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sábado, 14 de agosto de 2021


COVID: O Palácio das Araras

"Até quanto a ânsia narcísica e obsessiva de um se fazer notar continuará,
nesta atrasada e mal governada terrinha, a opor-se ao interesse de todos?

Não é ciência aquilo que, todos os dias e a todas as horas, nos entra pelos olhos e ouvidos:
é uma vozearia ignorante, pedante, oportunista e, por vezes, desesperada,
que apenas contribui para agravar a já catastrófica situação
"

          1. Da Importância da Sustentação Científica das Opiniões Formuladas
          2. Vacina-se os Miúdos ou Não?
          3. A Chinfrineira Muda na Comunicação Social
          4. Missão de Informar versus Liberdade de Expressão
          5. Pluralismo no Debate versus Motivação para Aparecer na Televisão

 

Importância da Sustentação Científica
1. Da Importância da Sustentação Científica das Opiniões Formuladas

No Estado de Direito, é entendido como do mais elementar bom senso – e a lei prevê – que um decisor que não domine determinada área do conhecimento recorra à opinião de peritos visando o rigor da decisão a prolatar, bem como a clareza de uma exaustiva e clara fundamentação.

Tal recurso à presumível sapiência de terceiros pressupõe, necessariamente, que o laudo produzido por cada perito consultado se sustente em saber estabilizado e adquirido segundo as regras do método científico, sob pena de acabar o decisor enleado numa amálgama de opiniões díspares que, em lugar de contribuir para o desejado esclarecimento, apenas irão a sua ignorância nestas coisas acabar por aumentar.

Ainda assim - ou seja, mesmo quando os diversos pareceres solicitados se baseiam numa mesma ciência antiga e são redigidos de acordo com os procedimentos preconizados -, não é raro chegarem os respetivos autores a conclusões substancialmente distintas, já que, contrariamente ao que às vezes por aí se diz, conta bem menos o volume do conhecimento do que a efetiva capacidade para corretamente o processar, para, daquele que existir, alguma coisa aproveitar.

A situação agrava-se, evidentemente, quando a ciência consultada não é antiga nem conhecimento, verdadeiramente, existe porque o problema é recente e ninguém domina uma matéria que não houve tempo para, serena e exaustivamente, investigar.

Assistimos, então, a espetáculos tristes por parte de desesperados e desabridos gestores ou governantes que ficam sem saber o que decidir e como manter confiante e tranquila uma população tão ignorante como eles nestes assuntos – e muito bem, porque, se cientistas existem de determinada área, é porque tudo de tudo todos não têm de saber -  e ávida de orientações e esclarecimentos coerentes e seguros, ou que, pelo menos, pareçam fidedignos, que estimulem a vontade de os seguir e de à lei obedecer.

Atarantados, não cessam, pelo contrário, os atores sociais e políticos de ainda mais inquietar os espíritos, lançando na comunicação social o debate tipicamente estéril que, de forma inevitável, nasce do costume de espalhar aos quatro ventos todas as palavras alguém diz, seja lá o que for, seja lá quem for, como que procurando transferir para os desgovernados a obrigação de, em cada caso específico, decidir sobre aquilo que não conhecem, e deixando-os sem saber o que fazer nem em quem, afinal, acreditar.

Políticos escondidos no buraco do avestruz
Inversamente, poderá, também, dar-se o caso de outros desesperados gestores ou governantes se acoitarem no buraco do avestruz, na toca estreita da inação, esperando que peritos e ólogos disto e daquilo se matem e esfolem em debates mais ou menos espalhafatosos mas sempre inconsequentes, esquecendo-se de que, para que da discussão nasça a luz, necessário se torna que ela se processe sobre conhecimento validado e objetivo, e não sobre qualquer sandice que saia da pena ou da boca de quem, pouco ou nada sabendo do assunto, da quantidade do que lhe sai da pena ou da boca depende para viver.


2. Vacina-se os Miúdos ou Não?

Enquanto, na imensa praia da insanidade comunicacional típica do Portugal de todos nós o areal vai, a cada dia que passa, ficando cada vez mais poluído, decisões de sentido inverso vão sendo tomadas em regiões distintas do País. Foi o que aconteceu na Madeira, onde, a despeito da recomendação de sentido contrário da Direção-Geral da Saúde – e não de Saúde, como alguns peritos e alguns ólogos, quiçá por soar mais chic gostam de dizer -, se decidiu inocular os menores com idades entre os 12 e os 16 anos*), independentemente da existência ou inexistência de patologias – direito esse que, diga-se de passagem, à Região Autónoma plenamente assiste, nos termos constitucionais.

Não pode, porém, ignorar-se que, se a disparidade de critérios e de fundamentações que grassa Europa fora é, já de si, sintomática do desnorte que por aí reina na ciência destas coisas, torna-se, para a fiabilidade do que cientificamente é dito, simplesmente catastrófico que, para salvaguardar particularidades da economia de determinada Região ou por mera ânsia de protagonismo político, sobre questão são importante e sensível como a vacinação de menores se não entenda uma região autónoma com o poder central - por muito débil que este possa ser mau grado o folclore gerado por cada vez mais frequentes e indisfarçáveis tiques ditatoriais.

Mais grave, porém, será o facto de a Direção-Geral da Saúde e a Ordem dos Médicos terem posições diametralmente opostas sobre este tema da vacinação de menores*).

Note-se que se trata de entidades que, desejavelmente, não estão a proferir opiniões de natureza política: em ambas pontificam cientistas das mesmas áreas do conhecimento que estariam, supostamente, a pronunciar-se de forma sensata, ponderada e cientificamente sustentada sobre matérias da sua especialidade, visando, unicamente, proporcionar aos tais mais ou menos desesperados governantes os elementos necessários à tomada de decisões políticas - decisões essas que acabam por quase sempre tardar, por ficarem os governantes à deriva num confuso oceano de contraditórias opiniões.

>A Cereja no Topo do Bolo
A cereja no topo do bolo da descrença popular vem-nos do facto de,
dentro da própria Ordem, os médicos não se entenderem quanto ao que devem recomendar*); e, cereja ainda mais saborosa, que, dias mais tarde e, ao que consta, por atuação direta do Senhor Presidente da República no exercício da magistratura de influência para a qual por todos nós foi mandatado, a Direção-Geral da Saúde lá acabe, a contragosto, por dar o dito por não dito e passe a dizer que, ah!, afinal, as coisas não são assim tão simples e os miúdos sempre são todos para vacinar!

Bonito!

Não obstante, entende o Senhor Primeiro-Ministro que não se trata de ziguezague - como, à manobra, um definhado partido da oposição chamou à cambalhota -, mas sim de "evoluir na decisão"*)... mais propriamente, evoluir precisamente para a decisão contrária, com os mesmos dados disponíveis e, praticamente, uma semana depois.

Fala-se muito de linguagem inclusiva, mas esta é simplesmente exclusiva, na medida em que exclui do seu entendimento os olhos e os ouvidos de pessoas minimamente inteligentes e de boa fé, que apenas procuram entender o que se passa, sem estar preocupadas com votos ou campanhas eleitorais, como, por maioria de razão, a um Governo conviria em tempo de tão graves e sensíveis decisões.


3. A Chinfrineira Muda na Comunicação Social

No século passado, era eu ainda mais miúdo do que os miúdos cuja vacinação tanta celeuma hoje levanta, levava-me a minha Mãe ao Palácio das Araras, no Jardim Zoológico de Lisboa.

Cá de fora, pouco se dava por isso. Mas, uma vez lá dentro, o diálogo entre humanos tornava-se completamente impossível, tal era a chinfrineira saída dos bicos das animadas e tagarelas aves.

O mesmo se passa hoje com a vozearia que, sobre assuntos relacionados com a COVID, por aí vai nos jornais e televisões, resultando numa chinfrineira muda, vazia de mensagem, já que ninguém ouve nem ninguém se faz ouvir, com um mínimo de respeito e de credibilidade, no meio de tanto alarde, de tanta vontade de se pôr em bicos de pés a dizer “eu é que tenho razão!” quando lá se arranja maneira de, uma vez mais e ganhando ou não uns trocos, aparecer na televisão.

Manifestamente, não se baseiam estes discordantes palradores em dados cientificamente recolhidos e validados, uma vez que, em quantidade e com fiabilidade suficientes, os não há: proferem palavras tiradas da mera dedução lógica a partir de algumas notícias e elementos insuficientemente interpretados e testados. Ou seja: deitam-se a divinhar, como, mais coisa, menos coisa, qualquer um de nós seria capaz de fazer.

Missão de Informar De nada vale o brocardo segundo o qual, quando um burro zurra – digamos assim -, os outros baixam as orelhas: todos sabem que ninguém sabe, mas todos fazem por parecer que sabem, porque, para esta gente, é “vergonha” não saber.

Mas a título de quê e com que legitimidade ou direito tanto palra esta gente toda?

Até quanto a ânsia narcísica e obsessiva de um se fazer notar continuará, nesta atrasada e mal governada terrinha, a opor-se ao interesse de todos?

4. Missão de Informar versus Liberdade de Expressão

Estruturalmente, a democracia é um regime político muito fraco, dada a facilidade com que se usa e abusa na interpretação dos direitos, garantias e liberdades constitucionalmente reconhecidos, invocando-os para tudo e mais alguma coisa em proveito exclusivo de um indivíduo ou de um grupo restrito, sem que alguém tenha a coragem de a tal se opor. Se o fizer, o mais certo será deparar-se com acusações de ser fascista, ditador e mais isto e mais aquilo, como sempre acontece quando alguém procura, no exercício de direitos ou de deveres e com a melhor das intenções, moderar o exercício das amplas liberdades da democracia por parte de quem delas abusa e volta a abusar.

Já, a propósito dos festejos da vitória do Sporting na Primeira Liga de futebol, aqui falei sobre a confusão entre, por um lado, o direito de cada um manifestar as suas posições e ideais políticos e, por outro, invocar tal direito para atividades que nada têm com os direitos garantidos na Constituição.

O abuso da liberdade de expressão em tempo de pandemia é claramente, mais um destes casos.

Na verdade, aquilo a que diariamente assistimos nas televisões não é o exercício do direito de livremente exprimir posições políticas sobre o assunto, posições essas que, efetivamente, todos têm o direito de manifestar e todos têm o direito de conhecer.

O que se escreve nos jornais e passa nas televisões são conclusões meramente técnicas e, quase sempre, não fundamentadas sobre matéria científica que apenas meia dúzia de portugueses se encontra em condições de escutar e interpretar. Para a multidão restante, são coisas sem qualquer interesse prático, sem conteúdo político, apenas destinadas a preencher tempo de antena quando nenhuma catástrofe ou desastre espetacular em Portugal fornece matéria para vender anúncios, e cujo principal efeito é espalhar a confusão, descredibilizar as decisões e convidar, por desconhecimento ou descrédito, à prática de sucessivas infrações.

Direção-Geral da Saúde
Não se trata, neste caso de, ao espalhar por aí palavras a esmo, a Direção-Geral da Saúde, a Ordem dos Médicos, os epidemiologistas, os outros istas, os ólogos, os espertalhões, os jornais e as televisões estarem no exercício de qualquer direito previsto na constituição, designadamente o direito à liberdade de expressão: trata-se, antes e muito evidentemente, de uma clara violação do dever social de contenção, de reserva, sobre temas que não são do interesse da generalidade de uma população que tudo quanto quer é saber o que é para fazer, porque é isso que importa: é isso que, se cumprido, poderá ainda ter alguma eficácia e, da COVID e do seu Exmº Vírus, em alguma medida evitar maior propagação.

Afinal, o que queremos, verdadeiramente, quando vamos ao médico? Simplesmente, que nos passe a receita e instrua quanto à posologia. Às discussões técnicas, que nos poupe e as tenha em local próprio e com os colegas de profissão!

É no INFARMED, e não na praça pública, que deve ter lugar o debate entre cientistas que falem a mesma língua e que, nesse e noutros fora da especialidade, expressem livremente as suas opiniões, procurando chegar ao bom porto de alguma válida e, finalmente, eficaz conclusão, na falta da qual o Governo ficará desobrigado de seguir o resultado da difusa e inaproveitável discussão - mas, mesmo assim, obrigado a decidir com base no bom senso e segundo os mais altos e saudáveis ditames da administração.

Não é ciência aquilo que, todos os dias e a todas as horas, nos entra pelos olhos e ouvidos: é uma vozearia ignorante, pedante, oportunista e, por vezes, desesperada, que apenas contribui para agravar a já catastrófica situação.


5. Pluralismo no Debate versus Motivação para Aparecer na Televisão

Bem, dir-se-á, mas, no INFARMED isso já é feito, os especialistas já debatem estes temas antes e durante as famosas reuniões.

Pois sim, mas o que, aparentemente, acontece, é que, convenientemente, não são convidados cientistas de todas as tendências para essas reuniões, assim restando aos excluídos e ignorados badalar cá por fora as razões pelas quais discordam das conclusões.

A assim não ser, isto é, se existe o cuidado de garantir que participam nas reuniões especialistas com as mais diversas visões do problema, serão os vencidos no debate que, dando mostras de ausência, nos seus espíritos, da mais elementar noção de ética, vêm publicamente - e de forma mais ou menos equívoca – destilar o fel que, da derrota no debate, lhes ficou. Ou, então, os medíocres que querem, à viva força, ser alguém mas nada de útil têm a acrescentar e já ninguém tem paciência para ouvir, sem que por isso se coíbam de bater à porta desta ou daquela estação televisiva onde lá acabam por encontrar alguém que, por sua vez, conhece alguém que, a troco de uns minutos a encher com alardeada erudição uma antena desprovida de interesse, lá arranjam maneira de, no próximo jantar em família, exibir o vídeo de mais aquela vez em que as importantes criaturas foram à televisão.

- x -

Os editores dos jornais e os diretores de informação das televisões prestariam bem mais válido e sério serviço público se, em tempos tão complicados e difíceis, se recusassem a incentivar e a amplificar a chinfrineira destas araras que nos enchem olhos e ouvidos com a sua ignorante confusão; se pensassem um pouco menos em tiragens e em audiências e se abstivessem de dar eco a quem o não merce - ainda que substituindo o interminável rosário de opiniões dos entendidos por cacofónicas crónicas futebolísticas com vocabulário mais ou menos anedótico ou por mais um programas pimba apresentados por gente cada vez mais mal preparada e mais desinteressante.

Agiriam, assim, em defesa do legítimo interesse do público que os sustenta e a quem se dirigem, em lugar de dar palco a quem, falando daquilo que supostamente sabe sem, efetivamente, algo saber, apenas perturba a paz social, desacredita o legislador e as leis que produz, e assim torna ainda mais incerto e confuso o que já tão difícil é entender.

Em circunstância nenhuma será boa ideia aumentar a depressão e o pânico numa martirizada população e em desnorteados governantes que, manifestamente, não fazem a mais pequena ideia do que ainda poderão fazer, sem meter o pé na argola e sem dar cabo da próxima eleição.

segunda-feira, 19 de julho de 2021


Castigos Inúteis da COVID

Complicado? Claro que não! É, até, bem simples!

Se não foi por desnorte, incompetência ou desinteresse,
por que será que pelo menos um destes tão simples
como evidentes retoques não foi introduzido no modelo em vigor,
antes tendo-se vindo a insistir, cegamente,
na aplicação continuada de tão descabidas e desnecessárias sanções
a concelhos que já tanto tiveram de sofrer quando para tal havia plena justificação?

 

1. COVID: Cidade Injustiçada
2. Ligeireza e Arbitrariedade Redundam em Castigos Inúteis e Injustos
3. Como Resolver Objetivamente a Questão?


Elvas Injustiçada
1. COVID; Cidade Injustiçada

Há pessoas que falam pelos cotovelos e, algumas delas, não só falam pelos cotovelos como o fazem em voz impossível de deixar de ouvir por alguém que esteja menos de uma boa dúzia de metros afastado. Foi assim que anteontem tomei conhecimento de uma história insólita, quando beberricava, descontraidamente, numa esplanada um líquido qualquer.

O sujeito da voz tonitroante tinha decidido jantar em Elvas, no regresso de uma deslocação profissional algures ao Alentejo.

Procurou na Internet um restaurante que correspondesse às suas preferências, e também pela Internet ficou a sabe que Elvas iria entrar, no dia seguinte, na situação de risco muito elevado de contágio pelo vírus Sars-Cov-2.

Assim, e como quem o atendeu no restaurante, era algo dado à conversa, interessou-se o viajante palrador pelas razões que teriam levado aquele fim de um Alentejo quase imune à doença a apresentar uma tão elevada quantidade de novos doentes COVID, ao que o outro retorquiu que os infetados eram, na sua maioria, jovens finalistas em festejos de final de ano letivo.

Ora, gostando o tuga de comemorar desabrida e descontroladamente como gosta e entendendo que, mesmo nestes tempos terríveis, o que importa é viver plenamente com tudo aquilo a que tem direito, razão não haveria para que o efeito destas folias em Elvas, Alentejo, diferisse, nas devidas proporções, do descalabro estatístico resultante das loucuras que se seguiram à mais do que esperada vitória do Sporting Clube de Portugal na Liga NO, loucuras essas cometidas perante a completa passividade do Ministério da Administração interna e da Câmara Municipal de Lisboa.

Dispôs-se o nosso tagarela a aprofundar a questão, ao que o seu interlocutor no restaurante informou que tinha Elvas atingido, na quinzena que então terminara, uma taxa de incidência superior a 480 novos infetados por cem mil habitantes, razão pela qual os alarmados responsáveis por nos salvar a todos da pandemia tinham decretado novas proibições que iriam, uma vez mais, dar cabo do negócio dos restaurantes, agora operados por pessoas habilitadas, além de servir refeições, também a, sem qualquer formação específica, vigiar a forma como os clientes realizavam os indispensáveis autotestes que lhes confeririam, se negativos, o direito a desfrutar da refeição.

Ligeireza e Arbitrariedade
Mas disse mais o colaborador do restaurante – e aqui começa a nossa história: disse que tudo aquilo era um perfeito disparate que os iria prejudicar sem qualquer razão. E porquê? Porque as aulas tinham terminado semanas antes, a maior incidência de infetados, em números absolutos, tinha chegado a perto de 130 pessoas duas semanas antes, não tendo, no entanto, ultrapassado os 70 na semana seguinte e continuando a diminuir a olhos vistos à data em que começariam a vigorar as novas restrições.

Como Elvas tem uma população de cerca de 23.000 habitantes, os cerca de 130 casos reais absolutos correspondem a cerca de 520 por 100.000 habitantes, donde a decisão de regredir no desconfinamento.

2. Ligeireza e Arbitrariedade Redundam em Castigos Inúteis e Injustos

Fazer qualquer coisa implica esforço, já se sabe; mas não poder fazer implica também, pelas privações que daí advêm, da qual a privação de receitas do já tão martirizado comércio, entre outros setores, não será, por certo, a mais desprezível.

Para que alguém aceite confinar-se, privar-se, para que a lei seja por todos - ou quase todos - aceite e cumprida, tem, também, de ser racional e clara, tem de fazer sentido, para que os destinatários nela vejam algum propósito credível e com uma probabilidade de eficácia que justifique um sacrifício já enorme: não pode, ao invés, ficar nas mãos de amadores incapazes de planear seja o que for com ponderação e seriedade; de pessoas impreparadas, irresponsáveis, precipitadas, politicamente desesperadas, até.

Claro que o ideal teria sido, nas datas em que as comemorações eram previsíveis, vigiar o cumprimento da lei que já proibia os ajuntamentos para evitar novas doenças COVID. Tal não tendo acontecido, não pode pôr-se em causa que, no interesse de todos, teria sido necessário reagir quando se ultrapassou o patamar legalmente fixado, e isto independente de a tal contagem absoluta de cento e vinte ser cientificamente válida para o efeito ou não, coisa que não estou, de perto nem de longe, habilitado a discutir.

O que não há como entender são duas coisas muito simples.

A primeira, qual a utilidade de agir só ao fim de uma quinzena, isto é, quando o vírus já fez criação mais do que suficiente para assegurar uma, para ele, saudável e profícua expansão pelo sistema respiratório de umas boas centenas ou milhares de exemplares da tão descuidada e irreverente população tuga; e da outra, vítima ajuizada e inocente, também.

Independentemente da variação
Como entender, de facto, que decisões tão graves e tão penalizadoras para a economia de empresários, de consumidores, de todo o Estado, sejam tomadas com base em médias estáticas relativas a um período de tempo tão tardio e independentemente da variação ao longo do mesmo, alegando meras dificuldades na explicação de um critério, como iremos ver?

Evidentemente, se, por mera hipótese, no primeiro dia de uma quinzena, determinado concelho registar uma contagem de, por exemplo, cento e quarenta infetados e, no derradeiro, apenas noventa e sete, sendo a média móvel dos sete últimos dias consistentemente inferior ao longo da segunda semana, estamos perante uma situação obviamente resolvida ou em vias disso, jamais se justificando, em tal cenário, qualquer novo confinamento ou outra imposição.

A Elvas, valeu, apesar dos festejos que não soube evitar, ter uma população responsável que não esperou que as novas medidas restritivas fossem decretadas para, espontânea e rapidamente, pôr cobro à indesejada evolução. Mesmo assim, e graças a modelos obsoletos e, desde o início, descabidos, não teve como evitar o implacável e imerecido castigo, a exemplo, mais do que provavelmente, de muitos outros concelhos na mesma situação de serem punidos, não por a propagação do vírus estar a aumentar, mas por estar prestes a terminar!

Ora, se como na esplanada ouvi ao animado conversador, a quantidade de pessoas infetadas pelo Sars-Cov-2 na segunda semana da quinzena era inferior em cerca de metade à da primeira, que justificação poderá, em tal cenário, alguém invocar para impor novas medidas de restrição? Para tamanha incompetência e arbitrariedade, onde procurar explicação?

- x -

Traz-nos isto à segunda coisa que não há como entender: que, caso não se queria recorrer à análise da evolução da média móvel, os indicadores estatísticos utilizados nesta aparência de governação não estejam sujeitos a uma, ainda que elementar, ponderação em função do dia da quinzena, mais próximo do início ou do fim, em que cada leitura é registada.

Não seria lógico que os primeiros dias tivessem um peso reduzido na decisão e os últimos um peso incomparavelmente maior, assim se tornando fácil ajustar, de forma automática e objetiva, o número relevante para a decisão final conforme estivesse a aumentar ou a diminuir a quantidade de novas infeções?

Fatídica Quinzena em Elvas
De facto, os números dessa desnecessariamente fatídica quinzena em Elvas perdem todo significado perante o facto de a sequência de leituras diária significar, insofismavelmente, que estariam em queda abrupta as infeções – a comprovar-se, já se sabe, a exatidão daquilo que ouvi naquela ocasião. Mas, mesmo que não se comprove, haverá múltiplas situações destas por esse País fora, e é delas que aqui, em abstrato, aqui me ocupo, tendo como mote o exemplo de Elvas, independentemente de os tais valores que ouvi por alto estarem certos ou não.

3. Como Resolver Objetivamente a Questão?

A parte mais triste disto tudo é que, segundo li na imprensa, terá o Governo rejeitado este critério fundamental da aceleração ou desaceleração do contágio*), que teria, muito facilmente, evitado estas situações profundamente injustas e injustificadas que a tantos a própria sobrevivência dos negócios poderão custar, apenas aplicando o do nível de incidência, o dos concelhos circundantes e o do surto localizado.

A justificação terá sido a de que o critério da aceleração do contágio seria pouco objetivo, ou difícil de explicar.

Numa abordagem apenas destinada a ilustrar quão fácil seria, até para um amador como quem aqui escreve, dotar o critério rejeitado da necessária objetividade e facilitar a correspondente explicação, aqui deixo aqui duas sugestões muito simples de aplicar, e que os especialistas facilmente afinarão.

- x -

A primeira, consiste na observação da evolução, ao longo da quinzena (duas semanas) e, a partir do dia em que tal seja possível, da média móvel dos últimos sete dias (sete, para incluir, obrigatoriamente, os desvios próprios dos fins de semana): registando-se uma diminuição constante da média móvel ao longo do período (Quadro 1 infra, Cenário A), não serão aplicadas quaisquer novas restrições, independentemente da média geral absoluta e estática apurada no termo da quinzena.

Quadro 1

Caso esta simulação correspondesse a dados reais de Elvas (com uma população de cerca de 23.000), a média real de 115,64 das duas semanas corresponderia a cerca de 503 novos infetados por cem mil habitantes [(115,64 : (23.000 : 100.000)].

No entanto, no Cenário A do Quadro 1, cada uma das médias móveis nos últimos sete dias - de 124,43 > 121,86 > 119,57 e assim sucessivamente até 106,86 - teria sido, consistentemente, inferior à anterior, pelo que nenhum agravamento da situação haveria de ser aplicado a este concelho com mais de 480 novos infetados por cem mil habitantes.

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Quantidade de Novos Casos Registada em Cada Dia
A segunda (Quadro 2), afeta, a cada um dos dias da quinzena, uma ponderação, que começa em 1,00 no primeiro dia e é multiplicada por 1,50 por cada dia que passa (1,50 no segundo dia, 2,25 no terceiro e assim sucessivamente). Por este valor de ponderação - a ser afinado por quem entende da matéria - é multiplicada a quantidade de novos casos registada em cada dia, assim resultando a quantidade relativa ao primeiro dia da quinzena (1,00 no exemplo) muitíssimo menos relevante do que a do décimo quarto (194,62).

Para o cálculo da média será, assim, utilizado esse valor ponderado, em lugar do absoluto, o que fará com que, no Cenário A do Quadro 2, os 140 casos do primeiro dia tenham um peso de 140 (140 x 1) e os 97 do último dia tenham um peso de 18,878 (97 x 194m92); ou seja: que conte muito mais a redução efetiva do número de casos no último dia do que o valor mais elevado no primeiro, como deve contar numa situação clara de progressivo controlo da infeção.

A soma destas quantidades ponderadas é, então, dividida pela soma das ponderações, do que resulta, no Cenário A (incidência da doença a descer), uma média diária ponderada de 103,46, substancialmente diferente da média aritmética não ponderada de 115,64 resultante da aplicação do modelo que suponho ser o atualmente utilizado – pelo menos, assim está descrito de forma simplista. 

Quadro 2

Esta retificação ao modelo determinaria que não mais fossem, indevida e injustificadamente, aplicadas restrições sem qualquer utilidade prática em concelhos onde, apesar de a média da quinzena ser superior ao limiar mínimo estabelecido para que as medidas não sejam agravadas, a incidência de novos contágios estaria, inequivocamente, a descer.

Novamente no caso de a simulação se referir a Elvas, a média ponderada dos 14 dias de 103,46 corresponderia, desta vez, a 449 casos por cem mil habitantes [(103,46 : (23.000 : 100.000)], assim não havendo lugar a qualquer agravamento da classificação de risco.

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É, até, bem simples!
Em suma: qualquer que fosse, destes dois, o critério complementar aplicado – ou ambos -, sempre ficaria salvaguardada a posição dos concelhos bem comportados, ou seja, daqueles que, tendo passado por uma situação de alguma gravidade durante um curto período de tempo, rapidamente lhe houvessem posto cobro de forma espontânea, assim resultando injusta e abusiva qualquer punição que, a destempo, viesse a ser-lhes aplicada.

Complicado? Claro que não! É, até, bem simples!

Se não foi por desnorte, incompetência ou desinteresse, por que será que pelo menos um destes tão simples como evidentes retoques não foi introduzido no modelo em vigor, antes tendo-se vindo a insistir, cegamente, na aplicação continuada de tão descabidas e desnecessárias sanções a concelhos que já tanto tiveram de sofrer quando para tal havia plena justificação?

Para cúmulo, sendo a explicação a dificuldade de explicação do critério, num governo que dá emprego a não poucos assessores de comunicação!

Mistérios de uma agora gasta e há muito desnorteada governação...

Sic transit gloria mundi...

sábado, 5 de junho de 2021


Sporting: Direito de Comemoração?

"Ao aceitar, apesar de tudo, manter-se em funções, poderá o infeliz e desajeitado
Ministro da Administração Interna estar a fazer um enorme favor ao amigo que o nomeou,
mas é incomensurável o dano que, nessas mesmas funções,
causa a cada um dos desgovernados que agora somos"


   1. Direito de Manifestação ou Direito de Comemoração?
   2. O Imperativo Legal de a Câmara Municipal de Lisboa Impedir as Comemorações
   3. O Improviso Quase Encomendado
   4. Desmandos a Mando do Futebol
   5. Hooligans à Portuguesa
   6. Os Poderes Políticos Foram Eleitos, Nomeados e Mandatados para quê?


1. Direito de Manifestação ou Direito de Comemoração?

Mais do que uma necessidade, a desambiguação vocabular*) constitui imperativo de quantos primam por fazer-se entender na significação estrita que quiseram exprimir, mormente em questões de índole jurídica ou política, por serem das que mais expressivamente afetam a vida e o bem-estar individual e coletivo e, no caso de que aqui trataremos, dando especial relevo às relacionadas com a preservação da saúde e da vida num cenário de epidemia ou de pandemia - de COVID-19 ou de qualquer outra que, a mais ou menos breve trecho, não deixará de vir.

Refletirei brevemente sobre a diferença entre os substantivos objeto e objetivo, reflexão essa antecedida de outra sobre o que se entende, por um lado, por direito de reunião ou direito de manifestação e, por outro lado, por direito de promover ajuntamentos de pendor mais ou menos chauvinista, destinados à glorificação de sucessos desportivos, ou a exaltar as assim chamadas conquistas de um ou outro clube de futebol.

Exemplificarei com aquilo que ocorreu em Lisboa*) e um pouco por todo o Portugal*) no dia em que se soube que, ao fim de dezanove anos de jejum, o campeão nacional português de futebol de 2020/2021 iria ser o Sporting Clube de Portugal.

- x -

A diferenciação entre o direito de reunião e o direito de manifestação não mereceu, por parte dos Constituintes de 1976,  ser contemplada no Diploma Fundamental. No entanto, enquanto o direito de reunião não tem uma conotação necessariamente política, pode significar o que quisermos, o direito de manifestação radica na própria ideia de democracia, parecendo inegável ser dirigido à divulgação e salvaguarda dos direitos políticos de cidadãos que pretendam fazer valer, junto de terceiros, os seus pontos de vista, na defesa de causas que, num quadro democrático, lhes mereçam atenção e dedicação.

Dificilmente fará, assim, qualquer sentido confundir com manifestação um ajuntamento magno de adeptos de uma associação desportiva ou qualquer outra de cariz mais ou menos lúdico, visando o simples alarde da vitória de umas dezenas de milionários que passaram boa parte do ano – e da vida - a procurar enfiar uma bola de dimensões relativamente ínfimas numa rede imensa, mesmo que esteja ela zelosamente defendida por um abnegado guardador.

Estas explosões de cariz irracional e primário promovidas, de forma rotineira, por claques nascidas do fanatismo de uns poucos que parecem pouca ou nenhuma ideia ter do que por aqui aos outros andam a fazer - e, por assim dizer, descarregam, nos infelizes que pertencem a outro clube, as excrescências humorísticas do sucesso a que chamam “nosso” e que, por instantes, quase os faz esquecer a futilidade das sua vidas sem rumo –, enquadram-se, portanto, não no direito de manifestação, mas no direito de reunião que, no final da década de setenta do século passado, pelos Constituintes, terá, também ele, sido mais mais associado ao direito de reunião política e democrática do que ao das comemorações mais ou menos alarves, dos banquetes ou das festas de aniversário mais ou menos parolas, sobre os quais, porventura por manifesto demérito de tais eventos, nem lhes terá parecido necessário ou útil regular.

Há que lamentar, também aqui, aquela que parece ser uma ideia generalizada por parte de quem legisla, essa de não se ter, amiúde, o cuidado mínimo de clarificar o que se entende por cada conceito ou termo técnico-jurídico utilizado, antes deixando ao mal preparado cidadão a tarefa de adivinhar – porque para mais não sabe - nos termos do art.9º do Código Civil*), e aos tribunais o cuidado de, mais tarde, interpretar quando a coisa dá para o torto e pouco ou nada haverá, já, a fazer para o dano evitar. Depois, fica toda a gente muito admirada com o entupimento do sistema judiciário com coisas que, com um pouco de cuidado, até teria sido bastante fácil evitar.

Entendeu-se, pois, nos conturbados anos da génese desta já não tão jovem democracia, que o direito de reunião era algo suficientemente próximo do direito de manifestação para nem justificar que fosse contemplado em norma distinta, assim tendo o texto do art.45º acabado por dizer, sob a epígrafe “Direito de reunião e de manifestação”, que “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização” e que “2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação”.

Não obstante, o art.1º do Decreto-Lei 406/74, de 29 de Agosto, é bem claro ao interpretar o texto constitucional no sentido de que esses direitos de reunião e de manifestação apenas são reconhecidos “para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à tranquilidade públicas”, explicitando o n.º 2 do seu art.3º que “As autoridades competentes só poderão impedir as reuniões cujo objeto ou fim contrarie o disposto no artigo 1.º (…) *)".

Reza, por fim, o n.º 1 do art.5º que “As autoridades só poderão interromper a realização de reuniões, comícios, manifestações ou desfiles realizados em lugares públicos ou abertos ao público quando forem afastados da sua finalidade pela prática de atos contrários à lei ou à moral ou que perturbem grave e efetivamente a ordem e a tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos das pessoas ou infrinjam o disposto no n.º 2 do artigo 1.º


2. O Imperativo Legal de a Câmara Municipal de Lisboa Impedir as Comemorações

O que, antes de mais, haverá que clarificar é, sob o ponto de vista vocabular, a destrinça entre objeto e fim, conceitos muitas vezes confundidos dada a semelhança terminológica entre objeto e objetivo (substantivo significando finalidade, fim), mas que, porque a letra da lei os separa, haverá, também, que na interpretação assim fazer.

Afastando-nos da tendência para a ligeireza e o facilitismo por parte de quem entende que qualquer coisa pode significar tudo e mais alguma coisa, dir-se-á que, enquanto por finalidade ou fim se designa o objetivo, a motivação, a razão pela qual determinado ato é praticado ou um processo desencadeado, por objeto entende-se aquilo sobre que esse ato ou processo incide ou sofre os seus efeitos sem, todavia, constituir a finalidade do mesmoObjeto é toda a coisa, o assunto, a substância que são afetados pela concretização das medidas que visam a prossecução do objetivo. Todas as pessoas que estão próximas ou que, de alguma forma, podem ver afetados os seus legítimos direitos são, desta forma, objeto de uma comemoração que, mesmo indiretamente, os afete, mas não são o seu objetivo, o qual mais não é, afinal, do que a exaltação, apenas por uns quantos, de determinado acontecimento que noutros tão pouca euforia suscitará.

As pessoas, todas as pessoas próximas, são, então, objeto, ainda que involuntário, de qualquer reunião que tenha, como objetivo, uma comemoração como a que há dias aconteceu em Lisboa, às portas do Estádio José de Alvalade e pela rua fora, até ao Marquês de Pombal*).

Dito isto, nos termos do citado n.º 2 do art.3º do Decreto-Lei 406/74 as autoridades poderão – e deverão, já que de um poder vinculado se trata – impedir a realização de reuniões ou manifestações sempre que, não apenas o objetivo*) declarado seja contrário “à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à tranquilidade públicas”, mas também quando, pelas suas características ou natureza, previsivelmente resultem no afrontamento de qualquer destes valores junto de quem se torna objeto*) involuntário da comemoração.

Exemplificando, se o promotor de determinado evento entrega à entidade competente um aviso prévio nos termos do art.2º do mesmo Decreto-Lei, tem esta o poder-dever de impedir o evento desde que, fundamentando, conclua que o direito dos cidadãos à segurança sanitária em tempos de pandemia será seriamente comprometido pela realização do evento nos moldes previstos, ou que dela resultem danos à ordem e à tranquilidade pública.

Saliente-se que, contrariamente ao que por aí se tem dito para alijar responsabilidades evidentes, nada têm estas disposições a ver com qualquer estado de calamidade ou de emergência, sendo de aplicação genérica, mesmo em conjunturas consideradas normais.

Assim, dúvida não pode existir de que a autoridade do Estado jamais e de forma alguma estará limitada na defesa da ordem e na salvaguarda dos direitos dos cidadãos contra os desmandos de meia dúzia de alarves que preferem ignorar que têm o direito a quase tudo, mas não àquilo que a lei expressamente, no interesse de todos, proíbe.

A Constituição é o garante da democracia, não um pretexto para a claquocracia, para a chauvinocracia ou para a futebolocracia, que em tanta coisa, hoje em dia, parecem mandar e tanto temor junto do poder político suscitar.

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Refira-se, ainda, que embora a redação original do n.º 1 do art.2º dissesse que deveria ser avisado “o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito”, com a extinção do cargo de governador civil a capacidade para receber o aviso passou a ser exclusiva dos presidentes da câmara (cf. art.2º da Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro*)), assim inexistindo qualquer dúvida ou uidade relativamente a ela.

Não é, pelo exposto, verdade que “Dentro do que é o nosso quadro de competências, a Câmara de Lisboa não tem de autorizar manifestações, nem reuniões. Ou elas acontecem espontaneamente ou tentam organizar-se com os promotores"*) . Ocorre antes que, longe de corresponder a uma inconstitucionalidade material, a delimitação casuística, por parte das câmaras municipais, do direito de manifestação no quadro da legislação já referida é um imperativo legal, que em nada diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (cf nr.3 do art.18º da Constituição da República Portuguesa).

Por fim, perante um desfilar de cidadãos fortemente etilizados numa altura em que o consumo de bebidas alcoólicas era proibido na via pública, perante milhares de indivíduos colados uns aos outros e sem qualquer proteção na cara, numa altura em que o distanciamento social é obrigatório, tal como o uso de viseira ou máscara, estes factos constituem razão mais do que suficiente para obrigar as autoridades a determinar às forças de segurança que ponham cobro ao evento ao abrigo do que diz o n.º 1 do art.5º do Decreto-Lei 406/74 – ou nos termos, já que se trata, como vimos, de um poder vinculado.

Ponham cobro”, desde que, naturalmente, lhes disponibilizem os meios adequados*).


3. O Improviso Quase Encomendado

A competência para o desempenho de funções de gestão ou políticas é medida, essencialmente, pela capacidade de integrar, no planeamento da ação, uma precisa antevisão do resultado e a eficaz mobilização dos meios necessários à sua consecução. Bem pelo contrário, dizer que “Uma vitória do Sporting seria sempre uma realidade muito difícil para a cidade de Lisboa *) é como se o Presidente da Câmara encarasse os efeitos mais do que previsíveis da vitória, no campeonato da Primeira Liga de futebol e decorridos tantos anos de jejum, de um dos principais clubes desportivos da Capital com a mesma dose de fatalidade com que contempla o cíclico entupimento de sarjetas e bueiros nas estações do ano em que a chuva molha a sério: simplesmente não sabe o que há de fazer, que medidas há de tomar.

Seria, é verdade, impossível prever com precisão o momento exato em que se declararia a pandemia, mas era inevitável que algo como o que aconteceu entre a Segunda Circular e o Marquês de Pombal sucedesse após quase duas décadas sem vencer o Campeonato por parte de um Clube preponderante num desporto que representa, para muitos, a última esperança de um pouco de euforia na vitória, para esquecer o quotidiano das suas vidas desgraçadas  e em permanente derrota.

Não é, precisamente, esse o papel do Presidente da Câmara, saber o que deve fazer? Não terá, por acaso, ouvido falar da tragédia de Hillsborough*) e do que se lhe seguiu? Como pode, então, assistir impávido e omisso a um ajuntamento selvático, quase com contornos de tumulto, pondo em risco a ordem pública e a salvaguarda do direito à saúde de parte significativa dos munícipes?

Falta de planeamento, falta de reflexos pela Administração, paralisia política no momento, trapalhice e confusão generalizadas em plena pandemia, com fé quase absoluta na eficácia de vacinas ainda incompletamente testadas, são conclusões que sintetizam bem o que se terá passado.

Apesar da desolação das alternativas disponíveis, perante resultados previsivelmente fracos  nas já bem próximas eleições autárquicas, depois de pareceres negativos da Direção-Geral da Saúde e de preocupações veemente expressas pela Polícia de Segurança Pública – cujo email a Câmara alegadamente leu apenas dois dias depois de ter sido enviado -, temos a Tutela, o Partido Socialista e o sucessor tacitamente indigitado do seu Secretário Geral a procurar sacudir a água do capote e alijar responsabilidades, escudando-se, indevidamente, numa lei que, por acaso, até é bastante clara e não dá cobertura às habituais esquivas e golpes de rins. Ou a ficar em silêncio, como, uma vez mais, o eterno e irremediavelmente desajeitado Ministro da Administração Interna*).

Ante a previsível balbúrdia, pensaram, e reuniram, e pensaram, e pensaram horas estiradas sem atinar com a solução, “sempre num cenário muito difícil, que era o de saber que haveria vários milhares de pessoas na rua*), coisa que nem lhes passou pela cabeça impedir, já que tal ato de coragem politicamente irresponsável iria, sem qualquer dúvida, várias dezenas de milhar de votos custar a quem há muito se empenha desesperadamente em, procurando evitar a morte política inevitavelmente ligada à derrota, à tona de água esbracejar.

Se um écran gigante não serve para agregar multidões à sua volta, serve para quê?  E foi pedida licença? Se foi, a quem competia autorizar? Quem autorizou? Porquê?


4. Desmandos a Mando do Futebol

Uma das utilidades sociais do desporto é o facto de permitir drenar a animosidade naturalmente latente em cada indivíduo, assim não sendo se estranhar que o extravasar de emoções aconteça, por vezes, sob a forma de violência bestial e selvagem vinda de brutos acéfalos, indiferentes a quaisquer tentativas ou formas de sensibilização, e que apenas podem ser controlados pela força.

Aquilo a que assistimos pela televisão não são manifestações de alegria, porque não se sabe, sequer, o que é alegria na selva moral onde vivem aqueles bandoleiros desperados, no seu deserto intelectual. Já se sabe que não têm culpa da má sorte que os persegue; que a culpa é um bocadinho de cada um de nós ou de todos nós; que, no estado a que, por nossa causa, chegaram já não têm recuperação possível e por aí fora. Mas, independente de tudo quanto, a seu respeito, possam dizer e possa dizer-se têm de ser controlados; e, se não houver como os controlar, têm de ser punidos, judicialmente afastados do nosso convívio, por magistrados apolíticos e não rendidos aos encantos do assim chamado desporto rei ou de qualquer dos seus clubes, independentemente da dimensão. Não é em vão que futebol é futebol, e o resto são meras modalidades das quais, na maior parte das  vezes, até estranhamos ouvir falar.

Somos economicamente escravos do futebol porque futebolistas e seus treinadores são, por assim dizer, o único produto que lá fora nos granjeia alguma daquela notoriedade essencial à captação de massas de turistas notoriamente parolos, mas cujos sacos de dinheiro são vitais para a atenuação possível do desequilíbrio crónico da balança de pagamentos de um pequeno país que pouco mais sabe fazer do que sorrir ao cámon para assegurar o seu sustento sem ter de pedinchar demasiado lá fora nem aumentar, cá dentro, os impostos a ponto de comprometer, num dos mais corruptos países da Europa e do Mundo, o acesso à panela da República por parte dos mais ou menos crónicos penduras de tão disponível  e cobiçado maná.

Não se diga, porém, que este analfabetismo social e cultural se deve, unicamente, aos famosos quarenta e oito anos de obscurantismo: contei, já, quarenta e sete da suposta época esclarecida e não vejo jeitos de o domínio social e político dos tugas da bola dar sinais de começar a claudicar.

5. Hooligans à Portuguesa

Podemos apiedar-nos, sentir-nos culpados até às lágrimas pela desdita desta gente eticamente enviesada e que, a cair etilizada, de tronco nu, arrastada pela polícia brada, perante as câmaras de televisão e na voz teatral, fininha e esganiçada do popular Zé Chunga que “eu não fiz mal a ninguém”.

Podemos bater no peito as vezes que quisermos, sentir o mais genuíno e premente impulso de correr a salvá-los ou, mais simplesmente, a confortar os seus amargurados e desesperançados corações: têm, mesmo assim, de ser segregados, contidos, em nome do bem maior da segurança de todos os outros que aqueles que aceitam funções governativas juraram proteger e defender, por imperativo constitucional, e independente do impacto no resultado eleitoral.

Num tempo em que ainda se testa a eficácia das vacinas, a simples existência de seres ditos humanos que, nesta ocasião como em tantas outras como, por exemplo, num convívio sem distanciamento ou máscara, não hesitam em nos expor, a todos, a novos surtos ou, mesmo, vagas da pandemia a despeito do sofrimento e da morte dos que foram infetados e dos que, agora, ficaram em risco de o ter sido - sem esquecer a dedicação e abnegação de quantos trabalharam para os evitar - diz bem da maldade, da indiferença, da baixeza de um punhado não tão pequeno daqueles tugas primários e broncos, independentemente do grau de instrução, cujo voto conta tanto como o de qualquer outro, mas que não passam de acéfalos alarves centrados no próprio umbigo, objetivamente feio mas, para eles, tão precioso e digno.

Não se trata de um epifenómeno, mas de uma demonstração da essência daquilo em que, dia a dia, a utilização que temos vindo a fazer do progresso e da técnica está a fazer descambar a civilização como – ainda - a conhecemos; de uma antevisão do futuro se nenhuma medida de fundo no sistema educativo for tomada para o evitar, se nada de eficaz for feito em prol destas pessoas, para dar repouso ao seu desespero latente, para romper neles a crosta do torpor, da indiferença e da inconsciência que, cada vez mais, os afasta dos demais.

Que mensagem estavam, afinal, aqueles indivíduos a tentar passar, que ideal pretendiam, ao abrigo do direito de manifestação, estar a manifestar?

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Os autodenominados manifestantes não expressaram concordância ou discordância com o que quer que fosse. Quando muito, reuniram-se na expressão mais pobre do termo, já que nenhum assunto ali foi tratado. Mais simplesmente, ajuntaram-se amontoaram-se para fazer barulho. Nada mais.

Um mar de gente que, tal como as baleias vão morrer à praia, os usos e o instinto guiaram, amalgamados e sem máscara, para o inevitável Marquês de Pombal. Uma celebração apenas para tornar célebre o feito de meia dúzia de privilegiados, um ajuntamento sem qualquer conteúdo intelectual ou ideológico, uma festarola perigosa nestes tempos de preocupação sanitária e económica, que, como tal, deve ser encarada.

Proponho, assim, a introdução, na Constituição, de um art.45º n.º 3 especificando que “os direitos de manifestação e de reunião não abrangem os eventos de caráter particular, os de índole meramente lúdica nem os relativos a comemorações de âmbito limitado a associações de natureza não política nem sindical, os quais serão regulados nos termos gerais e nos da legislação especial aplicável”.


6. Os Poderes Políticos Foram Eleitos, Nomeados e Mandatados para quê?

A esquálida atuação do poder político contra esta mole humana destacou meios policiais em tão parca quantidade que amiúde se viram forçados a recuar, a reagrupar, a tomar medidas para se proteger.

Com polícias agredidos e feridos, seria de esperar que alguém fosse chamado a pagar por tais crimes. Estamos, porém, em Portugal, paraíso dos brandos costumes, e os políticos e os politiqueiros bem sabem que assim é, pelo que, com a desorientada ação ou com a crónica tendência para a inação, pouco ou nada estão, afinal, a arriscar.

Estamos, também, no Portugal que vai, como sempre, ficar impávido perante o Rt de 1,1 ontem registado no Continente e que acaba de determinar a exclusão da zona verde - sem quarentena obrigatória - na classificação do Reino Unido, automaticamente implicando uma catástrofe económica para o turismo, sobretudo para o Algarve onde o cancelamento de reservas se não fez esperar.

Falta, agora, saber o impacto das comemorações, no Porto, da final da Champions, que fará com que o Presidente da Câmara Municipal do Porto poucas razões tenha, também, para se gabar. Falta, esclarecer, por que foi permitida a presença dos hooligans na Cidade Invicta para uma final entre duas equipas ingleses, quando, em Coimbra, só a uns quantos convidados foi permitido assistir à final da Taça de Portugal.

Portugal continua à deriva, entregue a uma equipa governativa incompetente e totalmente dependente de um Primeiro-Ministro que continua ausente, aproveitando a oportunidade única de campanha eleitoral que a Presidência Portuguesa da União Europeia representa para as suas aspirações a um importante cargo europeu.

Ao aceitar, apesar de tudo, manter-se em funções, poderá o infeliz e desajeitado Ministro da Administração Interna estar a fazer um enorme favor ao amigo que o nomeou, mas é incomensurável o dano que, nessas mesmas funções, causa a cada um dos desgovernados que agora somos.

Por sua vez, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa demonstrou, uma vez mais, não ter a mais ínfima qualidade para almejar o alto cargo de primeiro-ministro, furtando-se a agir com determinação e firmeza quando as circunstâncias, inegavelmente, o exigiam. Faz lembrar aqueles miúdos que limpam as mãos à camisola branca para ninguém ver que estavam sujas, porque ninguém lhes disse - nem têm discernimento para entender - que a porcaria se vê muito melhor na roupa do que nas mãos.

Contas feitas, e porque o que importa é a gente divertir-se e conviver, lá irá a incompetência impor-se nas eleições aí à porta, um pouco como naqueles eventos de certas associações desportivas em que apenas há dois competidores inscritos e um deles, por falta de comparência do outro, o título de Campeão lá acaba por ganhar.

Ut flatus venti, sic transit gloria mundi

sábado, 27 de fevereiro de 2021


Probabilidades: O Jogo da Governação

(Introdução à Secção ‘Política’)

"O bom político é quente no coração e frio na ação:
seja qual for a motivação, quem governa para ser ou parecer bonzinho,
para agradar a uns ou a todos, está condenado a praticar,
maioritariamente, o mal resultante da incompetente governação"


1. Da Razão de Governar com a Razão
2. Um Dia em que a Objetividade Falhou
3. Da Improvável Verdade
4. Demagogia Pura e Dura
5. Notas Finais sobre a Desgovernação


1. Da Razão de Governar com a Razão

Sou tão sensível às necessidades e anseios humanos como qualquer outra pessoa, tirando os mais ou menos sociopatas desta definição.  O que vou dizer não deve, assim, ser confundido com condenável indiferença ou indizível frieza;  apenas considero que, tal como a política deve viver separada das religiões, também o mandato democraticamente conferido aos órgãos de soberania não visa cuidar dos sentimentos e dos estados de alma daqueles que da governação dependem para o funcionamento da sociedade enquanto sistema organizado e, no momento do voto, pedem para ser governados:  passa, simplesmente, por, uma vez legitimada pelo voto a orientação política proposta aos eleitores, se ocuparem os empossados de elaborar e publicar normas que assegurem que esse funcionamento decorrerá de forma eficiente e eficaz, só em função dele devendo, casuisticamente, ponderar-se para que lado deverá, aqui e ali, oscilar a balança das promessas eleitorais.

Errou o rei que no século XVII terá dito: “L’État c’est moi”.  À época, como em todos os tempos e em toda a parte, o Estado somos todos nós, desejavelmente funcionando num sistema devidamente estruturado e coerente, qual máquina bem desenhada, fabricada, montada e oleada;  e  o Direito é o manual de instruções da máquina do Estado que cada um de nós integra na qualidade de cliente, de parceiro ou de fornecedor, àquele cabendo regular e fiscalizar as relações entre todos nós e entre cada dois de nós.

Ora, na fabricação, operação e manutenção de qualquer mecanismo, espera-se que utilizem os seres humanos a cabeça, e não aquilo que lhes bombeia o sangue até aos pulmões.  Por maioria de razão, o mesmo deverá acontecer, e de forma ainda mais isenta e objetiva, com quem propõe ao tal Estado que somos encarregar-se da respetiva governação:  não se pode escrever no papel as leis do coração.

Exemplificando, o ato de roubar constitui crime punível nos termos dos artigos 210º e 211º do Código Penal Português*). Mas roubar não é proibido porque isso não se faz, por ser feio: não é a noção subjetiva de feio, de socialmente condenável, que deve motivar a decisão de punir o roubo, e igual objetividade deve imperar na génese e na aplicação de qualquer outro preceito, penal ou não, em qualquer contexto legal ou circunstancial e em qualquer sede legislativa que consideremos.

Os estados não nos permitem roubar porque privar, pela força, os cidadãos dos seus bens patrimoniais constitui grave atentado à estabilidade emocional, à segurança e, eventualmente, à integridade física daqueles, além de produzir um inevitável impacto negativo, não apenas na situação pessoal da vítima, mas também na qualidade da sua prestação quotidiana em prol dos demais - podendo, até, ficar ela inviabilizada nos casos de violência física ou psicológica extrema.

Outras objeções à conduta criminosa naturalmente militam, entre elas o sério impacto nas contas do Estado produzido pelo muito elevado dispêndio inerente à busca, perseguição e punição de criminosos, já para não falar da indevida alocação de recursos necessários ao funcionamento das forças policiais e dos órgãos judiciários, como as entidades investigadoras e os tribunais - já que optar por deixar o ato impune sempre estará fora de questão, seja pelo efeito multiplicador do exemplo, seja pela probabilidade de repetição do ato pelo mesmo agente, entre outras razões.

Coincidentemente, ocorre que roubar é feio, não se faz;  mas isso é algo que tem a ver com valores morais e ditames religiosos, com a consciência de cada um, coisa que aos detentores do poder não deve interessar enquanto meros legisladores e gestores que são, sem mandato relativamente ao que é do foro íntimo dos cidadãos.

Quem rege os destinos de um país é, neste plano, comparável ao desenhador ou fabricante de automóveis, que desempenha o seu papel no processo de fazer este ou aquele modelo funcionar:  se o carruncho vai servir para transportar doentes ou para assaltar bancos, é algo que, enquanto desempenha a sua função, o não deve, o não pode preocupar.  Caso contrário, permaneceria inerte, já que automóveis – e tudo o resto, porventura – suscetíveis de servir intuitos criminosos sempre seria pouco ético fabricar.

Pode, então, um governo legislar contra o costume? Tecnicamente, sim, além do que sempre haverá quem diga que a moral não é universal nem objetiva, que cada sociedade tem a sua, e que quem manda tem o poder de, através da lei, a alterar. Mas parece também legítimo assumir que legislar - ainda que racional e objetivamente - contra o costume legitimamente estabelecido não deixará de desencadear a revolta e os custos sociais e económicos a ela inerentes. Nesse sentido, a resposta à pergunta deverá ser “não”.

 

2. Um Dia em que a Objetividade Falhou

O bom político é quente no coração e frio na ação: seja qual for a motivação, quem governa para ser ou parecer bonzinho, para agradar a uns ou a todos, está condenado a praticar, maioritariamente, o mal resultante da incompetente governação. O mesmo acontece com quem, perante as dificuldades, age como se em estado de negação vivesse, especialmente se, na prática política, recusa aceitar, por um lado, que sem pessoas vivas não haverá quem governar e, por outro, que sem saúde as pessoas tendem a não viver muito tempo, pelo que em breve não haverá muito quem governar;  e que resulta, assim inútil e contraproducente cuidar das também importantes questões da educação, da cultura, da economia e da imagem externa de um país antes de assegurar a saúde e, com ela, a sobrevivência de governados que sobejas provas vão dando de as respetivas vidas não saberem governar.

Num texto introdutório como este, seria deslocado desdobrar o praticamente infindável rol de exemplos que, com a maior das facilidades, poderia seguir-se.  Mas deixaria, outrossim, diminuída a triste realidade não referir aquela que acaba por ser, nos tempos que correm, porventura a mais eloquente e grave demonstração do absoluto contrário deste frio mas, desgraçadamente, cada vez mais acertado arrazoado positivista.  Encontramo-la na atitude lamecha, no monumento ao facilitismo - não confundível com liberalismo -, à irracionalidade, ao desnorte e à falta de estratégia e, consequentemente, à falta de firmeza nas sedes legislativa e executiva do Estado Português, plasmados no pouco esclarecido, pouco sensato e nada oportuno aliviar das medidas de contenção da pandemia de COVID-19*) durante o período natalício do ano de 2020.

Um dos maiores pecados da Humanidade é a eterna propensão para se maravilhar até com o mais ínfimo dos seus feitos, e os políticos portugueses ficaram, quase todos eles, ingenuamente – ou convenientemente – extasiados com o exemplo, o milagre da primeira vaga, confundindo o atordoamento pelo medinho rasteiro e inconfundível que fez os ditos portugueses em estado de choque ficar meia dúzia de semanas em casa a maldizer a triste sina, com a lição de civilidade e de cidadania que não deram porque aquilo que não tem ninguém pode dar.  A hipocrisia deste civismo bem se viu nos meses que se seguiram, com as toalhas de praia coladas umas às outras, as festarolas, as jantaradas, enfim, um Verão como qualquer outro, para gáudio do inimigo silencioso que tanto anda na praia, como em casa, como onde quer que um hospedeiro curta a vida.

Se o tão propalado milagre cívico*) o fosse mesmo, teria, bem antes do segundo confinamento, a quantidade de novos casos naturalmente baixado mediante a mera divulgação das recomendações emitidas – apesar da trapalhada comunicacional que as caracterizou -, e não à bruta quando, depois do Natal, tudo estava já perdido*), Portugal tinha ascendido ao primeiro lugar na escala da asneira e, sobretudo, começou, junto dos cívicos governados, a constar que estavam as forças policiais a autuar a sério e as coimas a doer*).

As coisas não acontecem porque a gente quer:  acontecem, porque as fazemos acontecer, e, se os políticos existem, é porque as pessoas necessitam de quem as governe, de quem por elas faça o que não sabem fazer.  Em lugar de confiar em quem precisa de ser governado – em boa parte dos casos por, sem os irresistíveis créditos bancários e não tão bancários, nem a sua vida privada saber orientar -, um governo deve analisar os dados, ouvir, refletir, ponderar.  Depois, decidir tendo em vista o bem objetivo da generalidade dos governados, e não acarinhar a hipócrita pieguice de quem diz morrer de saudades dos velhos em cima de quem não põe a vista desde o anterior Natal;  e isto aplica-se não só aos governos, como a quem lhes faz oposição e concordou com a abstrusa decisão de desconfinar, talvez “por prevalecer o número dos votos mais que o peso das razões”.

 

3. Da Improvável Verdade

Não é verdade que as probabilidades interessem só aos jogadores.  Nem principalmente, até.

Dado que a certeza absoluta não existe, jamais qualquer governo poderá basear nela a sua atuação.  Governar é gerir probabilidades, pelo que é inadequado e incompetente o governo que nelas não acerta e se desculpa por o Futuro não poder prever.

Os jogadores baseiam as probabilidades deles em dados inconsistentes, reconhecidamente aleatórios e que só proporcionam ganhos a quem tem uma grande falta de azar.  Já dos governos exige-se que planeiem partindo de hipóteses sustentadas em informação científica proveniente das mais diversas áreas do conhecimento e propiciadora de expetativas realistas de sucesso incomparavelmente maiores do que as de qualquer jogador.

Exige-se, também, que ajam:  de nada interessa um governo que parece achar que, se deixar a janela aberta, a mosca acabará por sair.  A mosca, talvez.  O vírus, não sai.

Eram sobejamente badaladas as nefastas consequências da forma hiperliberal com que certo país de dimensão semelhante ao nosso encarou a pandemia*), adotando táticas de pseudo-combate consideradas tão escandalosamente ineficazes que as mais altas personalidades do Estado tiveram, depois, que se desculpar*) – apesar de o escandaloso resultado ser, em termos agregados, muito próximo do português, pelo qual ainda ninguém ouvi desculpar-se.

Por cá, existia, desde meados do Verão, sério e fundado alarme da comunidade científica quanto a novas vagas e a mais contagiosas e mais letais estirpes.  Relatos não faltavam do ambiente vivido em Portugal de costas para o vírus, sempre de grande bonomia e descontração.

Tudo isto recomendava que, nas diversas vertentes, muito maiores restrições à atividade e à liberdade por via legislativa fossem impostas a fim de evitar a catástrofe social e económica que se seguiu ao confinamento dos primeiros meses de 2021 e relativamente à qual, à data em que escrevo, ninguém tem, ainda, a mais pálida ideia da verdadeira dimensão.

O facto de tão eficaz se haver revelado o confinamento cumprido logo a seguir ao Natal demonstra bem que, tivessem sido tomadas medidas respeitando os alertas inequívocos da generalidade da comunidade científica, teria ele funcionado - e poupado sequelas e vidas – no período do Natal.  Em claro detrimento da vida e da saúde, optou-se, ao invés, por proteger a educação, a economia e a imagem, com base na conveniente tese contrária defendida por poucos ou por um só cientista, contra os muitos restantes.

Consequentemente, pouco ou quase nada foi feito, quiçá na esperança pueril de que as coisas se resolvessem;  e, se algo corresse mal, sempre haveria um ou outro cientista subserviente, desalinhado ou criativo cujas teorias incompreensíveis para a esmagadora maioria poderiam ser desenterradas em defesa do indefensável -  como lá por fora acontecera.

Resultou, pois, inevitavelmente desastrosa a clamorosa cedência natalícia às coisas do coração e da eleição, em intolerável detrimento da razão, prova acabada de que, tal como os vírus, a demagogia está por toda a parte, e com idêntica ou maior capacidade de se replicar.

Acontece que, em democracia, mesmo a demagogia – aqui disfarçada de incuráveis otimismo e confiança – não pode servir para dissimular a verdade.  Asneira feita, só mesmo não sabendo o que é governar e gerir – nomeadamente a comunicação - poderá alguém procurar justificar-se com pérolas como “planeámos, mas não para uma coisa desta dimensão”, ou “se soubéssemos da variante inglesa, teríamos endurecido o Natal”.

Sabiam, sim, já que desde Agosto se não falava de outra coisa.  Só não souberam de forma efetiva, porque não quiseram, porque não lhes conveio saber;  mas, não faz mal, não é feio, já que talvez tenha alguma razão quem escreveu que “a linguagem da política é concebida para a ocultação da verdade”.

Não nos esqueçamos no entanto de que, por mais forte que seja o poder, a Incapacidade para admitir o erro é sinal de bem fraca autoridade.

 

4. Demagogia Pura e Dura

Existe, é verdade, a promessa eleitoral de se ser fiel a determinados princípios e de seguir uma também determinada linha política – além de ser recomendável honrar eventuais cedências pré ou pós-eleitorais.  Mas, tal como acontece com a generalidade das obrigações, honrar um compromisso apenas é exigível se se mantiverem as condições em que é assumido:  se um edifício arde ou colapsa, não podem os inquilinos legitimamente esperar que os proprietários mantenham os contratos de arrendamento – os quais, aliás, a própria lei se encarrega de fazer caducar.

Como podem, pois, num quadro de sucessivos colapsos dos edifícios social e sanitário, de imposição de estados de calamidade, de emergência e sei lá mais de quê, alguns desmiolados dizer “nem menos um direito por causa da pandemia”, dichote impróprio entre tantos outros que palavras nem encontro para qualificar?

Como, na mesma linha e para procurar conservar uma nada convincente aparência de igualdade onde não é devida e para fazer o frete a radicais sem argumentos válidos que esbracejam para se manter à tona da representação parlamentar, pode um governo supostamente moderado insistir em, quando há muito se sabia da proliferação de novas e mais contagiosas e letais estirpes do vírus, manter em funcionamento um sistema de ensino presencial que ocupa cerca de um quinto dos portugueses ?  Especialmente sabendo-se que o alardeado milagre cívico não passa de uma balela e que dois milhões de seres humanos, em muitos casos sem máscara, distanciamento social ou uma borrifadela de gel, entre a escola e o pavilhão das festas foram por aí largados a passear ?

Há que admitir que a génese da desigualdade não esteja no governo, neste ou naquele;  mas onde quem manda inequivocamente falha a responsabilidade de a atenuar é em, depois de, fanfarronando, se propor gastar meio milhar de milhão de euros a informatizar quem, quando esta história triste começou, ainda não tinha computador, preferiu apostar que a tal mosca acabava por sair da sala e não os comprou, fazendo com que as vítimas da desigualdade continuassem a não os ter quase um ano depois.

Não é possível deixar de evocar aquela história do Magalhães*).  Não o Fernão, o outro, que, há anos atrás, também ia ser distribuído como a tábua de salvação da mais desfavorecida população…  Viu-se.

A conclusão pela desigualdade, na telescola, por parte de quem computador não tem parte do princípio de que as aulas servem para alguma coisa, apesar da indisciplina lamentável, da duvidosa qualificação de parte de docentes que resistem à própria avaliação, da instabilidade e aleatoriedade dos programas deixados à sorte, cada um fazendo o que pode para ensinar o que bem entende por aqui e por acolá – mesmo coisas que não tinha nada que ensinar.

Esquece-se, porém, quem manda de que, mesmo com aulas presenciais, muito maior desigualdade ocorre, a todo o tempo e há muitos anos, por falta de meios informáticos, por quase absoluta falta de acesso à mais eficiente forma de aquisição da informação com que os ensinamentos do professor podem ser complementados.

A preocupação dos órgãos legislativos e governativos deveria, mesmo antes de a pandemia emergir, estar em atempadamente distribuir os tais computadores*) – Magalhães ou outros -, e não em, uma vez mais atirar poeira demagógica aos olhos de quem não pode deixar de contemplar tão grande desilusão, enquanto se enterra, em gigantes empresariais moribundos ou falecidos, muitas vezes mais do que o tal meio milhar de milhão.

De uma maneira geral não há, neste país, quem realize.  Pensa-se e divaga-se com facilidade mas, chegados à hora das realizações, das provas reais, poucos são os que resistem à seriedade dos problemas”.  Ao que parece, sempre assim foi, já que, decididamente, este pensamento não nasceu num adepto da liberdade, quase levando a crer que, de alguns dos atuais males em democracia, se padecia também na ditadura de então.

5. Notas Finais sobre a Desgovernação

A missão dos políticos reside em elaborar leis que, naquilo que é prático, pela sua racionalidade, razoabilidade e clareza contribuam para eliminar o receio dos nossos corações.

Não basta a um governo ter uma certa razão:  quem se propõe gerir os destinos de uma nação proclama a própria aptidão para, em tempos fáceis ou difíceis, fazer o que é certo, após avaliar com objetividade e isenção.

Imprevistos, sempre os houve, mas ter de improvisar, de gerir a mudança em nada se assemelha a desgovernar.  O desgoverno apenas acontece quando falta o substrato, quando o que parece não é, e o que é lá não parece estar.  Inexoravelmente, a ausência de um sólido arrimo na razão conduz ao primado da politiquice,  do clientelismo político e, acima de tudo, ao pânico do futuro impacto económico e dos dissabores que a qualquer político ele traz.

Por parte dos desgovernados, tal falta leva à insegurança e à incompreensão do sentido das normas, uma e outra decorrentes da constante inflexão do sentido das decisões, confusamente explicadas por falas desnorteadas e disparatadas, que nada têm a ver com verdadeiros discursos, já que, longe de dar forma a quem racionalmente discorresse sobre as situações apresentadas, amiúde mais não plasmam do que desesperadas, impreparadas e ziguezagueantes tentativas de encontrar adequado itinerário cognoscitivo que conduza a uma sábia decisão.  Mais não conseguem, ao invés, do que atirar, àqueles que os contrataram para que os governassem, contraditórios mosaicos de um caleidoscópio de decisões fatalmente ineficazes, quantas vezes arbitrárias e de indiscerníveis sustentáculos político, administrativo e intelectual.

A democracia não é, por definição o regime em que um povo vive condicionado por indivíduos sem estratégia que se vão equilibrando no bote do poder mediante uma gestão da coisa pública eminentemente casuística, pintalgada de tiques autoritários e constantes remendos legislativos.  Uma coisa é ser um político hábil;  outra, um bom governante.  O primeiro assenta que, nem uma luva, ao próprio e ao partido;  o segundo, serve muito melhor à República e à população.

Jamais os ideais políticos, mas apenas a competência, o empenhamento e o bom senso alguma vez governarão eficazmente um país, tornando-se evidente que a vacuidade crescente do ato político decorre da cada vez menor competência para governar, materializada na falta de objetividade e de razão de ser do mesmo.  Tal falta é o fruto amargo de uma visão global deficiente, de uma estratégia incipientemente esboçada e conducente, a prazo, à generalização do caos que muitos confundem com a verdadeira liberdade, com uma fantasiosa igualdade, direito que, despudoradamente, alguns pretendem estender muito além daquilo que é igual.

 
Sobretudo em situações de catástrofe, nada resolve a inércia atuante, processo quiçá inventado e desenvolvido em Portugal.  Omnia videre, multa dissimulare, pauca corrigere“ poderá ter funcionado no século VI;  mas, agora, decididamente não.  Não, quando a consequência imediata de olhar para o lado ou de confiar na sorte é a perda de vidas pela qual, ainda que por negligência, um governo é responsável e que, contrariamente ao prejuízo económico, nada poderá fazer para proporcionar reparação.

A mais sólida manifestação do poder é não ter de o exercer, mas tal milagre apenas é possível depois de as seringas da educação e da formação terem feito jorrar para dentro de uns setenta por cento da população a vacina contra a portuguesinha propensão à sistemática e espertalhona violação de determinados e indispensáveis princípios, só assim se conseguindo, talvez, uma razoável imunidade de grupo com a inoculação.

Porque, princípios, há, sim.  Muitos, sérios, e estruturantes de qualquer país civilizado.  O menor de todos não será que, com o que é dos outros, como a saúde pública e a coisa pública, não se brinca.  Faz-se o que se tem de fazer.  Se não se sabe o que fazer, põe-se lá outros a governar.

Nenhum governo pode passar a vida a fazer a vida esperar.

Sic transit gloria mundi