não visitava.

A eficácia desta demagogia do centro-direita não é, no entanto, fácil de avaliar tendo como base resultados de eleições presidenciais, já que, desde 1996, o Partido não tem por hábito apresentar candidato próprio.  Mas a verdade é que o em tempos partido do táxi *) conseguiu, durante vários anos, manter uma representação próxima de quinze deputados, daí passando até para mais de vinte, e culminando com uma significativa participação ao nível do governo – experiência pela qual já noutros tempos havia passado.

Não poderia esta ascensão do CDS/PP deixar de ser associada ao pendor fortemente demagógico do discurso e do desempenho do Presidente do Partido, pelo que, embora sem suporte em resultados eleitorais independentes, este texto ficaria incompleto se aqui a omitisse.  Tanto mais que, em votos em eleições legislativas, estava o CDS/PP até ligeiramente acima de quem, à esquerda, o contraponto esboçava.

Voltando ao Bloco de Esquerda, à façanha de quase atingir os dois dígitos nas legislativas de 2009, seguiu-se um trambolhão para quase metade, após o que foi o Coordenador substituído por uma sucessora cujos dotes comunicacionais inatos, académica e profissionalmente desenvolvidos e progressivamente cultivados para as necessidades da vida política, voltaram a, decisivamente, elevar os resultados nas eleições legislativas.

Como candidata às duas eleições presidenciais do seu consulado, a Coordenadora escolheu a deputada ao Parlamento Europeu, militante cuja qualidade humana e simpatia inegáveis em 2016 valeriam ao Bloco dez por cento dos votos expressos*), a melhor marca de sempre obtida por um candidato presidencial recrutado nas hostes do Partido – ou do Movimento, como preferem chamar-se.

Talvez por essa razão, e com toda a justeza, foi a mesma Candidata selecionada como representante na eleição presidencial de 2021, altura em que também o discurso demagógico do Bloco esmorecera já bastante, tendo os seus dirigentes preferido como que sofisticar a mensagem, passando a propugnar causas fraturantes*) que apenas a algumas minorias poderão interessar, simultaneamente relegando – pelo menos aos olhos da opinião pública - para segundo plano a defesa dos tradicionais alvos que, em tempos, com o agora estiolado Partido Comunista Português costumava disputar.

As classes menos favorecidas, menos letradas, menos esclarecidas da população votante foram, por este processo, deixando de se rever nas causas defendidas pelo Bloco de Esquerda, que passou a ser cada vez mais conotado com a ideia de uma emergente esquerda que procura votos tentando impor, a maiorias democraticamente estabelecidas e consolidadas, minorias que talvez preferissem que as deixassem em paz.

Juntando esta inflexão do Bloco ao colapso do PCP, a ainda muito considerável massa menos esclarecida de votantes deixou de ver, nos partidos da esquerda, quem com alguma eficácia agitasse as águas, alguém que ainda desse a ideia de os estar a representar.

Erro fatal!


4. A Inversão da Tendência

Vai daí que num belo dia de 2019, tendo, à direita, o discurso demagógico do CDS/PP perdido o brilho com a saída do Presidente uns anos atrás, começaram os tais desiludidos eleitores a aperceber-se da existência, lá muito à direita, de um novo partido que, de forma para eles aparentemente muito mais promissora e exaltada, pretendia pugnar precisamente por aquilo com que, em tempos idos, lhes acenara sobretudo a esquerda.

É certo que este novo partido dizia, ao mesmo tempo, umas coisas de arrepiar, mas não há de ser nada; e é claro que aquilo não passa de disparates que, com o tempo, acabam por passar - além do que nada disso importa quando o discurso chega bem vivo, acutilante e brejeiro, de um tribuno de inteligência viva resposta pronta e palrar infrene, suficientemente incisivo para conseguir as hostes animar com uma lata bem apropriada a uma fatia básica e esquizofrénica da população, capaz de exigir o encerramento das escolas para, três semanas depois e sem consenso na comunidade científica, logo a necessidade da imediata reabertura alardear.

Concluiu, então, essa ilustrada mole que Chega! de ficar à espera de que o Bloco perca as peneiras, o PCP volte à vida, o PSD encontre alguém com o carisma necessário para protagonizar uma verdadeira oposição e o CDS/PP deixe os cuidados intensivos, tudo isto enquanto o PS continua, tranquila e desnorteadamente, a mandar.

A catalepsia política destes partidos foi habilmente aproveitada para, desembainhando a espada em pretensa defesa de alguns dos setores mais críticos do descontentamento laboral – professores, enfermeiros e forças policiais – e cavalgando a passadeira estendida por grupos profissionais dos mais insatisfeitos outrora no feudo do PCP, conseguir o Chega!, em tempo incrivelmente curto, a almejada e indispensável visibilidade inerente a uma elementar mas preciosa representação parlamentar.

Conseguiu tudo isto sem ainda se ter, sequer, estabilizado, estruturado enquanto partido, não passando, para já - e se quisermos ser muito simpáticos -, de uma heterogénea amálgama de gente saturada da bem patente incapacidade dos partidos do regime para gerir seja o que for.

Bloco e PCP, bem se esforçaram, então, por balbuciar sucessos associáveis à sua presença na geringonça governativa.  Mas como pode a generalidade dos eleitores, não militantes e pouco ligados a estas coisas da política, deixar-se sensibilizar por difusas alegações de autoria dos sucessos ou de partilhada responsabilidade positiva pelos mesmos?

Perspicaz, o Presidente do Chega! entendeu que, aos espíritos menos vocacionados para a política, com menos apetência para absorver informação, menos preparados, menos aptos, menos esclarecidos, quase iletrados – e tantos são, ainda! –, a ilusão de promissora eficácia tem muito mais a ver com energia, com vivacidade, com carisma, com o espetáculo proporcionado pelo permanente chasquear com os colegas parlamentares do que com visitas à sala poeirenta onde cada partido expõe troféus alegadamente ganhos em tempos passados que nada podem melhorar.  Como, no século XIX, alguém em França escreveu, “um governo seria eterno com a condição, de todos os dias, oferecer ao povo um fogo de artifício, e à burguesia um processo escandaloso”.  O Chega! sabe-o bem.

O que rende votos é o tom da mensagem, a vivacidade, o dinamismo, ser convicto e, sobretudo, falar a linguagem de quem nos ouve, trazer novidades, ainda que a suposta diferença se traduza numa bússola ideológica completamente à deriva, que a vivacidade roce a ordinarice e a aparente convicção se mostre irrepreensivelmente vazia de valores.  São, em grande medida, estas qualidades que levam o eleitor português que vota porque sim a encarar um partido como sendo o seu clube do coração, a vestir a camisola, a acreditar, a votar no seu candidato de eleição.  Insistir unicamente no debate das ideias, como se todos por elas se interessassem e fossem capazes de as entender, é estar, como acontece com a generalidade dos partidos tradicionais, em estado de alienação, de negação.

De facto, é tão sensato esperar que um eleitor comum perceba a fundo de política como que um doente seja perito em medicina.  A verdade é que sabemos escolher tão bem o medicamento ideal para nos curar, como o sistema melhor para nos governar.  Escolhemos, não o remédio, mas o médico, o governante e não o sistema político, assim nos interessando tão pouco a bula do remédio como o programa partidário; e eleitores comuns somos quase todos nós.

O Presidente da República reeleito sabe muito bem tudo isto, pelo menos, desde o dia em que mergulhou no rio Tejo*).  O Primeiro Ministro, vai aprendendo.  Ao Presidente do Chega!, corre nas veias sem ter de se esforçar.

No extremo oposto, fatigada, talvez, pelo esforço de exigentes anos passados como única deputada do Partido ao Parlamento Europeu, a Candidata do Bloco mostrou, na campanha eleitoral, evidentes sinais de fatiga e desgaste, de desânimo quase, que a invocação da batalha pelos cuidadores informais não chegou para obnubilar.

Já o PCP viu bem o perigo, a pontos de, em lugar de imolar na pira eleitoral um outrora sacerdote*) que ninguém conhecia, desta vez tudo ter jogado na decisão de optar pelo gambito do delfim designado para suceder ao atual Secretário Geral, nele tendo apostado todos os seus trunfos.  Mas o olhar parado, uma voz que mal se ouve e o discurso de antanho nunca poderiam tê-lo levado longe, mais a mais sempre apoiado na velha cartilha, agora ainda mais insonsa por ter sido enriquecida com a estafada lengalenga da defesa da Constituição*) - esquecendo-se de que que, por todos estarem ao cumprimento desta obrigados, nunca tão pouco original defesa moverá quem padecer de eleitoral indecisão.

Apenas se consolidou, desta forma, no eleitorado a ideia generalizada de que continuará a definhar até à morte o velho Partido, casado com uma inércia nele de tal forma entranhada que jamais conseguirá o divórcio ou, pelo menos, a separação; que bem sabe que o novo 'slogan' "O Futuro Tem Partido" mais não visa do que obnubilar a certeza de que a utopia dos ainda propalados, mas defuntos, ideais comunistas deu lugar à distopia de um futuro no qual, ao invés, nem nos bastidores o Partido tem lugar.

Continuou, entretanto, o Partido Socialista por ali a pairar à toa, sem que um candidato próprio tenha, às eleições de 2021, sido apresentado pelo partido da governação, apenas tendo, espontaneamente, avançado uma candidata independente - de apaixonado e nem sempre muito coerente discurso demagógico em decalque das tais causas da nova e sofisticada esquerda personificada pelo Bloco -, Candidata essa militando na zona mais à esquerda do Partido, área política que, deixando saudades dos tempos áureos do Procópio, se apresenta hoje deserta de verdadeiras figuras.

Dadas as inevitáveis inconsequência e falta de continuidade posteriores do seu gesto, não se entende bem o que, além de barulho e de dispersar os já escassos votos mais à esquerda, a tal Candidata a estas eleições foi fazer.

 

5. O Trambolhão

Para os supostamente indefetíveis eleitores de esquerda, naquele dia de Janeiro de 2021 lá se foi o Marx, mais o Lenine e a cartilha toda que, em boa verdade, nunca lhes interessou:   longe de serem indefetíveis, votavam em quem votavam apenas porque lhes faltava quem, à esquerda ou à direita, tivesse um discurso mais espetacular, mais demagógico e mais agitasse as pantanosas águas do sistema, mais os fizesse sonhar.

A grande ilusão da nação convicta implodiu espalhafatosamente, para gáudio dos oportunistas que, com pequenas alfinetadas em sítios judiciosamente escolhidos, num ápice esvaziaram a bolha da inanimada esquerda ao convencer boa parte dos votantes de que a defesa dos seus anseios prometida pela interminável, monocórdica e sincopada parlenda do Partido Comunista jamais iria, verdadeiramente, levar a bom porto a maior parte das reivindicações.  Fez-lhes ver que aquilo que o Partido há décadas para eles exigia, sempre seria, pelos detentores do poder – e mesmo no quadro da Geringonça –, concedido como uma esmola a conta gotas, unicamente destinada a suster aquela incómoda mania de fomentar e apoiar sucessivas paralisações laborais;  e que, no marasmo comunicacional das frases repetidas, repisadas até mais não se aguentar, as pouco invejáveis condições de vida desses eleitores iriam perdurar, até porque a medida colossal da sempre incómoda falta de liquidez do Tesouro jamais, foi, ou será, coisa de preocupar, apenas servindo para os fazer mudar de canal quando os entendidos dela começam a falar.

Perceberam eles, também, que a sua esperança não residia naquele estranho e cada vez mais apagado conjunto de pessoas que ocupa o cantinho mais à esquerda da bancada parlamentar, e cujos alegados impacto e eficácia na luta pelos direitos dos trabalhadores agora se não consegue vislumbrar, quase se limitando agora a perorar sobre causas fraturantes das tais minorias que, de tão badaladas, já ninguém tem, propriamente, apetência para apoiar, ou, sequer, paciência para delas ouvir falar.

Tirando os adeptos ferrenhos que gostam de ver o seu partido jogar na Sport Parlamento TV, o supostamente mui consciente e politizado povo português de esquerda não lê programas partidários, programas de candidatos presidenciais, programas seja de quem for:  quer é ver a vidinha resolvida por quem mais possibilidades lhe pareça ter de, expeditamente, a resolver, bem sabendo que lá não irá pela mão de quem durante mais tempo na campanha arrastar o seu desinteressante e pouco credível palrar;  e, quanto ao palrar, do que essa menos favorecida e mais volátil massa eleitora gosta mesmo é de os ver todos à bulha nos debates que as estações televisivas generalistas e noticiosas tão bem sabem explorar.

 

6. De Onde Fugiram os Votos

Meio milhão de fascistas portugueses vota no Chega!? *)  Claro que não.

Mas também pouco sentido fará atribuir o sucesso eleitoral do jovem Presidente desse novo Partido maioritariamente à migração de votos do PCP - no Alentejo, em Setúbal, onde for.  Embora tampouco seja despiciendo, em certa medida, fazê-lo:  por um lado, porque o segundo lugar em Beja, Évora, Portalegre e Setúbal não pode deixar de estar relacionado com a campanha de proximidade, quer física, quer do discurso, relativamente aos anseios da população;  por outro, porque, desta vez, o candidato do PCP não era um ilustre desconhecido, mas o próprio Delfim e deputado europeu, o que deveria ter servido para imprimir uma mensagem de confiança suficientemente forte para captar os votos da tal fatia menos esclarecida do eleitoral bolo, pelo que bem poderia ter conseguido melhorar, de forma expressiva, o resultado da votação.

Ao invés, os resultados percentuais em três destes distritos foram, até, ligeiramente inferiores aos de 2016 - não tendo comparação possível com os de 2011*) - o que permite dizer, numa extrapolação algo liberal para os resultados globais, que o eleitorado fiel e disciplinado do PCP ronda, quando muito, os quatro por cento, pelo menos em eleições presidenciais.

Por sua vez, o sofrível desempenho em campanha da Candidata do Bloco permite admitir que nela terão, também, votado quase unicamente os obedientes, ficando-se a base estável de apoio pelos mesmos quatro por cento.

Por fim, atentos a atitude trapalhona e o discurso mal alinhavado, quase entontecido e pouco propício a atrair multidões, os magros quase treze por cento obtidos pela Candidata da ala esquerda socialista levam a concluir pela possibilidade de ser essa, quanto à ala em que milita no Partido, a verdadeira representação.

Juntando estes três restinhos, terão ficado, para a habitualmente maioritária esquerda - esclarecida e convicta - uns bem medidos vinte por cento, devendo-se tudo o resto que noutras eleições em votos tem recebido à mais ou menos eficaz manipulação, pela mensagem, de um eleitorado flutuante que, basicamente, se está nas tintas para quem vai ganhar, desde que esse alguém o convença de que, antes de todos, será esse mesmo eleitorado que, com a escolha, terá a ganhar.

Os grandes vencedores da eleição presidencial de 2021 foram os que já sabemos:  os mestres da comunicação, cuja retórica capaz de fazer derreter o gelo e vibrar as pedras atrai às assembleias de voto largas centenas de milhar de votantes, mesmo que receosos de, ao deixar o voto, poderem levar, em troca, um virulento bicharoco capaz de dar cabo deles e dos seus.

Ganharam porque, ao contrário do que parece ser geralmente entendido, demagogia não é sinónimo de extrema direita.  A demagogia, de onde quer que venha, é, porventura, o instrumento mais eficaz para quem quiser aproveitar-se dos verdadeiros e incuráveis calcanhares de Aquiles da democracia:  a ignorância e o défice de consciência política e cívica de boa parte dos eleitores.

Ao que parece só o discurso demagógico - e popularucho – alguma vez logrará desviar as atenções da incompetência e do vazio político de um partido, tácito mas claríssimo e irrecusável convite à emergência de outros.

Independentemente da evolução futura do Chega!, os resultados da eleição presidencial foram um sério alerta, e a mensagem para os partidos do sistema é clara:  procurar, preservando a ética, apostar na qualidade e, sobretudo, no dinamismo da comunicação, adaptando-a não apenas às expetativas dos eleitores, mas, durante a campanha, também à capacidade de entendimento de cada segmento visado.

Talvez, acima de tudo, aos seus gostos e necessidades de evasão, de distração.

 

7. Hipótese

Entre os menos esclarecidos ou menos interessados eleitores de qualquer quadrante, o caráter mais ou menos demagógico do discurso político tende, nos atos eleitorais, a condicionar mais fortemente, respetivamente para mais ou para menos, o sentido da votação, do que a divulgação das grandes linhas programáticas de quem se candidata; e os resultados eleitorais são, cada vez mais uma medida de avaliação do desempenho das agências de comunicação.

Sic transit gloria mundi...