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sábado, 4 de setembro de 2021


Dezenas de Milhar ou Dezenas de Milhares?

"Resta lembrar àqueles que defendem a utilização generalizada
do plural 
dezenas de milhares como se fossem dezenas de laranjas,
de castanhas ou de outra coisa qualquer, que, no singular de 
dezenas de laranjas,
nunca eles utilizariam a expressão 'uma 
dezena de laranja'
, sem ‘s’ –
quanto mais não seja para que deles se não risse quem os estivesse a escutar
"


          1. Introdução
          2. Classificação Gramatical de Dezena de Milhar
          3. Formação do Plural das Locuções Substantivas
          4. Esticando a Corda, para Tentar Agradar
          5. Notas Finais


O erro do há-des ou hádes é menos importante que o plural de dezena de milhar

1. Introdução

Como em tudo o resto, nestas coisas da língua portuguesa, existem assuntos de maior gravidade do que outros - e outros ainda, como o caso do há-des, ou hádes ou lá como se escreve, sobre os quais, de tão básicos, nem valerá muito a pena elaborar.

Não vale a pena, pelo menos para já, uma vez que, da maneira como o facilitismo vem grassando, não tardará muito que surja alguém ansioso por encontrar matéria nova para os livros que por aí sobre gramática se continua a escrever quase sempre sem fundamentar, e comece a dizer que há-des ou hádes é uma forma corretíssima ou, pelo menos, perfeitamente aceitável da segunda pessoa do singular do presente do indicativo do verbo haver. 

- x -

Os temas relacionados com a própria estrutura da  língua e relativamente aos quais é possível encontrar raciocínios e bases teóricas lógicas alternativas e mais sustentadas – casos, por exemplo, do “por que? ou porque?, do “vende-se ou vendem-se e do “limpo ou limpado, que já referi nestas páginas – serão, porventura, os que maior atenção requerem, não apenas pelo efeito pernicioso que sobre a evolução do idioma vão exercendo de forma incontrolável, mas, até, devido às deturpações da verdade histórica que é possível encontrar nos escritos de certos defensores do dificilmente defensável, empresa  essa que, invariavelmente, fica por fundamentar, ou se limita à brilhante conclusão de que, afinal… “Tanto faz!.

No entanto, e não sendo estruturantes na medida em que se referem, simplesmente, à aplicação de uma ou de outra regra gramatical a determinada situação pontual, temos, num nível intermédio, aquelas questões que não deixam de gerar, no momento de nos exprimirmos, dúvida por vezes séria  e suscetível de provocar, na fala, notória  e indesejável hesitação.

Será, pois, sempre útil dirimir essas aparentemente menos nobres questões, entre as quais encontramos a eterna dúvida quanto à utilização do plural de dezena de milhar – ou de centena de milhar.

O tema é tanto mais premente quanto é certo que me parecem irremediavelmente erradas certas posições assumidas de forma mais do que elementar em programas ou sítios com responsabilidades didáticas*); ou, tão mau ou pior ainda, porque, num mesmo sítio da Internet supostamente destinado ao esclarecimento de dúvidas da língua portuguesa, é possível encontrar posições diametralmente opostas, como aqui*) aqui*), denotando a fraca fiabilidade da iniciativa e sugerindo que lá não havia o cuidado de moderar as publicações, no tempo em que tinha atividade.


2. Classificação Gramatical de Dezena de Milhar

Dezena de milhar é uma locução substantiva
Dezena de milhar é, no sistema de numeração decimal, uma ordem da classe dos milhares*) que significa dez mil unidades de alguma coisa.

Nem mais, nem menos: dez exatos milhares.

Gramaticalmente, dezena de milhar é uma locução substantiva, ou seja, uma sequência – neste caso, de três palavras, dois substantivos (dezena e milhar) ligados por preposição (de) - à qual é atribuído o valor de um único substantivo.

Tempos houve em que os diversos termos das locuções substantivas eram unidos por hífen, mas essa prática caiu em desuso, tendo em algumas vezes dado origem a um único substantivo (áudio-visual > audiovisual) ou a uma locução substantiva (dezena-de-milhar > dezena de milhar), sendo, também, de considerar formas mistas (a-pesar-de > apesar de). (Diga-se, entre parênteses, que, porque apenas aqui nos ocupa a formação do plural, a qual obedece, em qualquer caso, à mesma regra, passaremos ao lado da discussão, de índole meramente classificativa, entre os que preferem a designação substantivo composto e os que preferem locução substantiva, encontrando, até, diferenças estruturais efetivas entre eles)

Num caso bem diferente do da locução substantiva dezena de milhar, quando falamos de uma dezena de laranjas não estamos a referir-nos a uma ordem do sistema decimal: neste caso, a ordem é a dezena (de unidades), e dezena é, também, o substantivo simples (único) que, independentemente da classificação sintática, opera na frase, sendo laranjas um simples complemento nominal - que é, como se sabe, o termo da oração ligado por preposição a um nome (dezena) que, sem tal complemento, careceria de sentido.

A ordem do sistema decimal em causa é, no caso das laranjas, designada pelo substantivo simples dezena, e não por uma indivisível locução substantiva, ou seja: temos dezena, e temos laranja, não existindo qualquer ordem numérica designada por dezena de laranja, como não existem as ordens quilo de farinha, ou grosa de prego ou dúzia de rebuçado, no sistema decimal.


3. Formação do Plural das Locuções Substantivas

Ora, como é sabido, o plural das locuções substantivas é formado precisamente da mesma forma que o dos substantivos simples e, nos casos em que o primeiro e o último são substantivos separados por preposição - como acontece em dezena de milhar - afeta, unicamente, o primeiro termo da expressão (dezenas), mantendo-se o último no singular (milhar).

A assim não acontecer teríamos plurais estapafúrdios como salas de jantares, canas de açúcares, pães de lós, anjos das guardas, cães de guardas, jardins de infâncias, luas de méis, pés de cabras, árbitros de futebóis ou… dezenas de milhares, sendo o último tão ridículo e descabido como qualquer dos que o antecedem.

Como formar o plural das locuções substantivasResta, pois, concluir que o plural da ordem do sistema decimal dezena de milhar, gramaticalmente uma locução substantiva, não é, como muito por aí se diz, dezenas de milhares, mas dezenas de milhar.


4. Esticando a Corda, para Tentar Agradar

Já que, também nestas coisas da gramática, nunca é conveniente deixar pontas soltas, consideremos um cenário imaginário, que utilizaremos para tentar comprazer quem discorda da acima anunciada conclusão.

Pensemos, a título de exemplo, num carregamento de contentores de castanhas contendo, cada um deles, o peso exato de duzentos quilogramas do fruto – exemplo meramente académico, já que, dada a dimensão de cada castanha e o peso variável entre cada uma, um valor exato sempre seria praticamente impossível de obter.

O nosso carregamento seria de uns quarenta contentores, e aos duzentos quilogramas de cada um deles, corresponderiam, como é evidente, alguns milhares de castanhas, necessariamente em número indeterminado.

Sendo desconhecida a quantidade exata de milhares de castanhas contidas em cada saco, não poderíamos, evidentemente, referir-nos a eles utilizando um múltiplo definido a ordem decimal dezena de milhar - cinco, dez - o que, por exprimir ela uma grandeza precisa, apenas seria correto se cada saco contivesse castanhas em quantidade exata conhecida e múltipla de dez mil, o que, como vimos, não pode, razoavelmente, esperar-se que aconteça.

Todavia, se, por alguma razão tão estranha quanto este raciocínio é rebuscado, em vez de quilos, quiséssemos referir-nos a castanhas, poderíamos então, sem chocar muito, dizer que o carregamento era composto por dezenas de contentores, cada um com vários milhares - indeterminados - de castanhas; ou, mais simplesmente, que, de castanhas havia dezenas de milhares, embora se não soubesse, ao certo, quantas.

Em casos de quantidades indefinidas como este, em que uma quantificação exata é absolutamente impossível, seriam, forçando bastante a nota, admissíveis os plurais dos substantivos dezena e milhar ligados pela preposição de; ou seja, a utilização do substantivo dezenas seguido do complemento nominal de milhares, do que resultariam as tais dezenas de milhares.

Ocorre, porém, que, apesar disso, sempre seria mais correto, mais puro, dizer que as castanhas eram aos milhares, ou… às dezenas de milhar, assim exprimindo uma quantidade indefinida, é certo, mas de uma grandeza exata, que nestas coisas da fala e da escrita, como noutras da vida, nada se perde e muito se ganha em não deixar as coisas para aí ao acaso de como cada um as quiser ou puder interpretar; e, sendo a forma dezenas de milhar mais económica e mais precisa, a outra, ainda que se insista em defender a sua admissibilidade, resulta, inevitavelmente, inútil e, também por isso, será de rejeitar.


5. Notas Finais
A confusão das incorreções gramaticais

Resta lembrar àqueles que defendem a utilização generalizada do plural dezenas de milhares como se fossem dezenas de laranjas, de castanhas ou de outra coisa qualquer, que, no singular de dezenas de laranjas, nunca eles utilizariam a expressão 'uma dezena de laranja', sem ‘s’ – quanto mais não seja para que deles se não risse quem os estivesse a escutar.

No singular, falam de 'uma dezena de laranjas', mas não dizem uma dezena de milhares, antes designam a ordem numérica, dizendo... 'uma dezena de milhar'; sem 'es', denotando, no raciocínio, absoluta falta de coerência, inevitavelmente conducente à invalidade da conclusão.

Tal diferenciação estabelece, para além de qualquer dúvida razoável, não estarem a utilizar um substantivo simples seguido de complemento nominal, mas sim a ordem do sistema decimal dezena de milhar, cujo plural em português correto não poderia deixar de ser… dezenas de milhar.  em 'es', claro!

- x -

A vida é um mistério imenso, provavelmente impossível de decifrar.

Se insistirmos em tentar fazê-lo, teremos de nos habituar a criticar o óbvio, a exercitar a mente, a praticar o que queremos aprender, já que procurar além daquilo que os ouvidos ouvem e os olhos vêem enriquece o espírito e subtrai-nos, por pouco que tal represente, à mediocridade da nossa desoladora Humanidade.

Defender o plural dezenas de milhares parece-me nada mais representar do que consentir em deturpar a língua portuguesa nas suas regras mais basilares, ficando pelo fácil, pelo imediato - pelas laranjas... -, coisa que qualquer um bem pode fazer sem muito ter de se esforçar.

O óbvio é a primeira impressão, a mera espuma da onda da razão, o salpico de explicação que molha qualquer ser, por mais elementar, que do cérebro apenas necessite para o fazer comer e respirar.

A gramática, porém, não é coisa que se agarre à memória. A gramática é, entre tantas outras cada vez mais ignoradas ou desperdiçadas, uma praia de partida para quem quer mergulhar nas profundezas da razão, explorando e desenvolvendo, até ao limite da lógica mais pura e mais isenta, a informação que permite devidamente enquadrar os dados de cada problema apresentado ou apercebido.

Desta forma, a Humanidade evolui, cresce, desenvolve-se, enriquece: não limitando-se a ficar pelo óbvio, pelo fácil, para mais depressa apresentar resultados, fazer o teste na escola, pespegar na Internet mais um paper académico, publicar mais um livro, tudo muito a correr, para mais cedo poder esquecer, curtir, relaxar...

* *

Por falar em quantidades, pode dizer-se que esta questão das dezenas de milhar corresponde a um caso de aplicação muito pontual e específica. Já quando nos perguntamos se um milhão de pessoas foi ou se um milhão de pessoas foram estamos a referir-nos a um tema bem mais vasto, e fonte inesgotável de erros e de imprecisões, mormente por parte de diversos órgãos de comunicação social.

(continua aqui)

A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará



sábado, 12 de junho de 2021


Por que não? Porque não!

"Quando a escrita se altera para acompanhar alterações na linguagem falada,
estamos perante uma evolução; mas, se a escrita muda por si só,
porque nem se foi ver, porque a gramática pouco importa, assim se caminhando
para o desconhecimento generalizado de determinada regra e das outras todas
e das razões que lhes subjazem, somos levados a pensar em indiferença,
em descaso, ou em mera ignorância gramatical
"


   1. O que por Aí Vai
   2. Exemplos de Autores Portugueses
   3. Comparação com Outros Idiomas Europeus
   4. Ao Ler, Como Entoar?
   5. Da Alegada Ausência de Objeto
   6. Uma Lacuna Teórica
   7. Conclusão


1. O que por Aí Vai…

Esclareça-se, antes de mais, que este texto não aborda a forma interrogativa por que? no sentido de por qual? Fazê-lo, nada de útil acrescentaria ao debate, uma vez que, a despeito da aplicação frequentemente errada de porque?, a existência de uma regra que manda utilizar, nestes casos, por que? parece ser, entre quem escreve sobre gramática, consensual.

Limita-se, assim, o âmbito do artigo à expressão da interrogação quanto à razão de ser, à causa do facto, à motivação da ação - que também ora encontramos introduzida por por que?, ora por porque?-, omitindo-se, propositadamente, o tema da formulação de perguntas, quanto à forma, ao modo ou a outra variável àqueles respeitante, que possam ser iniciadas por por qual?

- x -

A Internet é vasta e, em termos práticos, quase infinita, pelo que não tenho a pretensão de, na pesquisa a que procedi, ter consultado, sobre o tema, todas as páginas disponíveis.  Devo, no entanto, afirmar que, entre todos os defensores do porque interrogativo, não encontrei um único que fundamentasse a sua posição no livro de gramática de um conceituado linguista: ou, simplesmente, não citam, ou citam autores a partir de finais do século XX, também cada um dizendo a sua coisa sem qualquer fundamentação lógica que a sustente.

Demonstração maior da confusão que grassa é, precisamente, o facto de cada um classificar o famigerado porque interrogativo a seu bel-prazer: para uns é “conjunção interrogativa porque”, para outros “advérbio interrogativo porque?”;  há também quem lhe chame “pronome interrogativo porque?” e, como imaginação não falta, nem faço ideia do que mais por aí poderá haver.

Também encontrei quem citasse um autor que, num discurso emotivo, pretende não existir em por que? qualquer lógica ou análise viável, por, segundo ele, não se saber a classificação daquele que. Parece ignorar, talvez porque não procurou ou não encontrou, que aquele que não tem existência própria, antes sendo uma das componentes da locução adverbial por que? 1.

Esclarecendo o que diz a gramática1, os pronomes interrogativos são: que, quem, qual, quantos (pp.367).  Porque pode ser conjunção coordenativa explicativa (que, porque, pois, porquanto - pp.595),  conjunção subordinativa causal (porque, pois, porquanto, como [= porque], pois que, por isso que, já que, uma vez que, visto que, visto como, que, etc - pp.600) ou conjunção subordinativa final (para que, a fim de que, porque - pp.601).  Já os advérbios interrogativos são por que? (de causa), onde? (de lugar) como? (de modo) e quando? (de tempo).

Assim estabelecem Celso Cunha e Lindley Cintra duas coisas, que os que estudaram e publicaram antes do pântano de indefinição em que vivemos sabiam também:

a)   que tanto conjunções como advérbios podem ser formados por uma ou mais palavras, assim tornando inane e improdutiva a objeção pela – falsa – impossibilidade de classificação do que em por que?;

b)     que os pronomes também podem assumir a forma de locuções (pp.371);

c)  que por que? é o advérbio interrogativo causal ( por que? ) ou o pronome interrogativo ( que? ) que deve ser empregado em interrogações diretas e indiretas – e não porque?  (pp.557)

Não sou eu que o digo, são dois dos mais lidos, celebrados e consagrados linguistas; e, antecipando alguma objeção baseada na teoria peregrina, que já por aí vi, de que o por que? é a forma utilizada no Brasil, há que dizer que Lindley Cintra era português e que, embora editada a Gramática no Rio de Janeiro, os Autores distinguem os casos em que regras diferentes vigoram em Portugal e no Brasil.  Mas não fazem, neste este caso qualquer diferenciação.

O mesmo acontece, aliás, na edição portuguesa2, na qual porque? é inequivocamente referido como “advérbio interrogativo de causa” (pp.366).

Fontinha3 considera, por seu turno, tratar-se de um pronome interrogativo, sem, todavia, deixar de defender a grafia por que? (pp.90, n.º 204), enquanto, também entre os que defendem a classificação como pronome – neste caso, unicamente do que -. Torrinha4 explica que “os pronomes relativos têm um consequente claro ou oculto; mas, quando oculto, pelo sentido facilmente se subentende” (pp.160, n.º 313).

Esta última posição permite-nos, pois, concluir que, no caso do interrogativo por que? - seja ele pronome ou advérbio – estamos, muito simplesmente, perante um consequente oculto como razão, motivo ou outro, sendo esta a única diferença entre, por exemplo, por que razão? e por que (razão)?, assim não podendo a mera elipse do consequente servir para legitimar uma forma diferenciada porque?. Lembra, ainda, o Autor que “os advérbios dizem-se simples se constam de um só vocábulo; compostos ou locuções adverbiais, se constam de um grupo de palavras a que se pode atribuir o valor dum advérbio” (pp.253, n.º 473), assim respondendo à objeção de quem defende a inexistência de lógica em por que? por não se saber a classificação daquele que.

Já Gomes5, sempre sem unir o por ao que, considera estarmos perante a preposição por e o pronome relativo que no caso de “este é o motivo por que te digo isto”; e, tal como Cunha e Cintra, de um advérbio interrogativo no caso de “diz-me por que não vieste mais cedo” (pp.262), deixando ao porque somente o papel de conjunção subordinativa causal (pp.105).

Ressalvadas as diferenças na classificação, temos assim autores de diferentes épocas do séc.XX a defender a separação do por e do que sempre que empregues na forma interrogativa direta ou indireta, e independentemente da eventual ocultação do consequente.

Voltando aos que defendem o porque? interrogativo – os quais me dispenso de referir, de tantos que são, ultimamente, na Internet e não só, a seguir fielmente uns o que, arbitrariamente, dizem os outros -, até li quem, quiçá por não encontrar uma lógica clara e uma fundamentação precisa, se contentasse em sustentar que numa frase parecida com "porque não vieste?" não há objeto, pelo que a frase implicaria... causa! Mais não fazem do que manifestar aparente incapacidade para ver além do óbvio, designadamente identificando a bem patente elipse do consequente.

Mas que nexo de causalidade poderá existir entre a alegada falta de objeto e a suposta aquisição da componente causal?  E, se uma interrogação visa questionar sobre a causa, como pode pretender-se que a ideia da última não está na primeira, indelevelmente incluída desde a formação da questão?

Adiante revisitarei este assunto.

 


2. Exemplos de Autores Portugueses

Presumir positivamente é grave erro científico, mas, como terá dito um filósofo romano do século II d.C., é impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe.

Ora, curiosamente, os eruditos que, certamente com a melhor das boas vontades, se propõem, em sítios na Internet, esclarecer dúvidas de língua portuguesa a quem as tem, citam exemplos de autores consagrados para a conjunção - afirmativa - porque, mas, que eu tenha encontrado, nunca para o porque? interrogativo cuja existência insistem em defender, assim parecendo presumir que se trata, em ambos os casos, da mesma coisa.  Também isto algum significado há de ter…

O resultado da polémica é que, aparentemente, tanto o por que? como o porque? parecem estar a caminhar para a extinção, já que não são assim tão raros, por essa Internet, textos em que, porventura para fugir à polémica, os autores a eles preferem, sempre ou quase sempre, uma forma com o consequente expresso (cf Torrinha, 1946): “por que motivo?” ou “por que razão?”, relativamente às quais discussão não existe.

Exemplos de frases de mestres da nossa literatura poderão acrescentar alguma humildade ao esforço dos já citados teóricos eruditos, o que amplamente contribuirá para dignificar e credibilizar as suas posições:

Ø  Quem soubera/Por que tudo passou e foi quimera,/E por que os muros velhos não dão rosas!” (Florbela Espanca, “O Meu Orgulho” in “A Mensageira das Violetas”)

Ø  Por que é que não andamos, perguntou” (José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira”)

Ø  Não entendia por que se demorava a mulher tanto” (idem, ibidem)

Ø  Por que te assustas de cada vez?” (José Régio) 1

Ø  Mas por que para este infame comboio?” (Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”, no tempo em que o atual porquê? também ainda era por quê?)

Ø  Por que não ergue ferro e segue o atino/De navegar, casado com o seu fado?” (Fernando Pessoa, “A Minha Vida É Um Barco  Abandonado”, in “Cancioneiro”)

Ø  Por que lhes dais tanta dor?!” (Augusto Gil) 1

Ø  Mas por que não lhe telefona logo à noite, por que não recomeçam a velha e quase esquecida amizade?” (Augusto Abelaira) 1

Ø  Por que vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a cruz ensanguentada do calvário?” (Alexandre Herculano) 1

Em contrapartida, quantos porque? encontrarão os defensores desta inovação em autores anteriores a ter começado esta gramatical deriva que ninguém parece querer fazer parar?  Muito poucos, por certo; e não parece ajuizado defender minorias quando elas estão objetivamente erradas, como poderá ser aqui o caso.

A menos, claro está, que, como dizem que não há maior cego do que o que não quer ver, os defensores do porque? estejam todos certos e, comigo, Herculano, Abelaira, Gil, Régio e os outros completamente errados; até porque ninguém encontrei que encare o porque? interrogativo como uma evolução, mas, simplesmente, como uma intemporal e triste realidade.

Importante será, ainda, referir que Cunha e Cintra (2002)1 nem uma vez utilizam porque? para iniciar uma interrogação direta ou indireta, o que não pode ser considerado sem significação.

Apesar de tais exemplos, entre tantos, tantos outros, se me afigurarem inquebrantável evidência quanto à correção da forma interrogativa por que? também nas situações de omissão do consequente de que fala Torrinha (1946)4, intensificarei, de seguida, a defesa desta posição, dado que, embora fragilizada pela generalizada falta de fundamentação uniforme, coerente, sustentável  e válida,  ainda encontra grande oposição.

 

3. Comparação com Outros Idiomas Europeus

Dado que não estamos sozinhos no Mundo nem falamos só para nós – experimentemos ver a cara de espanto de:

- um francês, quando lhe perguntarmos: “parce que ne pas aller voir une comédie?

- um inglês, perante: “because are you here?

- um alemão, ao nos ouvir dizer: “weil den nicht?”

 

Pois não, não veremos qualquer cara de espanto, mas pela simples razão de, por não querermos fazer triste figura, alarvidades tamanhas nos não atrevermos a pronunciar!

Idioma

Forma Interrogativa

Forma Causal

Português

Por que?

Porque

Espanhol

¿Por qué?

Porque

Francês

Pourquoi?

Parce que

Inglês

Why?

Because

Alemão

Warum?

Weil

Já em português - o nosso idioma nativo! - não parece ter qualquer importância a progressiva corrupção da grafia do advérbio interrogativo por que? para porque?, termo próprio e exclusivo da conjunção coordenativa explicativa e das conjunções subordinativas causal e final.

 

4. Ao Ler, Como Entoar?

A fluidez é um imperativo da boa leitura mas, para que ela seja possível, necessário se torna que quem escreve cuide de, com a antecedência possível, transmitir ao leitor a entoação afirmativa, negativa ou interrogativa que deverá adotar, ao ler para si; ou para os outros, por maioria de razão.

Tomemos, como exemplo de uma hipotética fala, “Porque não conhecemos, de Lisboa para Coimbra, o horário dos comboios, não sabemos a que horas iremos chegar”.

A entender-se que porque deve ser utilizado quer na forma afirmativa, quer na interrogativa, ao começar a ler “Porque não conhecemosserá impossível saber por qual das duas entoações deveremos optar, podendo, facilmente, enveredar pela entoação interrogativa apropriada a “Por que não conhecemos, de Lisboa para Coimbra, o horário dos comboios?”, já que, ao começar a ler, não sabemos como a frase irá terminar.

Ao invés, se adotarmos, como forma interrogativa direta, por que? - e não porque? -, logo à primeira palavra “Porque” da frase do nosso exemplo ficaremos cientes de que a entoação afirmativa deve ser aplicada, enquanto, se a fala começar por por que, será de imprimir um tom interrogativo ao que se lhe seguirá.

Esta objeção tem razão de ser tão evidente quanto a certeza de não haver como, na prática, a contornar.  Dispenso-me, pois, de para ela outros exemplos, de entre inúmeros possíveis, aqui apresentar, considerando-se, assim, sobejamente demonstrado que, além da objeção gramatical propriamente dita, a indiscriminada e indiferente utilização do porque causa, também à fluidez da leitura, prejuízo claro e evidente, que cumpre evitar.

 

5. Da Alegada Ausência de Objeto

Voltando à alegada ausência de objeto (cf 1. supra) em, por exemplo, “por que não vamos passear?”, fácil se torna concluir que ela não ocorre, antes se tratando do recurso à elipse do mesmo – ou “omissão do consequente4 -, por comodidade de expressão.

Por que razão não vamos passear?” significa, precisamente, o mesmo que “por que [razão] não vamos passear?”, dado que a dúvida suscitada é, precisamente, a mesma, como precisamente a mesma é a causa que se pretende conhecer, e precisamente a mesma será a resposta a obter.

Sendo a pergunta e a resposta iguais, não há como argumentar que num caso não existe objeto.  Existe; simplesmente não se encontra expresso, foi elidido, omitido.

Ora, salvo melhor opinião, existindo o objeto e sendo ele o mesmo, nenhum fundamento existe para que sejam escritas ou classificadas de forma diversa uma e outra interrogações;  tampouco para, de forma absolutamente arbitrária, quebrar uma vez mais, do idioma, a estabilidade e a clareza essenciais à adequada e universal compreensão.

Se, ao perguntarem quando me irão tratar um dente, eu responder apenas “Tratam amanhã”, garanto que a elipse não gerará falta de objeto.  Pelo menos, na cadeira do dentista, onde o vou sentir da mesma forma que se tivesse respondido “Tratam o meu dente amanhã”.

Simplesmente, tal como acontece quando a seguir a por que? omito motivo ou razão, me terá parecido que o facto de cortar uma palavra ou duas não prejudicaria o significado nem o sentido da oração, o que é um facto.

Só porque escolho não mostrar alguma coisa, ela não deixa de existir.  Seria bom, por exemplo, se, para que o que é mau deixasse de existir, nos bastasse escondê-lo...

 

6. Uma Lacuna Teórica

Quando, como aqui acontece, queremos demonstrar a alguém a nossa razão, importa que seja firme e honesta a nossa convicção, havendo, outrossim, que esgotar, a favor e contra, a possível argumentação.

Devo, assim, sempre com o devido respeito, salientar que Celso Cunha e Lindley Cintra – e, com eles, a generalidade de quem, sabedor, escreveu sobre gramática - poderão não ter previsto todas as possibilidades ao classificar unicamente por que?, onde?, como? e quando?  como advérbios interrogativos.

Isto, porque apesar de também serem expressões interrogativas formadas por uma preposição seguida do pronome que, não se encontra, percorrendo a sua obra1, classificação para até que?, com que?, de que?, em que? entre que?, para que?, sem que?, sob que? e sobre que?.

Fica, pois, ao leigo a inevitável dúvida quanto à razão pela qual por que? merece a classificação própria de advérbio interrogativo causal, enquanto as outras expressões não são, por exemplo, para que? um advérbio interrogativo final, e até que? um advérbio interrogativo temporal?  Ou, inversamente, por que não é por que?, como elas, uma mera preposição seguida do pronome que?

Para esta aparente dualidade de critérios não encontrei, nas fontes consultadas, qualquer explicação.

Note-se, porém, que a dúvida se refere, unicamente, à classificação gramatical, é meramente adjetiva, e não afeta, de forma alguma, quanto aqui se disse relativamente à questão substantiva da indispensável utilização diferenciada do por que? interrogativo e do porque unicamente causal.

Esta aparente opção dos Autores por uma análise menos transversal do problema não deixa de sugerir, no plano prático, uma derradeira questão: se se insiste, atualmente, em transformar por que? em porque?, por que não fazem o mesmo com atéque?, conque?, deque?, emque?, entreque?, paraque?, semque? e sobreque? ?

Ridículo?  Sem dúvida, tal como o porque? o será também.

 

7. Conclusão

Toda esta polémica em redor da forma interrogativa por que? é notoriamente injustificada e vazia de fundamentado conteúdo, além do que que, sobre o tema, existe doutrina bem firmada na gramática portuguesa.

O perigo verdadeiro está naquilo para que me não tenho cansado de alertar: a arbitrariedade, a arrogância com que qualquer um se atreve a, com o maior dos à vontades, “esclarecer”, como dizem, os leitores mergulhados na dúvida – cada vez mais legítima dada a proliferação de informação errada – por ação de meras opiniões não fundamentadas, expressas como se autênticos dogmas fossem as respetivas conclusões.  Tudo isto agravado – e muito - pelo facto de o corretor do Word em que escrevo sugerir a utilização de porque sempre que escrevo por que; e aqui pode estar uma bem importante causa da estonteante proliferação do erro.  Note-se que falo do mesmo infalível Word que não se coíbe de contar como uma palavra qualquer coisa que seja ladeada de espaço, antes e depois, ainda que se trate de uma consoante isolada ou um simples hífen.   Experimentem lá… E é esta coisa que dita, junto dos menos instruídos e não só,  as regras da gramática portuguesa!

Eis, pois, belíssimos exemplos das razões que - na perspetiva do leigo que, por isso mesmo, se sustenta em autores consagrados - me levaram a dedicar algumas linhas à reflexão sobre o crescente facilitismo na utilização da Língua Portuguesa.  Eis, também, por que, no texto de apresentação da mesma (v. "Tanto Faz!" - Fev 2021), falo de liberdade e ambiguidade, de indiferença e facilitismo, de falta de fundamentação.

A verdade por detrás de toda esta discussão estéril parece bem simples: agravada pela tendência social crescente para o “Tanto faz!", a manifesta dificuldade, devido à deficitária consciência gramatical da generalidade da população, em destrinçar o que separa o por que? interrogativo do porque causal – sem interrogação - tem levado a que, nos anos mais recentes, o primeiro tenha sido substituído por uma espúria forma supostamente interrogativa porque?

Apesar da enormíssima asneira que tal representa – não só pela ambiguidade de inquina a expressão verbal, como pela inútil dificuldade que introduz na leitura -, a pouco laboriosa investigação por parte de quem, de forma empenhada a deveria ter empreendido antes de, supostamente ex catedra, se pronunciar, terá levado a que certos autoproclamados linguistas se tenham encontrado num beco sem saída, pleno de classificações criativas mas inexistentes em qualquer gramática que por eles não haja sido escrita – ou por outros como eles nestes mesmos tempos mais recentes -, entre elas diferindo substancialmente:  ora é pronome, ora conjunção, ora até advérbio porque?

Confundidos, foram procurar justificações numa alegada mas inexistente perda de objeto, num suposto tratamento diferente em Portugal e no Brasil – sem explicar que o mesmo se deveu, simplesmente, ao facto de o Brasil se não ter (ainda) deixado levar na onda de degeneração do advérbio -, até, quiçá ignorantes da existência de locuções, argumentar com a impossibilidade de classificação gramatical do que de por que?

Ora, quem se queixa da alegada impossibilidade de classificar, individualmente, o que de por que?, como classificará o que de para que? ? Ou deveremos, mesmo, adotar o (ainda) inexistente paraque? ?

A investigação foi, também, descuidada ao não ter analisado a realidade de algumas das línguas europeias mais comummente faladas entre nós, nas quais existem, sempre, termos diferenciados para a interrogação – direta ou indireta – e para a afirmação causal;  e descurou, até, a comparação da evolução de outras interrogativas formadas por preposição seguida do tal inclassificável quecomo para que? -. também elas possíveis locuções interrogativas.

Aos que discordam da afirmação de que a ignorância e o facilitismo se encontram na génese da confusão, lembrarei quem tem "nada porque viver", "aquilo porque passei", "porque caminho vais?", e outras das mais chãs manifestações de gente que não sabe escrever, tão correntes na imprensa e nas legendas que, diariamente, nos entram na mente através da televisão. Não tarda, andará por aí quem esclareça dúvidas da língua portuguesa com base no advérbio ou pronome interrogativo de lugar poronde, e outras originalidades que tais...

- x -

Quando a escrita se altera para acompanhar alterações na linguagem falada, estamos perante uma evolução; mas, se a escrita muda por si só, porque nem se foi ver, porque a gramática pouco importa, assim se caminhando para o desconhecimento generalizado de determinada regra e das outras todas e das razões que lhes subjazem, somos levados a pensar em indiferença, em descaso, ou em mera ignorância gramatical.

Em prol da manutenção da clareza e da estabilidade da língua, bem como da essencial fiabilidade da mensagem, proponho que o Word corrija o seu corretor, e que quantos se manifestaram a favor do porque? interrogativo apaguem os seus esclarecimentos dos sítios em que os afixaram - já que nos livros pouco haverá a fazer -, ou me corrijam fundamentando devidamente em autores consagrados da gramática portuguesa as suas tão criativas opiniões.

Proponho, também, que a forma interrogativa porque? seja, definitivamente, erradicada da escrita, mantendo-se a utilização de por que?interrogativo que sempre foi e que, querendo quem manda, sempre será.

* *

A verdade é, porém, que um vício, em especial um vício linguístico, é muito difícil de curar, de reverter, já que as pessoas que a ele rapidamente aderem são às dezenas de milhar.

"Dezenas de Milhar"? Ou deverá, antes, dizer-se "dezenas de milhares"? Ou uma e outra expressões, conforme o caso em que as queremos aplicar?

Leia aqui o desenvolvimento desta questão!


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará.


1 Cunha, Celso e Cintra, Lindley  – “Nova Gramática do Português Contemporâneo” – 7ª edição, 2016 – Lexicon Editora Digital, Rio de Janeiro

2 Cunha, Celso e Cintra,Lindley – “Breve Gramática do Português Contemporâneo” – 15ª edição, 2002 – Edições João Sá da Costa – Lisboa

Fontinha, Rodrigo Fernandes – “Gramática Portuguesa Elementar” – 2ª edição, 1951(?) - Editorial Domingos Barreira – Porto

4 Torrinha, Francisco – “Gramática Portuguesa” – 7ª edição, 1946 – Edições Marânus – Porto

5 Gomes, A. - “Lições Práticas de Gramática Portuguesa” – Livraria Simões Lopes - Porto


sábado, 15 de maio de 2021


Limpo ou Limpado?

"Não encontrei um único caso em que a forma do
assim chamado particípio passado irregular diferisse
da forma do correspondente adjetivo qualificativo, o que, desde logo,
poderá fazer-nos aventar a hipótese de estarmos perante uma notória redundância
consubstanciada na adoção inútil de classificações distintas para termos que são,
sempre, exatamente iguais, e declináveis exatamente da mesma forma"

   
   1. A Regra Comummente Aceite
   2. Onde a Lógica Parece Falhar
   3. As Exceções da Mudança


Glossário

Na reflexão que se segue, referir-me-ei a:

 *) particípio passado como uma forma verbal terminada em -ado ou em -ido, declinável em género e número, que se refere a uma ação empreendida no passado pelo sujeito;

*) objeto como a pessoa ou a coisa relativamente à qual foi empreendida essa ação;

Coberto ou cobrido
*) verbo abundante como aquele para o qual se diz coexistirem duas formas de particípio passado, uma delas chamada particípio passado longo, regular ou fraco, e a outra designada por particípio passado curto, irregular ou forte;

*) adjetivo qualificativo como uma palavra declinável em género e em número que indica a natureza ou condição permanente (qualidade) de alguém ou de algo, ou a sua condição temporária (estado);

*) tornar como um verbo que significa transformar ou modificar alguém ou algo, imprimindo-lhe determinado estado ou qualidade diferente do que apresentava antes da ocorrência.

1. A Regra Comummente Aceite

Uma questão das que me parece mais facilmente poderem conduzir, por um lado, à hesitação na escrita ou na fala e, por outro, à ambiguidade na interpretação é a inexistência de uma norma gramatical precisa - e fundamentada em lógica clara e consolidada - quanto à adequada utilização do particípio passado.

Alguma pesquisa empreendida levou-me a concluir que uma regra mais ou menos consensual poderá ser formulada assim:

a)    na voz ativa, isto é, nos casos em que é referida a intervenção do sujeito, enquanto agente, como causadora da alteração da qualidade ou do estado do objeto, emprega-se o chamado particípio passado irregular – como em “depois de eu o ter limpado” -, habitualmente antecedido por uma forma de um dos verbos auxiliares ter ou haver;

b)   na voz passiva, ou seja, nos casos em que é, simplesmente, referida a alteração do estado ou da qualidade do objeto, mas desta vez sendo este o sujeito e indeterminado o agente, emprega-se o designado por particípio passado regular – como em “foi limpo” -, normalmente antecedido por uma forma de um dos verbos ser ou estar, aqui utilizados como auxiliares;

Limpo ou limpado
c)  nos casos em que não existe qualquer ação ou alteração da condição do objeto, mas apenas a informação quanto à mesma, independentemente do tempo - e seja ela temporária ou permanente mas não atribuível a um terceiro - não se emprega qualquer das chamadas formas do particípio passado, mas sim o adjetivo qualificativo – como em “ele é limpo” (ele é uma pessoa limpa), “ele foi limpo” (ele foi, em tempos, uma pessoa limpa), “ele era limpo” (ele era, em tempos, uma pessoa limpa) ou “ele está limpo” (hoje, ele está limpo, embora possa não o estar habitualmente) - também antecedido, habitualmente, de uma forma de um dos verbos ser ou estar, embora aqui atuando como verbo principal, já que, não sendo referida qualquer ação externa que, no passado, haja provocado uma alteração da qualidade ou do estado do objeto, não há lugar à utilização de um particípio passado antecedido por um verbo auxiliar.

2. Onde a Lógica Parece Falhar

O que sintetizei em 1. c) quanto à utilização do adjetivo qualificativo parece pacífico entre as pessoas que, na Internet, se pronunciam sobre este assunto.

Gasto ou gastado
Há, no entanto, que salientar que não encontrei um único caso em que a forma do assim chamado particípio passado irregular referido em 1. b) diferisse da forma do correspondente adjetivo qualificativo – limpo e limpo -, o que, desde logo, poderá fazer-nos aventar a hipótese de estarmos perante uma notória redundância consubstanciada na adoção inútil de classificações distintas para termos que são, sempre, exatamente iguais, e declináveis exatamente da mesma forma.

Mas o que significa, na verdade, dizer que algo “foi limpo”?  Em que consiste este particípio passado irregular?

Salvo melhor opinião, entendo que “foi limpo” significa que algo “foi tornado limpo”, "foi-lhe dada a qualidade ou estado de limpo", apenas acontecendo que, abreviando por comodidade de expressão, acabamos por omitir a forma do verbo tornar - como em "viu-se (tornado) envolto em polémica".

O particípio passado de “foi limpo” não será, pois, limpo, mas tornado, do que resulta que limpo não é um particípio passado, mas o adjetivo qualificativo que exprime a nova condição – estática - que o objeto passa a apresentar uma vez concluída a ação de em algo diferente o tornar.

Haverá, assim, que reconhecer que o particípio passado do verbo tornar ou de um equivalente se encontra sempre presente, embora omisso, nas frases que exprimem, na voz passiva, uma alteração da qualidade ou do estado de um objeto – que aqui atua como sujeito -, independentemente da forma como é conjugado o verbo auxiliar, sendo, então, forçoso concluir pela inexistência de verbos abundantes com dois particípios passados, um regular e o outro irregular.

Extinto ou extinguido
Com este enunciado bem mais simples e fácil de aplicar, estaremos perante um único particípio passado – terminado em -ado ou -ido (v. 3. infra) correspondente ao atualmente chamado irregular -, que será, na voz ativa, o do verbo principal e, na voz passiva, o do verbo tornar ou, pontualmente, o de uma expressão de significado idêntico, como, por exemplo, mudar para ou transformar em.

Um bom exemplo disso é a expressão, corrente nos tribunais, "foi presente ao juiz de instrução", na qual se não afigura possível negar a presença implícita de tornado, no sentido de "foi-lhe conferido o estado de presente perante o juiz".

Na voz passiva, o particípio passado – elidido – do verbo tornar será, então, seguido pelo adjetivo qualificativo que escolhermos aplicar, atualmente chamado particípio passado regular

Isto, porque, embora omisso, estando na voz passiva o particípio passado de tornar sempre presente, se o limpo que se lhe segue fosse, também ele, classificado como particípio passado - como a atual regra pretende - teríamos dois particípios passados seguidos, algo que me parece que a língua portuguesa não iria suportar.

Note-se, por fim, que, quanto à estrutura da oração no que se refere aos nomes predicativos, quer do sujeito, quer do complemento direto, a nova regra aqui proposta nada vem alterar.

3. As Exceções da Mudança

Falta dizer que, como é sabido, a linguagem corrente se vem encarregando de suprimir alguns dos mais comuns particípios passados terminados em -ado e -ido, metamorfoseando-os em ditas exceções que mais não representam, afinal, do que a cómoda adoção, como particípio passado, da forma tendencialmente mais breve do adjetivo qualificativo (entre outros, feito por fazido, dito por dizido, escrito por escrevido), para já não falar daqueles particípios passados ditos regulares que talvez jamais tenham existido, como os correspondentes a posto, vindo e visto.

Impresso ou Imprimido
Sem prejuízo de ainda ser, porventura, possível fazê-lo, não se afigura razoável pretender que, tanto tempo decorrido a falar e a escrever assim, se deva, agora, reverter esta situação.

Deveremos considerar, também, casos menos claros, como os de internado e interno, cuja utilização caótica e ambígua dificulta o enquadramento numa regra perfeitamente enunciada.

Não obstante, a adoção do que acima proponho poderá levar a que, em nome e na salvaguarda da clareza na expressão, se logre suster a degeneração na ambiguidade a que, inexoravelmente, conduzirá a eliminação das formas ainda resistentes de particípio passado em -ido e -ado, particularmente daquelas que, como no exemplo limpado - e, com ele, em tantos outros como acendido, cobrido, descobrido, dispersado, enchidoganhado, gastado, imprimido, matadoocultado, pagado, prescrevido (surpreendentemente, já que contém “escrevido”), salvado ou sujado -, também se encontram em vias de extinção em benefício da forma do adjetivo qualificativo – a que a regra atual chama “particípio passado regular”.

No sentido inverso, não parece existirem exceções, apenas situações em que a ação não gera alteração da qualidade ou do estado.  É o que acontece, por exemplo, com os particípios passados assassinado, chegado, enganadoobrigado/desobrigado, molhado trazido, para o qual não existe adjetivo qualificativo diferenciado correspondente, numa forma sintética, uma vez que, por exemplo, pelo simples facto de um objeto ser trazido, não fica treito, ou coisa que o valha, mas sim na mesma condição anterior ao facto de ser trazido, a menos que tenha ela sido alterada por qualquer incidente no percurso devido a causa não diretamente inerente ao ato de trazer, logo, irrelevante para o assunto que aqui nos traz.

Pelo que a nova regra agora proposta possa valer, aqui fica ela, para o caso de alguém autorizado a querer considerar, por entender não ser verdade que, para a gente comunicar… “Tanto faz !”.

* *

Este tema dos particípios, do limpo ou limpado é, talvez, um dos mais polémicos e interessantes da gramática portuguesa, ocorrendo a dúvida muito frequentemente e nas mais variadas situações do dia-a-dia.

No entanto, não menos importante e suscetível de gerar dúvidas a cada passo é a velha questão do "aluga-se quartos" ou "alugam-se quartos", "vende-se casas", ou "vendem-se casas".

(continua aqui)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


Casos de Particípio Passado "em Risco"

(caso lhe ocorram outros, por favor ajude a completar esta lista informando no espaço "Comentários")

aberto ou abrido
aceite ou aceitado
aceso ou acendido
assente ou assentado
ativo ou ativado
bento ou benzido
cheio ou enchido
coberto ou cobrido
completado ou completo
concluso ou concluído
corto (regionalismo alentejano) ou cortado
descoberto ou descobrido
disperso ou dispersado
eleito ou elegido
empregue ou empregado
entregue ou entregado
envolto ou envolvido (ex: no crime)
expresso ou expressado
expulso ou expulsado
extinto ou extinguido
enxuto ou enxugado
expulso ou expulsado
farto ou fartado
findo ou findado
frito ou fritado (frigido)
ganho ou ganhado
gasto ou gastado
imerso ou imergido
impresso ou imprimido
incluso ou incluído
isento ou isentado
inserto ou inserido
isento ou isentado
junto ou juntado
liberto ou libertado
limpo ou limpado
morto ou matado
oculto ou ocultado
omisso ou omitido
pago ou pagado
preso ou prendido
prescrito ou prescrevido
revolto ou revolvido
roto ou rompido
salvo ou salvado
seco ou secado
seguro ou segurado
solto ou soltado
submerso ou submergido    
sujo ou sujado
suspenso ou suspendido
tinto ou tingido
vago ou vagado

A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.