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quarta-feira, 24 de novembro de 2021


Maria José Morgado


 

"A única maneira de defender a liberdade

é limitar a liberdade de cada um"

Maria José Morgado*)
(entrevista a 'Por Outro Lado - RTP) 




Aplica-se, antes de mais, à necessidade de privar da liberdade quem comete crimes, claro está.

Mas não será abusivo lembrar este princípio também quando falamos das investidas de certas minorias de escassa representação na comunidade que, embaladas pelos anseios eleitoralistas de certas forças políticas,  procuram, mais do que defender os seus legítimos direitos, impor aos outros ideologias globalmente rejeitadas por uma maioria que, em democracia, tem todo o direito de o fazer, precisamente por ser uma maioria e por, em democracia, prevalecer, até no voto, o primado da maioria.

Ou terão as coisas mudado tanto que assim já não será?

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sábado, 6 de novembro de 2021


Desventurosa Retratação!

 

Mesmo tendo a retratação pública sido imposta, não bastaria dizer que,
afinal, a família injuriada não era composta por bandidos,
impondo-se que o Presidente do Chega! perentória e expressamente reconhecesse o erro moral,
a censurabilidade social da conduta e do pensamento e da ideologia a ela subjacentes


A inevitável subjetividade inerente ao modo como a retratação pública é realizada apenas é comparável à subjetividade da avaliação da eficácia da mesma por aqueles a quem ela compete, designadamente no que se refere à proteção do bem jurídico da honra do ofendido, sem esquecer o valor que a ampla divulgação da execução da sentença deverá representar para a prevenção da proliferação de condutas do mesmo tipo.

Maior ou Menor Carga Subjetiva
A despeito da maior ou menor carga subjetiva que comporte, o cumprimento de qualquer obrigação deve ser pautado pelo princípio da idoneidade, da adequação ao bem jurídico e social prosseguido, não sendo, pois, admissíveis, quer a retratação equívoca ou incompleta, quer a que se revista de falsidade ou hipocrisia.

- x -

Para que seja plenamente eficaz, bastará a uma retratação equívoca ou incompleta ser clarificada ou complementada com os elementos indispensáveis à perfeita compreensão, não apenas do sentido, mas também da sinceridade da intenção.

Já uma retratação falsa, hipócrita, expressamente manifestada como mero cumprimento da obrigação imposta e acompanhada do esclarecimento de que se está a proferir palavras meramente formais, sem qualquer substância - naquilo que, numa visão desfocada e distorcida do direito e do conceito de reparação, o ofensor considera o estrito mas eficaz cumprimento da sentença condenatória - não resulta, de facto, no menor desagravo da ofensa feita ao merecimento social do ofendido, tampouco em nada desculpando as injúrias proferidas, antes as agravando na medida em que afasta qualquer resquício de dúvida que, quanto à firmeza da intenção de ofender, pudesse ainda persistir nos mais benevolentes espíritos.

Constitui, além do mais, intolerável ofensa aos tribunais e aos demais agentes judiciários intervenientes no processo, escarnecendo, não apenas das doutas decisões proferidas, mas também do frágil significado e do débil conteúdo intrínseco aparentemente subjacentes à execução deste tipo de penas e, por via deles, ao muito relativo impacto social da própria condenação.

No topo da desfaçatez estará, necessariamente, uma eventual e acintosa menção ao facto de que as ocas palavras de retratação apenas terão sido proferidas ou escritas a fim de evitar a ruína económica do condenado, decorrente da hemorragia de multas que diariamente seriam devidas por força do aresto condenatório, sanção pecuniária que apenas poderia considerar-se objetivamente cumprida uma vez material e liquidadas aquelas.

Se é verdade que, ao concluir pelo carácter equívoco de uma retratação, estaremos mais próximos de uma ponderação subjetiva da proporcionalidade, a retratação falsa ou hipócrita é facilmente identificável e objetiva, na medida em corresponde à inversão do sentido, da própria razão de ser da decisão, uma vez que o condenado, não só a não cumpre de forma efetiva, como  acaba por fazer exatamente o contrário daquilo que, espontaneamente, deveria ter feito ou lhe fora determinado.

Não há, por outro lado, como considerar que, quer a falsidade, quer a hipocrisia, não excluem a presença da componente fundamental de qualquer retratação: o arrependimento. Se é verdade que a mera reparação material e objetiva - mediante a execução de penas de prisão ou de multa, por exemplo – o dispensa, o mesmo não se aplica à retratação, da qual ele deverá, afinal, constituir a própria essência.

Dar por Encerrado o Processo
O mesmo é dizer que a retratação inexiste sem claro e manifesto arrependimento, o que é incompatível com uma eventual declaração, no momento em que é proferida ou escrita ou em data próxima posterior, de que os pressupostos da injúria se mantêm intactos, apenas se retratando o ofensor a fim de, para si, evitar males maiores.

Jamais se poderá, num tal caso, dar por encerrado o processo ou considerar extinta a punibilidade do crime, antes se tornando evidente ao menos juridicamente instruído dos homens médios que uma sentença executada num tal contexto continuará por cumprir, com todas as legais consequências, entre as quais a acumulação da multa diária alternativa eventualmente imposta.

- x –

Por “ofensas ao direito à honra e ao direito à imagem” nas pessoas de membros de uma família residente no Seixal*), foi o presidente do partido Chega! sentenciado, em Maio de 2021, a delas se retratar publicamente, tal como o Partido*).

Porém, à semelhança do que recentemente aconteceu com uma retratação pública imposta ao Presidente da República Federativa do Brasil*), o alegado cumprimento da sentença consistiu em pouco mais do que uma firme declaração de manutenção dos pressupostos das ofensas pelas quais fora condenado.

Não pode, é verdade, legitimamente esperar-se que, acontecendo a retratação na sequência da prolação de sentença judicial, alguma vez possa ela corresponder a um impulso genuíno e espontâneo do ofensor. Mas não pode ela também, mesmo nessas circunstâncias, ser despudoradamente desvalorizada e ridicularizada, sobretudo na imediata sequência do próprio ato em que se materializa a suposta execução do decidido pelo tribunal*).

De facto, e embora possa não ser, neste caso, de afastar completamente a presença de hipocrisia, encontramo-nos, sobretudo, perante uma retratação confessadamente vazia, falsa, como não pode deixar de se extrair de um texto em que é dito que, com ela, apenas pretende o Réu, por receio de um inevitável impacto económico negativo, dar cumprimento formal ao que foi exigido, mantendo-se, não obstante, a essência das ofensivas declarações.

Especificando, mesmo tendo a retratação pública sido imposta, não bastaria dizer que, afinal, a família injuriada não era composta por bandidos, impondo-se que o Presidente do Chega! perentória e expressamente reconhecesse o erro moral, a censurabilidade social da conduta e do pensamento e da ideologia a ela subjacentes.

A situação parece, assim, corresponder a um cumprimento aberrante e, até, pernicioso da medida imposta*), atendendo a que, a não ser a retratação dada como inexistente e sancionado o Réu por desrespeito, se estará, provavelmente, a criar condições muito favoráveis à futura invocação do episódio como precedente, arriscando-se a completa desvalorização da figura da retratação pública, que passará a ser contemplada como mera retórica ineficaz, que, afinal, nada reverte e nada resolve, ganhando as futuras decisões que a outros a imponham o estatuto de atos meramente decorativos.

Será, em conclusão, de esperar que o Tribunal declare inexistente o cumprimento da obrigação pelo Presidente do Chega! e mande contabilizar as multas diárias vencidas e vincendas até que aconteça uma efetiva retratação.

Não podemos, além do mais, deixar de, com toda a legitimidade, nos questionar da validade do discurso de alguém que, sem aparentes constrangimento ou pudor, afirme que falou por falar, inexistindo qualquer correspondência, entre as palavras que proferiu e aquilo que, efetivamente, entende.

- x -

Não está aqui em causa qualquer característica intrínseca da pessoa ou da organização condenadas, já que apenas a Deus é dado avaliar objetivamente as pessoas por aquilo que são, cabendo aos tribunais julgá-las, unicamente, por aquilo que fazem. Também, já que nem queixa houve, tampouco será legítimo afirmar que um crime foi cometido, como por essa blogosfera há quem sustente..

No entanto, e independentemente do que venha a acontecer à decisão – ainda não transitada em julgado -, bem poderá a Justiça considerar-se ofendida pela forma como àquela foi, alegadamente, dado cumprimento, forma que em nada dignifica, quer os ofendidos, quer a sociedade, de um modo geral.

Não podem, pois, aqueles a quem compete fiscalizar a execução das sentenças ficar indiferentes a estes factos, já que, como alguém disse, “o padrão de uma sociedade civilizada é a qualidade da sua justiça”.

Ou não?

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sábado, 18 de setembro de 2021


Esposas: Sede Submissas! Pois...

 

A discussão é boa e saudável apenas até ao ponto em que se torna repetitiva e fastidiosa,
em que se transforma em gritaria que já se não ouve, em que nenhuma luz consigo traz
que esclareça e nos ajude a viver em paz

Em questões socialmente melindrosas, tão imprudentes se revelam as reações a quente
baseadas em afloramentos interpretativos à revelia da razão,
como a razão pobre de uma repetitiva, dogmática, confusa, rebuscada
e nada convincente interpretação

1. O Pomo da Discórdia

2. Como Interpretar?

    2.1. Perspetiva Imediatista
    2.2. Perspetiva Eclesial
    2.3. Perspetiva Histórica
    2.4. Perspetiva Teleológica
        2.4.1. As Relações Sociais Como Objetivo Primeiro das Cartas
        2.4.2. A Motivação Escondida na Polémica Passagem
        2.4.3. Alquimia
        2.4.4. Valorização

3. Prática Eclesiástica
    3.1. Duas Questões de Legitimidade
    3.2. A Questão da Utilidade

4. Conclusão

 

O Pomo da Discórdia
1. O Pomo da Discórdia

Era inevitável, como sempre o é quando, a cada três anos por esta mesma altura, é lida nas celebrações eucarísticas o excerto da Epístola aos Efésios que, literalmente, reza “As mulheres submentam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher (…)*) (Ef 5:22), tal como em Colocenses 3:18 por outras palavras se diz o mesmo.

Quando, por obra de Deus para uns, para cúmulo do azar para outros, manda o calendário que este excerto seja lido numa conjuntura em que a questão da submissão das mulheres domina a cena política e social em virtude da tomada do poder pelos Talibãs no Afeganistão, inevitável se torna que múltiplas línguas e penas venham manifestar-se sobre o assunto, embora os estafados argumentos sejam os de sempre e as palavras pareçam, muitas vezes, provir de cérebros cristalizados, seja em anquilosadas ideias de tempos há muito passados, seja em reações emocionadas por parte de quem se sente ultrajado, seja, ainda, em aproveitamentos políticos ou de mero exibicionismo de quem acha que sempre fica bem dizer alguma coisa.

 

2. Como Interpretar?

Variadas são, necessariamente, as perspetivas com que deparamos, diversas as motivações, embora praticamente inexistentes as fundamentações verdadeiras, sérias, profundas, que permitam erradicar a emotividade recorrente e descabida, e aliviar o patente embaraço de quem não consegue explicar.

Sintetizemos, antes de mais, as duas visões tradicionais, debruçando-nos, então, sobre duas abordagens alternativas que procurarei fundamentar.


2.1. Perspetiva Imediatista

Escusado será dizer que a primeira e, porventura, única reação natural, nos dias que correm, à mera ideia de submissão será, inevitavelmente de rejeição, quer se trate de mulheres, de homens ou de animais de estimação; e é natural que assim aconteça, dada a profusão de escritos em linguagem críptica elaborados muitos séculos atrás, de ideias que a forma rebuscada impede muitos cérebros de encontrar, de manifestações radicais por parte de gente simples mas de ânimos deliberadamente exaltados por terceiros empenhados em divulgar mensagens de legitimidade duvidosa, associadas a causas mais ou menos subversivas que escolheram fomentar e divulgar.

Rejeição de Origem Racional
Não se trata, porém, de uma rejeição de origem racional, resultante de cuidada análise da ideia, como seria de esperar de seres que se consideram superiores aos restantes ou, pelo menos, deles diferenciados: tal como há certos hábitos que parecem colar-se-nos à pele, encontramo-nos, neste caso, no polo oposto, perante uma espécie de reação alérgica de substrato cultural; como que uma espécie de erupção cutânea, de incontrolável brotoeja, perante a imagem clássica do tipo bronco que, enquanto vê a bola na têvê, atira para a mulher um “Vai-me aí buscar uma cerveja! Bem fresquinha, hã? Héhéhé!” e fica todo acabrunhado quando ela, lhe responde “Vai lá tu!”, como, em qualquer terra civilizada, sempre deveria acontecer.

Igualmente irrefletida é a postura daqueles que entendem que submissão implica, em qualquer caso dominação por outrem, o que, como veremos, não é inevitavelmente verdade.

No quadro das reações primárias, encontramos, por fim, aqueles que, ignorantes do facto de as leituras das celebrações eucarísticas estarem, pela Igreja Católica, há muito, definidas para datas precisas em ciclos que, de forma automática, se renovam a cada três anos, reagem tolamente, pretendendo que a Igreja não deixou de aproveitar os acontecimentos que, no Afeganistão, ocorreram dias antes para veicular uma mensagem retrógrada e machista,ou que, pelo menos, a coincidência não evitou*).

Parece, assim, generalizada a tendência para uns e outros reagirem a quente relativamente a um tema delicado, que se quer tratado com o distanciamento e a lucidez essenciais à evolução de uma ideia até patamares de sustentação que a permitam credibilizar e sedimentar.

A discussão é boa e saudável apenas até ao ponto em que se torna repetitiva e fastidiosa, em que se transforma em gritaria que já se não ouve, em que nenhuma luz consigo traz que esclareça e nos ajude a viver em paz.

 

2.2. Perspetiva Eclesial

Na Igreja Católica há quem diga que a polémica passagem bíblica pretende significar que a mulher e o homem são um só, pelo que ninguém é superior a quem quer que seja. Mas, como é hábito na Igreja, não fundamenta, não esclarece a razão pela qual, no seu entendimento, haveremos de interpretar as Escrituras precisamente ao contrário do inequívoco sentido das palavras que nelas lemos ou nos chegam aos ouvidos quando lidas no ambão*).

Igreja

Os bispos portugueses remetem, por sua vez, para o contexto do direito familiar romano que punha em relevo o papel do marido como pater familias, não se apercebendo, porventura, Suas Excelências Reverendíssimas do gritante contrassenso em que tropeça quem sustentar que uma carta dirigida a indivíduos perseguidos pelos Romanos se baseava, precisamente, no direito e na prática impostos pelos mesmos perseguidores: “Tal como os opressores privilegiam o papel do marido fazei-o vós também”?

Como poderia, com tal argumento, um autor pretender pregar eficazmente a libertação pela Fé a partir de uma visão que acabava por, implicitamente, legitimar e, até, advogar a medonha realidade então vivida? (v. 2.3.)

Notoriamente enervado e pouco à vontade num debate televisivo vazio de novos argumentos ou ideias, diz um simpático e jovial ancião jesuíta que a Igreja está a mudar na sua forma de encarar as mulheres, mas que muito caminho há, ainda, a percorrer, limitando-se a sorrir quando confrontado, por exemplo, com a impossibilidade de ordenação de sacerdotizas. Sustenta, também que no texto em grego, se lê subordinação, e que o conceito de submissão agora referido se degradou na nossa cultura.

Mas, em que enriquece isto a discussão? Não é verdade que subordinação, submissão, o que queiram chamar-lhe, é, e será sempre, razão mais do que suficiente para pôr os cabelos das mulheres de hoje em pé - e não apenas os das radicais que se dizem feministas?*)

O jogo de palavras é aqui inane, baseia-se em suposta erudição, na opinião, no dogma, atitude tão querida da Igreja e que, uma vez mais apenas evidencia a falência da patrística e a sua fragilidade perante a manifesta dificuldade de chegar à verdade das coisas pela via da razão, a única capaz de frutificar no seio de uma assembleia cada vez mais exigente no que se refere à clareza e à racionalidade da pregação.

Fala, também, a Igreja do papel preponderante de Saulo de Tarso, chamado São Paulo na promoção da igualdade entre todos os seres humanos, designadamente entre mulheres e homens. Mas, como pode defender-se tal tese se, no mesmo texto e apesar daquilo que reza a saudação, se afirma que não foi o dito Saulo que redigiu a Carta aos Efésios?*) A ser assim, a que propósito vem a associação dessa defesa da igualdade a alguém que, por não ser o autor da Epístola aos Efésios, com tal defesa nada tem a ver?

São Paulo e as Esposas
A capacidade inventiva da Igreja Católica reconhece-se nas muitas e variadas tentativas de suposta clarificação de algo que parece bem claro, por muito que a ela possa doer; mas, em lugar de esclarecer o que quer que seja, todas elas parecem já desesperadas na evidente ineficácia comprovada pelo facto de não terem, ao longo dos tempos, sido capazes de encerrar a discussão; de, em lugar de ser convincentes, cada vez mais descolarem da realidade, de nada, afinal, nos fazerem entender.

Continua a fundamentação a limitar-se ao magíster dixit dirigido a uma audiência que a Igreja parece ainda não ter entendido que, para o bem ou para o mal, a explosão mediática já tirou daquele nível primário em que a palavra dos mestres era aceite sem discussão, e para a qual alguém dizer por dizer que é assim porque é assim, leva a nada, explica nada, convence nada.

Absolutamente nada.

 

2.3. Perspetiva Histórica

Non probandum factum notorium, pelo que, globalmente falando, desnecessário se torna demonstrar a superioridade da capacidade física do homem relativamente à da mulher. É, também, sabido que Gutenberg*) viveu no século XV, só bastante tempo depois tendo o Ocidente começado a saber o que era a impressão em série e o livro de aspeto e divulgação de alguma forma semelhantes aos atuais.

Não será, pois, de admirar que, à data e nas paragens em que, no século I d.C., terá sido escrita a Carta aos Efésios, o ganha-pão da grande maior parte das famílias fosse o trabalho braçal, para o qual o homem estava incomparavelmente mais bem equipado, e que o trabalho intelectual não passasse de algo tão remoto para a quase totalidade dos mortais, que dele mal se ouvia, sequer, falar.

O homem andava a trabalhar por fora, confraternizando e trocando impressões - não apenas no decurso da atividade laboral propriamente dita mas, para muitos pequenos agricultores e operários por conta própria, ao negociar a compra das matérias primas e dos utensílios e, mais tarde, a venda do fruto do seu esforço. À fisicamente menos possante mulher cabia ficar a cuidar da casa e da prole, limitando, provavelmente, os seus contactos com outras gentes à tagarelice nas raras vezes em que ia até ao mercado buscar aquilo com que a terra, o curral ou o galinheiro não abasteciam diretamente a despensa.

O imediato e inevitável efeito desta diferença de papéis ditada pela estrutura física de cada um, terá, assim, sido a aquisição de mais amplos conhecimentos pelo homem do que pela mulher, por isso entendendo o autor da Carta aos Efésios que “o homem é a cabeça da mulher”; e isso, por uma questão das mais elementares lógica e sensatez, acabaria por legitimar que a palavra dele fosse mais considerada e prevalente do que a dela, que detinha um ainda muito mais reduzido acervo de informação que servisse de base às decisões a tomar.

In Illo Tempore - Naquele Tempo
Por muito que hoje nos possa chocar, não há como negar que, in illo tempore, a realidade era esta, e seria tolo e descabido alguém pregar, na altura, que a mulher deveria ser ouvida em pé de igualdade com o – pouco – mais instruído marido, sem prejuízo, naturalmente, de o “maridos, amai as vossas mulheres” inevitavelmente conter a mensagem de que a opinião dela deveria ser considerada – até porque, em circunstâncias normais, ela uma parte da informação assimilada pelo homem através dele viria a conhecer e, por seu turno, a processar também.

Esta última parte, meramente em tese, já que tampouco será difícil imaginar os abusos e desmandos a que um tal quadro não deixaria de convidar pessoas mal formadas e de instintos descontrolados e perversos. Não obstante, e para o que aqui nos interessa, esta perspetiva histórica não deverá ser esquecida quando polémicos trechos textos bíblicos se trata de procurar interpretar.

 


2.4. Perspetiva Teleológica

Os textos sagrados tendem a ser encarados unicamente como mais ou menos dogmáticas exortações à Fé absoluta e inabalável em Alguém que é porque é, e cuja existência não carece de demonstração – contrariamente ao que aqui já defendi quando procurei, à margem da Fé, tal existência demonstrar.

Assim encarados os textos, não causará espanto a cada vez menor adesão efetiva de fiéis: uma coisa é declarar-se “católico” aos Censos do Instituto Nacional de Estatística(INE)*), enquanto outra, bem diferente, é acreditar; e, sobretudo, praticar, já que, enquanto acreditar tem a ver com Fé, a religião é a prática, assim não passando a declaração de “católico” ao INE, na maior parte dos casos, de uma rematada mentira por parte de quem não pratica o que quer que seja; ou, vá lá, de uma imprecisão motivada por uma generalizada incapacidade de destrinçar conceitos entre católico por vontade própria e o bem mais prosaico batizado por vontade dos progenitores.

Tenha-se a coragem de acrescentar aos inquéritos a pergunta “Participa ou, pelo menos, assiste regularmente a atividades da confissão religiosa a que pertence” e rapidamente os números cairão para escassos dez ou vinte por cento… se tanto. Tal como “são muitos os chamados, mas poucos os escolhidos”, haverá muitos que se dizem crentes, mas muito poucos os que uma religião acabem, efetivamente, por professar e praticar.

Ora, como facilmente se extrai da leitura dos primeiros capítulos, não foge a Carta aos Efésios ao tal objetivo primordial de exortar à Fé. Não é, no entanto, esta a motivação única, sendo possível encontrar numa outra uma possível explicação para a infeliz expressão cuja discussão aqui nos ocupa: “As mulheres submentam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher (…)”.

As Relações Sociais Como Objetivo Primeiro das Cartas

2.4.1. As Relações Sociais como Objetivo Primeiro das Cartas

As Epístolas destinavam-se a ser lidas perante a assembleia durante atos de culto evidentemente destinados a adultos e jovens a caminho da independência. Não é, na verdade, concebível esperar que mensagens como “Filhos, obedecei a vossos pais” (Ef 6-1) se destinassem a crianças ou a adolescentes de tenra idade inevitavelmente ausentes do ato de verdadeira temeridade que, em ambiente fortemente adverso, era a participação nessas proibidas reuniões; e que, além do mais, não teriam, ainda, maturidade para entender e apreender a essência daquilo que as Cartas pretenderiam transmitir.

Cumpre, assim, concluir que a dita exortação à obediência filial não visava, propriamente, a obediência de crianças no ambiente do lar onde, encorajadas por oportuno corretivo, seriam facilmente impedidas de se portar mal: a exortação à obediência – essencial à manutenção de um bom ordenamento social ao qual sempre será essencial o conselho dos mais velhos - tinha como destinatários os filhos menos jovens e os já adultos, cujo respeito e obediência não poderiam ser impostos, apenas  promovidos pelo convite e pela persuasão.

Na mesma linha, se tornaria desnecessária e inane a exortação à submissão das mulheres se fosse entendido – como agora parece haver quem queira supor – que ela poderia ser imposta pela força física no seio da família: àquilo que é imposto pela força, será estúpido e inútil continuar a convidar.

Aparece, assim, a referência à submissão mais como um convite a um ato maduro, voluntário e unilateral, por parte da mulher, de aceitação da orientação do marido, baseada no reconhecimento de um mais lato conhecimento da vida por parte dele, do que como um supérfluo e inútil convite ao conformismo submisso com uma situação consumada à qual as consortes não pudessem escapar

Tal como no caso dos conselhos aos filhos mais velhos, essa atitude recomendada às esposas extravasaria, naturalmente, o comportamento nas quatro paredes do lar, assim assumindo relevante papel na génese da nova sociedade que se pretenderia edificar.

Estaríamos, desta forma, na Carta aos Efésios muito mais perante um código de conduta social do que a tratar de normas de relacionamento estritamente familiar.


2.4.2. A Motivação Escondida na Polémica Passagem

Nenhum país, por mais tirânico, por mais numerosas equipadas e treinadas que sejam as suas forças militares e de segurança, alguma vez conseguirá fazer cumprir a lei e manter a ordem a não ser, antes de mais, graças ao temor do castigo que, numa vida depois da morte - que poucos se atrevem a, absolutamente, negar - sobre cada um poderá cair no caso de passar a vida terrena a prevaricar.

As igrejas – por isso mesmo habitualmente ajudadas financeiramente pelos estados - são, pois, indispensáveis como garante primeiro da estabilidade e da paz, atuando as referidas forças da ordem como instrumentos de natureza complementar, já que, sem o temor do que poderá vir depois da morte, não haveria quem controlasse as forças da ordem nem orçamento do Estado para, em quantidade suficiente de efetivos, as contratar.

Combate à Dissolução de Costumes
Exceção a esta regra não é, decididamente, a Igreja Católica, mesmo nos seus primeiros tempos, não sendo imaginável que fosse possível implementar os seus ditames e princípios no quadro caótico de dissolução de costumes de que Roma era, à época, apanágio.

Ora, é, precisamente, do combate a essa dissolução de costumes que a Carta aos Efésios vem ocupar-se, não sendo aceitável a lacuna hermenêutica de qualquer abordagem que a não contemple, sobretudo quando é o próprio Autor que expressamente o declara (Ef 1, 14-19), seja ele quem for.

Juntando a isto o que em 2.4.1 foi dito quanto a serem as relações sociais aquilo que, com as epistolares exortações, se pretendia normalizar, a ideia de as mulheres se submeterem às orientações dos maridos e de, como corolário, estes amarem as suas mulheres parece muito mais provavelmente associada a uma intenção inequívoca, porquanto tácita, de apelar à fidelidade de umas e de outros, fidelidade essa já então, como hoje, obviamente basilar na construção e preservação do modelo estável de sociedade sem o qual a mensagem cristã será, em qualquer tempo, impossível de vivenciar.

Também a ideia de fidelidade estará na base do pedido de que os maridos amem as suas mulheres, pedido que faz, aliás, tão pouco sentido como a promessa de uns e outros se amarem, mutuamente, que é pedida a quem nos nossos dias se casa. É que, sendo o amor um sentimento, e não um ato de vontade, não é algo que se possa impor ou pedir, antes uma emanação do espírito com a qual nenhum humano alguma vez se poderá comprometer: ama-se e deixa de se amar, sem que tal possa ser entendido como quebra de uma promessa de cumprimento à partida humanamente impossível de assegurar.

Submetei-vos, amai-vos, ou melhor, sede fiéis no interesse da sociedade que procuramos construir, parece, assim, ser tudo quanto, na rebuscada linguagem litúrgica, Saulo de Tarso ou alguém por ele pretendia transmitir; e vós, todos, “sede submissos uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5, 21), ou depressa não vai haver quem tenha mão nisto - como, nos nossos dias, cada vez mais parece que já não há.


2.4.3. Alquimia

O problema que subjaz a toda esta discussão é o de que, como escreveu um filósofo, psicanalista e sociólogo contemporâneo, “a maior parte das pessoas vê no problema do amor, em primeiro lugar, o problema de ser amado, e não o problema da própria capacidade de amar”.

Por outras palavras, as pessoas juntam-se, casam-se como um meio para alcançar a própria felicidade, e não para, por amor, tudo fazerem para proporcionar a do outro. Não é que não queiram ver o outro feliz – sobretudo porque é um grande frete viver com alguém que o não é… -, mas querem ver o outro feliz apenas se não tiverem de mexer uma palha para o conseguir.

Esposas: Sede Submissas!
Será isto o chamado amor? Sem submissão – sim, lido hoje, o termo não é feliz -, sem entrega mútua e voluntária, como lá chegar, à tal felicidade, ou amor, ou o que queiram chamar-lhe? Como construir algo em conjunto se o que importa, antes de mais, é cada um usufruir, curtir? O impacto social desta distorcida visão mede-se, facilmente pela absurda quantidade de divórcios - quantos por infidelidade.. - que, excluindo os anos da pandemia, não para de aumentar…

A alquimia do amor é, bem pelo contrário, a entrega mútua; e é, muito provavelmente, à submissão, à entrega voluntária de cada um no que diz especificamente respeito aos sacrifícios, por vezes enormes, a fazer para, em todas as ocasiões nos mantermos fiéis - como tanto importa ao conjunto de todos nós - que o autor da Carta aos Efésios se refere ao falar do amor dos maridos e da submissão das mulheres.

Tudo o mais que se diga poderá fazer tão pouco sentido como pretender que a Carta diz que uma mulher se deve submeter a um marido que, pela força bruta, a domina – ou vice-versa… -, ou que alguma igreja ou estado tem o direito de exigir, a quem quer que seja, que prometa, para sempre, amar alguém.

 

2.4.4. Valorização

Independentemente do sexo, a valorização do ser humano enquanto tal nasce e desenvolve-se, não a partir dos atributos físicos, como acontecia com os maridos ao tempo em que foram escritas as Epístolas, mas do estudo, da reflexão, do massajar das meninges, seja qual for a área de interesse da predileção de cada um.

Isto é válido no século XXI, tal como era válido então.

Por tal razão, há que entender que a força bruta dos maridos de então valorizava-os tanto quanto atualmente mulheres e homens são valorizados pela exibição patega da riqueza material, da supremacia corporal, dos bíceps trabalhados, dos glúteos tonificados, dos seios enchumaçados, da última moda de panos e berloques e da superior capacidade de enfiar uma bola minúscula numa baliza enorme, à custa de muita pisadela, de muita canelada, de muito palavrão.

Todos estes atributos e outros como eles não despertam o amor verdadeiro, apenas paixões levianas e efémeras em pessoas a eles sensíveis, depois à infidelidade, à separação, ao divórcio e, no fim da lista, à ainda mais indesejável desestabilização social.

Quem Não Tem Espírito
Quem tem falta de espírito enfeita o corpo, e tem todo o direito, pois claro. Não venham é, depois, dizer que umas e outros se sentem aviltados ou desconsiderados por trechos saídos da pena de quem viveu num tempo em que, tal como agora, quase só o corpo contava, mas porque, então, o conhecimento e as ideias não tinham veículo capaz de amplamente os disseminar.

Esses veículos existem nos nossos dias - livros, televisões, redes sociais -, mas o que por lá se vê tem interesse muitíssimo reduzido ou nenhum para o que, verdadeiramente, poderá contribuir para as clivagens culturais e os distúrbios sociais atenuar, num ambiente de dissolução de costumes comparável ao da antiga Roma.

Coisas estranhas afixadas por cabeças ocas, para as quais apenas conta o que se vê e o que se compra; gente que inunda as redes sociais com historietas das suas também ocas vidas, as quais intelecto e espiritualidade lhes faltam para preencher.

Era o corpo pela força bruta, antigamente; é, agora, o corpo por aquilo que tem para exibir e que, em lugar de granjear respeito e admiração, apenas serve para rebaixar quem na montra social diariamente se vai pavonear.

 

3. Prática Eclesiástica


3.1. Duas Questões de Legitimidade

Toda esta trapalhada foi motivada, recorde-se, por uma leitura feita no decorrer de uma celebração eucarística transmitida pela Radiotelevisão Portuguesa (RTP) – ou a televisão do Estado, como alguns gostam de lhe chamar.

Não faltou, assim, quem aproveitasse a embalagem para voltar a suscitar a questão da legitimidade dessas transmissões alegando que são pagas pelos impostos de todos nós, ao que as vozes da Igreja retorquiram, como habitualmente, que, sendo a maioria da população católica, existe todo o direito e, até, o dever de a comprazer.

Sabendo-se, porém, que esta maioria é tão verdadeira como é verdadeira a declaração de “católico” aos Censos, a argumentação cai pela base, até porque as igrejas vão estando cada vez mais vazias, e não parece que seja porque os católicos resolveram ficar em casa a ver a missa pela televisão, em vez de nela participa - não obstante as audiências que dizem ser relativamente expressivas, tendo em conta que se trata de Domingo pela manhã.

Instituto Nacional de Estatística
Seja pelo mais elementar receio do que estará para vir - por parte daqueles poucos que ainda se vão lembrando de que um dia irão morrer… -, seja porque foram batizados quase à nascença e, por isso, acham que são “católicos”, a verdade é que a governação do Estado e das suas empresas, como a RTP, deve basear-se em números, na estatística, ou tudo acabaria por fazer ainda menos sentido do que faz; e, sendo os números relativos a ditos católicos o que são, está a posição da Igreja quanto a estas transmissões plenamente segura e legitimada.

Pelo menos, até que a exatidão das declarações aos Censos sejam averiguadas e estes cristãos comecem a ser novamente lançados aos leões, desta vez por prestarem falsas declarações.

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Uma outra questão de legitimidade não pode deixar de ser aqui abordada, mais propriamente a da legitimidade de, nos dias de hoje, passar a mensagem que incita à submissão voluntária e espontânea da mulher perante o marido – o que é substancialmente diferente de incitar ao domínio arbitrário e imposto do marido sobre a mulher.

Quanto a este ponto, o que primeiro há a salientar é que, tratando-se de uma atitude voluntária, apenas interessaria à lei na medida em que pudesse, eventualmente, ser contrária aos bons costumes por aquela protegidos. Não sendo, como não é, o caso, nada obsta a que a Igreja se exprima, quanto a esta matéria como mais lhe agradar.

Do que aqui se trata é da polémica decisão de passar uma mensagem incómoda, maioritariamente condenável na aparência se aplicada à atualidade e não aos tempos da Carta aos Efésios, mas que se encontra no âmbito do mais legítimo direito de qualquer organização definir os pressupostos da sua existência e as normas de conduta que preconiza ou exige para os seus aderentes.

Estamos, também, muito longe da situação resultante de um forte incómodo causado ao cidadão pelo Estado, face ao qual o único recurso fosse a decisão de emigrar, com todo o transtorno que isso implicaria, quantas vezes não apenas para o próprio, mas também para os seus mais diretos familiares.

No caso de uma igreja, quem não estiver satisfeito com o conteúdo da pregação ou com a prática pode, num instante, abandoná-la sem qualquer incómodo semelhante, ainda que remotamente, ao de emigrar.

Resta, pois, concluir que nada obsta, na lei ou na prática social, a que a Igreja continue a mandar ler o tal trecho socialmente proscrito da Epístola, tal como nada obsta a que, quem no seio daquela se não sentir bem, sem qualquer inconveniente vá ouvir outros pregar.

 

Utilidade
3.2. A Questão da Utilidade

Falta, para terminar, refletir um pouco sobre a utilidade – e sobre a verdadeira intenção - de ler, perante as assembleias de fieis, algo tão polémico e retrógrado como estas passagens das Cartas aos Efésios, aos Colocenses e mais uma ou outra que conste do tal calendário dos três em três anos que, independente da conjuntura de cada momento, ninguém parece ter poder para adaptar.

Diga-se, desde já, que a posição episcopal de que “os textos não se mudam, mas educam-se os leitores a entendê-los e a atualizá-los*) mais não plasma do que o incompreensível desconhecimento – apenas aparente, claro – por parte da hierarquia da Igreja Católica do baixíssimo nível intelectual, cultural e, sobretudo, do inexistente dom da palavra por parte de grande parte dos sacerdotes por isso mesmo colocados em pontos remotos, em paróquias de aldeia – e não só… -, alongando-se em homilias desmesuradas e desconexas, que já ninguém ouve, chegando a pontos de, quando o sacerdote começa a perorar, alguns fiéis saírem para fumar um cigarrito ou apanhar um pouco de ar, voltando depois.

Serão oradores deste calibre que irão educar os ouvintes ou os leitores?

Tal pretensão apenas colheria se existisse, na pregação, um nível uniformemente elevado dos educadores, o que não acontece, como bem se sabe, assim não fazendo qualquer sentido – para não ir mais longe… - a referida réplica episcopal.

Por outro lado, a ser o “educam-se” corretamente aplicado na forma reflexa, que capacidade terão para se educar-se, aos próprios, universitários cuja única e remota semelhança com os frutos da universidade pré-Bolonha e pré- outras coisas também parece ser o facto de usarem aquelas vestes negras sem significado que tanto gostam de exibir enquanto aprendem unicamente a empinar e a copiar, relegando os governantes do pelouro da educação para um plano mais do que secundário a vertente educacional e formativa de quem, na maior parte dos casos, em casa a não encontra? De quem nem interpretar sabe nem quer saber o “Filhos, obedecei a vossos pais”?

Esposas na Igreja Católica
Perante a notória e quase absoluta incapacidade de uns interpretarem corretamente e de outros terem quem os eduque na interpretação das escrituras – fenómenos que não podemos, honestamente, pretender que a Igreja Católica continue a ignorar -, haverá que concluir que a insistência em manter na liturgia estes textos aparente crípticos é deliberada, e corresponde à verdadeira convicção social dos sacerdotes e de quem os superintende na Igreja Católica.

Ou, mais simplesmente, como alguém num destes debates que por aí houve sintetizou, que “a Igreja olhapara as mulheres como mãe ou virgem*), revelando-se fundamentais os polémicos trechos de interpretação dúbia Efésios 5:22 e Colocenses 3:18 para, sub-repticiamente, esse entendimento nos levarem a, submissamente, aceitar e defender.

 

4. Conclusão

Em questões socialmente melindrosas, tão imprudentes se revelam as reações a quente baseadas em afloramentos interpretativos à revelia da razão, como a razão pobre de uma repetitiva, oficial, dogmática, confusa, rebuscada e nada convincente interpretação.

Não basta, também, deixar as supostas explicações pela rama, invocando, simplesmente, o desfasamento no tempo e nos hábitos sociais, sem procurar exaustivamente explanar, sem apresentar hipóteses credíveis para a identificação desses hábitos e das razões na
Conclusão
sua génese: deve, pelo contrário, procurar-se assegurar a consistência hermenêutica e a fundamentação racional e objetiva, não repousando enquanto se não encontrar, além do imediato, do óbvio, contributos interpretativos fornecidos pelo autor na introdução e no enquadramento do texto.

A preponderância do conhecimento por parte do marido decorrente da maior atividade social de quem, pela força bruta, mais apto se encontrava, naquele tempo, a assegurar o sustento do lar e a necessidade urgente de normalizar, designadamente no campo da fidelidade conjugal, os hábitos sociais degradados da Roma de então poderão servir os referidos requisitos da fundamentação a ponto de satisfazer intelectualmente boa parte daqueles que sobre o assunto se questionam. Sobretudo numa sociedade hoje supostamente evoluída mas para a qual amar cada mais parece ser amar-se, e não ao outro, a quem, desgraçadamente, até ao divórcio muita coisa ainda se irá ter de aturar.

Da mesma forma que, sem grande incómodo, cada um é livre de decidir se e a que igreja pretende associar-se, cada confissão religiosa é, necessariamente, livre de pregar o que muito bem entender e como muito bem entender, desde que tais ações, ou o seu resultado, ao foro criminal não acabem por interessar.

Fica, não obstante, por explicar a razão verdadeira para a insistência da Igreja Católica em manter no calendário litúrgico leituras que repugnam logo ao primeiro contacto, a maior parte dos ouvintes, fiéis ou não, sabendo-se que a maior parte dessa maior parte ninguém alguma vez conseguirá, de forma convincente, educar, procurando fazer crer que é tudo a fingir, e que a Igreja acredita em algo bem diferente daquilo em que, manifestamente, mais até do que naquele tempo continua a acreditar.

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Passamos por seres inteligentes, sábios, sensatos, superiores?

Mandam, então, hoje como em qualquer tempo, essa inteligência, essa sabedoria, essa sensatez, essa superioridade, que cada um acate e siga a opinião do outro, mulher ou homem, nas áreas que melhor conhece, que melhor domina, nas áreas em que está mais apto a contribuir para um bom resultado, em lugar de procurar fazer prevalecer a decisão absurda de quem do assunto menos sabe ou nem desconfia, apenas porque é assim, porque um livro para alguns sagrado manda, porque uma religião que poucos praticam insiste em impor.

No casal, na família, na escola, no emprego, em qualquer manifestação social, seja onde for.




Afinal, Deus existe mesmo, ou não passa de pura invenção de um ser humano que desespera com a efemeridade da sua existência?

NÃO PERCA uma reflexão lógica, fundamentada, sobre o tema porventura mais elementar e decisivo da vida humana.





A existir um deus, será ele o representado
no teto da Capela Sistina? Jeová? Alá? Manitou?
Ou nenhum destes?

sábado, 21 de agosto de 2021


Talibãs e Talitugas

"Para a semana há reunião da concelhia.
Tenho de mandar lavar o carro novo que parado à porta.
Aquilo é giro, , e tu mereces melhor do qu’ó que tens!
Hádes vir também!"

O medos dos Talibãs

Sozinhos no vazio, sentimos medo.

Quando o vazio somos nós, domina-nos o pânico.

Com o pânico, vem o oportunismo de outros, vazios como nós, mas que têm a vantagem de uma ou outra habilidade a que chamam competência e com a qual se propõem, para nos salvar do avassalador vazio, preencher a nossa vida e, ao mesmo tempo, o ego ou a carteira deles..

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O grande sonho da maior parte de nós é ter dinheiro: muito, mas muito, dinheiro, como se fôssemos um daqueles ídolos que gostam de relaxar na gaiola (perdão, marquise) da cobertura (perdão, da penthouse, que com estas coisas não se brinca…), enquanto contemplam, numa tela (perdão, écran) panorâmica o anúncio em que uma progenitora balbucia, por entre a resplandecente dentadura que não é dela, uma catadupa de sons ininteligíveis num anúncio de uns óculos belíssimos mas tão acessíveis que até podem ser comprados por nós, pobretanas vazios e ridículos, que, em hipnótico desvelo, nos embasbacamos a contemplar riquíssimos pategos não  menos  vazios e ridículos – que, naquilo que importa, pouco ou nada valem -, pela simples razão de terem sido tão bem sucedidos depois de, coitaditos, terem nascido tão pobrezinhos.

Ou como uma qualquer histérica e desbocada milionária que viva do vigor de umas cordas vocais que pareçam apenas vibrar para e com a brejeirice, que se ache maravilhosa e cujo maior sonho da vida seja trepar por cima daqueles empecilhos que a não deixavam brilhar e acabar a mandar neles; e numa coisa grande, assim como, sei lá, uma televisão.

Ou como outros como eles que, não sendo habilidosos na política, o sejam – e de que maneira! – com os milhões dos outros, até ao momento em que nem os bancos, nem as associações desportivas, nem os poderes públicos consigam continuar a olhar para o lado porque alguém se terá descaído e propagou aquele vírus tinhoso, comichoso, chato e incómodo chamado informação.

Se não pudermos ser ricos e famosos como eles, enfim, ao menos termos o dinheirito suficiente para mostrar aos outros palermas que somos mais ricos do que o pai daquele rapaz que é colega do meu e só teve férias num acampamento daquilo lá da escola - não me lembra agora o nome – e ainda queria ser um tipo importante na secção do partido cá do bairro, como eu.

A estes tolos ambiciosos, serve muito bem a miragem do dinheiro ganho ao jogo, em que o bom do bestializado tuga das jolas e dos pistachos baralha, parte, dá e eructa alarvemente quando a vida lhe corre mal; e, ao jogar, fica mais pobre, muito mais pobre, de dinheiro e de intrínseco valor.

O Jogo é uma treta
Outros de nós, com alguns estudos e miolos mas nem por isso menos anestesiados tugas do que os outros, topam logo, matreiros, que isso do jogo é uma treta, e que o que é a gente ir para aquele partido para onde também foi o habilidoso lá do bairro que hoje manda em tanta coisa, veste e come aquilo que quer, tem a casa e o carro pagos, viaja por todo o Mundo, toda a gente conhece, tem motorista e até vai à televisão, enquanto o burro do meu homem o mais que recebe são as ordens do patrão, a troco de uns miseráveis trocos ao fim do mês que lá deram para a consola nova de jogos para o miúdo mas o passe social é, cá em casa, o principal meio de locomoção.

Ou era, porque vieram aí uns senhores com um contrato para assinar e vamos ter um carro daqueles elétricos*) que entregam cá na Sexta-feira*), para irmos, no Sábado, à reunião da concelhia e, depois, ter com aquele primo da Trudes que pinta uns quadros e até nos convidou para… ai! como é aquilo… qualquer coisa que acaba em age… ah!, pois, a inauguração.

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No fim da extensa lista que aqui não teria lugar, há aqueles de nós que não têm dinheiro, não têm miolos, não têm estudos, não acreditam no elevador social da política, não têm o que quer que seja além da enorme vontade de que alguém lhes diga que são alguém. Pelo menos, algo mais do que o outro que mora ao lado e cuja única afinidade connosco é o vazio imenso, o vazio de tudo, um vazio tão grande que não temos dinheiro para preencher com casotas, com ferrares, com trapos, com palmeiras, piscinas e long drinks; só, mesmo, com os pistachos e as jolas. Um vazio tão grande que já nem pode ser preenchido pelas emoções primárias que põem milhões aos urros e à batatada dentro e fora de um estádio de futebol.

A estes de nós, resta a ilusão da transcendência, da elevação daquela ilusão a que chamam espírito, não por qualquer manifestação do mesmo, mas pela sensação de pertença a quem um dia, algures, nos há de compensar de tanto sofrimento, a quem devemos cega obediência, ainda que à custa das maiores atrocidades e violências sobre o próximo, embora sem saber o que essa providencial divindade ao certo quer de nós.

Ou melhor: sabemos porque nos disseram, porque nos disse alguém que fomos ouvir falar naquela reunião prenhe de elementar misticismo e havida num ambiente de paupérrima encenação, em que um chefe religioso de olhos esbugalhados, aura impiedosa e sorriso cínico nos enviou a fazer explodir em bombas uma interpretação espúria e despudoradamente manipulada da mensagem do Além.

A missão consiste em impor, pela força, a mensagem aos resistentes, privando-os das formas mais elementares de liberdade que apenas subsistem nas vidas e nas mentes retrógradas e estúpidas dos alucinados ideólogos e promotores.

Terra atrasada com um punhado de bestas
Para o conseguir, numa terra atrasada e com a voz da maioria emudecida pelas armas de um punhado de bestas, mobilizam eles outras mentes gananciosas e estultas com ocas promessas de imortalidade – ou de, caso adiram, simplesmente os deixarem viver… -, eliminando os mais fracos, cativando os rapazes, espezinhando as mulheres – coisa que, por cá, não há de chocar muito certos magistrados de tribunais superiores que escrevem coisas que nos poderiam levar a pensar que essa coisa de maltratar mulheres é assim mesmo, e até está muito bem*).

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Quando a divindade tornada fera implacável inventada por uma torpe interpretação das escrituras pede com mais força que os bravos alarves aniquilem os detratores daquilo a que chamam fé, os americanos não gostam do exagero não autorizado nas conversações – três mil conterrâneos mortos, caramba, é demais! -  e entram por ali dentro para garantir que os outrora aliados ficam sossegadinhos pelo menos durante um prazo razoável para que aquele disparate do estupor do Bin Laden em Setembro se desvaneça um pouco da memória das dóceis e ditas civilizadas formigas dos States, tão dóceis como as que civilizadas não são - no resto do Mundo, claro.

Enquanto lá estão a aplicar o corretivo, ocupam pela força, impõem as suas regras, libertam… os corpos, apenas os corpos.

Por ser nada mais do que a restrição da liberdade dos corpos, a mudança resultante da ocupação é ilusória e efémera. Os invasores não educam, não procuram aproximar-se, entender, dedicar àqueles que andam naquilo contrariados uma palavra amiga, um diferente olhar, enfim, algo que os afaste do arrepiante caminho que escolheram ou os obrigaram a trilhar (não muito mal comparando, até faz lembrar a recente legislação publicada sobre a alimentação nas escolas cá da terrinha, feita à pressa e que, em lugar de educar, se limita a proibir).

Depois, cansam-se os americanos de esbanjar dólares com a presença militar, os aliados e também fazem contas aos euritos, aquilo já não faz sentido, eles já devem ter aprendido a lição, e… Butes? Bora lá!

Começa, então, a debandada daqueles que acreditaram ter vivido o ideal da liberdade, o maior sonho das suas pobres vidas prestes a acabar pela força, ou a ser brutalmente desalojadas pela fuga num avião de carga americano qualquer, possibilidade única de sobreviver para ir alimentar o mesmo sonho noutra terra também qualquer.

O que os aliados europeus parecem não ter, ainda, entendido é que o impacto causado pelo drama brutal e pungente destes candidatos a refugiados acontece, sobretudo na Europa: ninguém foge para países ainda mais pobres e subjugados por tiranos... ou por terra ou num bote para os riquíssimos Estados Unidos da América. Afinal... America First!

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Por cá, as autárquicas estão aí à porta e, com elas, a vazia e desoladora campanha habitual.

Para a semana há reunião da concelhia.

Tenho de mandar lavar o carro novo que parado à porta.

Aquilo é giro, , e tu mereces melhor do qu’ó que tens!

Hádes vir também!

* *

A par de toda esta triste figura que não passa, afinal, do resultado de uma necessidade quase compulsiva de seguir os ídolos, a moda, continuam estas pessoas a querer passar por originais, diferentes, alguém digo de se contemplar com admiração.

(leia aqui o desenvolvimento)


sábado, 7 de agosto de 2021


Nem mais, nem menos: tal e qual!

Quem, com todo o tempo para refletir, decide, friamente,
pespegar na primeira página uma porcaria destas,
ilusões não deixa quanto ao que efetivamente pensa,
ao que efetivamente sente, e ao que, desgraçadamente,
em futuras capas mostradas nas bancas
não teremos como os olhos deixar de pousar

          1. A “Gaiola Aberta”
          2. Ética? O que É Isso?
          3. A Responsabilidade Mediática Permanente de quem Representa a República
          4. A Ética Jornalística de Um Defunto Ressuscitado
          5. O Importante Papel Social de Leitores e Anunciantes
          6. Quem Não Quer Ser Lobo…

A eterna gaiola aberta da nossa juventude
1. A “Gaiola Aberta”

Existem diversas definições para pasquim. A Infopedia*), por exemplo, adota:

1. escrito afixado em lugar público com expressões injuriosas ao governo ou pessoa constituída em autoridade
2. panfleto difamatório
3. figurado jornal que publica calúnias e artigos difamatórios
4. pejorativo jornal de pouca qualidade

Faz-me isto recordar os meus tempos há muito idos em que por aí circulava um então bem conhecido pasquim, desengraçado, mas supostamente humorístico.

Além de uma ou outra imagem ou trecho em que o Autor lá tinha algum sucesso no seu estranho propósito de fazer gente adulta rir com vontade de coisas com piada nenhuma, aquilo não passava de um desfile de ordinarice da mais rasca, da mais reles, por vezes cruel.

Em nada diferia, diga-se, das ordinarices desoladoramente desengraçadas com que um cada vez maior e mais medíocre rebanho ansioso de protagonismo fácil junto de semelhantes seus vai, ao que me dizem, contaminando certas redes ditas sociais que, afinal e com mais ou menos melaço, muitas vezes não passam, em lugar de redes, de ratoeiras, de eficazes armadilhas destinadas a capturar os espíritos mais simples e às quais, nos nossos dias, não é fácil escapar.

Garantiam a sobrevivência do tal pasquim idiotas como o idiota que aqui escreve e também, de longe a longe, a lia. Na recém-libertada mocidade de então, acabávamos por comprar aquilo porque a "Gaiola Aberta" – assim se chamava a publicação - era, quiçá, o mais evidente sinal da libertação do jugo da censura que, por tantos e tantos anos, o anterior regime ditatorial impôs a quem apenas pretendia livremente escrever e ler, falar e ouvir: nesse tempo, seria impensável abrir a gaiola - ou sair do armário -, fosse quem fosse que lá não quisesse estar.

Era, até, impensável deixar sair as ideias de quem apenas pretendia sorrir, sonhar.

Assumidamente, a Gaiola era um periódico sem qualquer conteúdo jornalístico: era um pasquim! Apenas um pasquim.

Nem mais, nem menos: tal e qual!

2. Ética? O que É Isso?

Ética: o que é?
Numa altura em que os números da COVID já enjoam, em que
o Governo foi de férias e na falta de catástrofes e de escândalos suficientemente rentáveis para que deles valha a pena falar, resta, para assegurar o ganha-pão dos órgãos de comunicação, a luta política de segunda linha, contaminada pela eterna e incurável ânsia de cada um ver os ídolos do seu partido ganhar - sentimento muito próprio da população que temos, maioritariamente hipnotizada pela futilidade das redes sociais e do futebol, e em grande parte tão vazia de intelecto e de espiritualidade como uma dessas pobres bolas que os ricos futebolistas não cessam de martirizar.

No futebol, chuta-se impiedosamente a bola com o intuito principal – ou único, nos dias que correm - de ganhar dinheiro, muito dinheiro mesmo, desvalorizando-se, para que a coisa renda, os tão nocivos efeitos sociais colaterais dessa cada vez mais induzida ânsia de sucesso a todo o custo, efeitos esses bem patentes aos olhos de quem os quiser ver, como o de só pensar na vitória desportiva, profissional, política ou social, a qualquer preço, e por quaisquer meios necessários a atingir tão glorioso fim: ser, na ordem social, Alguém; com maiúscula, claro!

Por outras palavras: pavonear-se.

Desta forma, aquilo a que outrora se chamava a virilidade do futebol rapidamente degenerou numa crescente profusão de faltas ad hominem no campo e fora dele, que nem os cartões encarnados, os jogos de suspensão, os processos de inquérito e as prisões domiciliárias ou preventivas conseguem, já, eficazmente travar; e aquilo a que nos referíamos como combate político leal - frente a frente, olhos nos olhos -, do carril da ética acabou, inexorável e irremediavelmente, por descarrilar.

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A divulgação, nas redes sociais, de um pequeno filme em que aparece, fortemente etilizado, como que a abanar ao vento em plena rua, um destacado representante de Portugal no mais alto órgãolegislativo da Comunidade Europeia*), talvez não seja, contrariamente ao que por aí se entende e o próprio diz, uma violação da vida privada desse cidadão: a inoportuna manifestação dos vapores do álcool aconteceu na via pública e por ação do próprio, que nesse estado nela se mostrou a quem o quisesse ver, razão pela qual nenhuma prévia expetativa de privacidade, nessas circunstâncias, poderia ter.

Foi sem querer
Há quem contraponha que a exposição não foi voluntária, antes devida a um estado de alguma inconsciência decorrente de um acidentalmente abusivo consumo de bebidas alcoólicas. Porém, aos olhos da lei e do mais elementar senso comum tal argumento não colhe, dado que, ao que se sabe, ninguém o obrigou a beber.

Se qualquer condutor pudesse defender-se dizendo “foi sem querer”, ninguém iria para a cadeia por conduzir com um grão na asa; ou, neste caso… com um melão.

Por outro lado, atento o direito que qualquer um tem de ponderar, no momento de votar, se o faz, ou não, num eleito que foi visto no estado que sabemos, é difícil entender como pode alguém pensar que a divulgação das imagens não é de interesse público*); e pouco importa quantos assistiram à cena ao vivo e a cores, já que, mesmo sem filme, estas coisas andam de ouvido em ouvido com tanta facilidade como as pombinhas da Catrina andam de mão em mão.


3. A Responsabilidade Mediática Permanente de Quem Representa a República

Ninguém é obrigado a ocupar lugares em órgãos legislativos ou da governação. Se o faz, há que saber comportar-se com a dignidade esperada por quem o elegeu para a função; e estar ciente de que, embora não trabalhe vinte e quatro horas por dia, é, durante as vinte e quatro horas do dia, o português investido nessa obrigação, assim estando vinculado a cuidar de uma reputação que, por ser ele quem é, inevitavelmente repercute os impactos por ela eventualmente sofridos em toda a população.

Mesmo não ocupando qualquer cargo, todos devemos ter em conta que, como alguém já escreveu, “a vida consiste em vários fatores importantes e fundamentais, entre os quais se encontra o decente e inteligente domínio dos apetites que partilhamos com os cães. O homem não uiva do alto de um outeiro, de manhã à noite, nem tritura com voracidade os alimentos que lhe atiram. Come alimentos bem confecionados, quando os pode obter, e satisfaz os seus anseios consoante lhe indica a prudência”.

Pode, pois, sem exagero, dizer-se que o pequeno filme transmite um espetáculo degradante, uma tenebrosa imagem do País veiculada por alguém que, mais do que muitos, foi mandatado, contratado e é principescamente pago para a dignificar.

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Joalharia dos famosos e poderosos
Não obstante, trata-se, também de uma situação na qual, em tese, nesta desolada sociedade qualquer ser humano está sujeito a cair: até aqueles imaculados que passam, na Internet e não só por lá, o seu miserável tempo a maldizer tudo e todos relativamente a coisas que também eles fazem, tendo, embora, artes de evitar que se saiba - ou, no caso dos ditos famosos ou poderosos, de, mais ou menos rapidamente, fazer esquecer ou abafar, caso algum prestimoso assessor de imagem disponibilize essa solução.

Mas o que talvez mais choque da parte de quem pôs o triste filme a circular é a premeditação da decisão de o conservar anos a fio, à espera da oportunidade perfeita para, causando o maior dano possível às aspirações políticas do visado, o divulgar.

Tamanha frieza, tão implacável premeditação, apenas se entende no quadro de uma luta pelo poder hoje travada sem quartel sem ética, sem grande coisa além do fedor a lixo que habitualmente a caracteriza.

 

4. A Ética Jornalística de Um Defunto Ressuscitado

Mudando completamente de assunto… há que dizer que, por muito fraca que possa ser a qualidade de determinada publicação, por muito execrável que possam ser os propósitos ou as ideias que impulsionam a divulgação deste ou daquele conteúdo, a pretensão de um pasquim se considerar parte da imprensa escrita de modo nenhum belisca a dignidade e o prestígio da profissão jornalística.

Afinal, a prensa da tipografia imprimia no papel qualquer escrito com que lá se o quisesse esborratar, da mesma forma que a impressora dos nossos dias não apenas reproduz as letras que um jornalista digno desse título produz, não se negando, também, a dar corpo a títulos e capas mais ou menos tonitruantes que qualquer alarve para lá queira mandar.

Qualquer um tem, pois, direito a imprimir o que bem lhe aprouver, desde não torne público o que não deve, como notícias ou declarações falsas ou ofensivas da dignidade de outrem, sobretudo, neste último caso, quando, tal como em certas faltas do futebol, a divulgação apenas visa atingir o indivíduo, sem qualquer interesse ou finalidade digna do ponto de vista social.

Não digam mal de nós
Para que o esforço de um desses alarves da imprensa lhe sirva para alguma coisa, não basta recitar a cantilena estafada de que “não importa o que digam de nós, importa é que falem de nós”: quando o espírito de missão definha e se escarnece do impacto social, o que verdadeiramente resta é garantir que o resultado do desmando tenha, pelo menos, qualidade suficiente para lhe assegurar receitas; e isso torna-se difícil em tentativas de ressuscitação de mamutes há muito enterrados, apenas visando, aparentemente, a glorificação narcísica e saudosística de quem bem menos danos à sociedade causaria se ficasse a saborear a reforma e a ver o tempo passar.

Tudo isto, sem falar no pequeno problema de a decisão de voltar a dar vida a um representante da imprensa escrita há muito amortalhado ser tarefa à partida economicamente inviável - um mamute não tem graça -, que nem valerá muito a pena tentar. Sobretudo no Verão, em que a cabeça dos editores parece que, de tanto procurar notícias de que valha a pena falar, mais cedo ou mais tarde acabará por estourar.

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Ressurgiu, há semanas, na imprensa portuguesa, uma publicação em papel que, logo no primeiro número, até quem lá escreve afirma ser estranha e que pretenderia, ao que parece, dinamizar a imprensa escrita em Portugal.

Vá lá saber-se porquê, acabou por nascer às portas do Verão, a tal altura em que, no defeso da bola, sobre outros assuntos só mesmo um grande alarido consegue tirar os Portugueses da água ou levá-los a, entreabrindo primeiro um olho, depois ou outro, interromper a sestazinha na esplanada enquanto destilam uma bem acompanhada caneca ou imperial.

Talvez por isso mesmo, ainda o renascido mamute andava de cueiros, logo uma capa absolutamente despropositada e jornalisticamente arrepiante veio, a troco de uns trocos nas tabacarias e de mais uma ou outra tão necessária quanto modesta fatura de publicidade, irreversivelmente minar quaisquer pretensões de qualidade e imparcialidade de quem foi uma publicação pioneira no género e outrora respeitada, até pela distinção que então se reconhecia a fundadores e colaboradores – alguns dos quais ainda por lá andam, o que não deixa de tornar ainda mais surpreendente tão tenebrosa evolução.

A badalada capa alardeava, nem mais, nem menos, do que a existência do tal pequeno filme sobre o andar periclitante do tal deputado europeu, obtido nas circunstâncias que se conhece, o que, por si só, sugere grande dificuldade em encontrar temas interessantes, bem como fontes fidedignas que com o dito jornal ainda aceitem colaborar.

Gente que sai do armário
Vai, todavia, mais longe, o jornaleco: a pretexto – assaz conveniente e oportuno, aliás - de guerras de sucessão e quase de secessão no partido do visado, afirma que os seus adversários políticos internos querem vê-lo “a sair do armário”, num claro e despropositado aproveitamento da lastimável exibição por ele protagonizada para gritar aos quatro ventos uma sua eventual homossexualidade.

A não ser do vil metal, a troco de quê? Seguindo que critério jornalístico?

Com que ganho social?

Além de todos os epítetos que a decisão de publicar tal capa me merece, a associação torpe e indesculpável de um momentâneo, porquanto condenável, passo em falso à orientação sexual do embriagado é, além de tirada a ferros, também desinteressante, ilógica, inexistente: não passa de uma manobra rasteira com objetivos que não será difícil descortinar, além de ser, esta sim, uma inaceitável intrusão no mais íntimo da vida privada de alguém que sobre ela tem sabido manter a reserva e o decoro – mérito que a alguns dos seus maiores críticos se não poderá, talvez, associar.


5. O Importante Papel Social de Leitores e Anunciantes

Nos tempos do anterior regime, não se falava porque não se podia falar. Agora, fala-se demais porque o Estado diz não ter como controlar.

Claro que a censura prévia é uma perversão do jornalismo e, possivelmente, a negação maior da democracia. Mas tal não legitima que alguém se distraia do dever de, independentemente da existência ou não de ilícito criminal, depois da publicação de uma capa como esta os seus autores e editores responsabilizar.

Não basta, contudo, que outros políticos venham, supostamente consternados e solidários, alardear veementescondenações de demonstrações de vileza deste jaez*): a sociedade civil tem a obrigação de, em termos efetivos, condenar e procurar neutralizar comportamentos como este – embora não necessariamente perdendo as estribeiras e formulando apreciações injuriosas acerca das mães dos palermas que aparecem aqui a dizer que até não gostam muito dele mas não gostam do vídeo”, e especificando, com todas as letras onde o apoio dispensado devem enfiar*), o que sugere que, qual infeção por vírus, esta coisa dos descontrolos tende a alastrar.

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Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele
Ora, por razões sobejamente conhecidas e relacionadas com uns quantos pategos que por aí circulam com cauções penduradas à cinta e ar de quem sabe que, judicialmente falando, nada de mal lhes irá acontecer, fala-se cada vez mais da distinção entre empresários bons e empresários maus; fala-se, como sempre se gostou de falar, do papel social dos empresários que são bons e daqueles que, vendo bem, talvez não sejam assim tão maus.

Acontece, todavia, que, parafraseando alguém, não é possível viver em dois mundos diferentes: para se viver legalmente é necessário aceitar os códigos e a ética. Se quisermos viver numa selva caótica, teremos de pagar caro pela escolha. Depende de nós.

Assim sendo, quem, em presença de capas destas, optar por continuar a dar dinheiro a troco de anúncios a quem no-las impinge sujeita-se a ser desses que terão de pagar caro pela escolha, uma vez que se torna solidariamente responsável pelo que mais dali vier, já que, ao contratar publicidade, está a assegurar a viabilidade comercial de quem, sem tais receitas, não teria como continuar para aí a dizer mal.

Não se alegue, pois, que nada se pode fazer por não haver censura prévia: a censura do mercado, seja do lado das empresas anunciantes, seja do lado do público comprador dos jornais, é, sempre será, o maior garante da qualidade, do rigor e da moralidade do que lemos e ouvimos nos meios de comunicação, bem como um forte incentivo à hombridade e idoneidade de quem com estes colabora em funções jornalísticas, editoriais ou de direção.

6. Quem Não Quer Ser Lobo…

A divulgação, por uma criatura maldosa, do filme na Internet pode, no limite dos limites, entender-se – mas, nunca, aceitar-se – dada a proximidade das eleições internas no partido político do visado às quais, presumivelmente ele irá candidatar-se.

Mas a que propósito sai do prelo - e do nada - a publicação de uma tal capa? Que utilidade para a generalidade dos leitores em férias terá uma aparição tal?

Não deixa de ser verdade que uma publicação não pode ser avaliada, e muito menos julgada, por uma simples capa. Mas não é menos verdade que, sobre o que se publica ou não, há muito tempo antes para pensar; e que, quem, com todo o tempo para refletir, deliberadamente pespega na primeira página uma porcaria destas, ilusões não deixa quanto ao que efetivamente pensa, ao que efetivamente sente, e ao que, desgraçadamente, em futuras capas mostradas nas bancas não teremos como os olhos deixar de pousar.

O que vai dentro do jornal e na última página, só lê quem quer.

A mensagem na capa, em letras garrafais, não temos a liberdade de ignorar, por, simplesmente, não termos como para ela deixar de olhar.

Porque está em parangonas. Porque está lá para impressionar.

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Esclareça-se que, do que dela conheço, a pessoa visada me não merece particular simpatia, uma vez que admiro a vivacidade no debate televisivo apenas quando não resvala, recorrentemente, para um protagonismo exagerado ou para a emotividade excessiva e esganiçada, que sempre acabam por se revelar formas de apresentar ideias seriamente comprometedoras da correta perceção do conteúdo.

Assim, ao condenar a perseguição discriminatória e estupidamente abusiva de que foi vítima, não estou a insurgir-me contra o ataque a este ou àquele, antes contra o aproveitamento abjeto de situações sem interesse jornalístico, promovido por gente que, a meus olhos, de jornalista demonstra ter muito pouco, antes se me afigura ambiciosa, oportunista e vaidosa, desprovida de ideal.

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Honra lhe seja feita, a “Gaiola Aberta” sempre foi um pasquim, e nunca quis passar por outra coisa.

Nem mais, nem menos: tal e qual!