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quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Joacina Katar Moreira e o Elogio da Oligofrenia
sábado, 28 de agosto de 2021
Ainda não Sabe o que É Equitenência?
"Bem melhor do que o título Plano de Recuperação e Resiliência
teria sido a menos espampanante escolha do título Plano de Recuperação e Resistência
para significar que, graças ao dito plano, a economia, após recuperar,
seria
capaz de suportar futuros impactos sem sofrer nova quebra"
Oriunda do latim aequitas, -atis (equidade) e tenens, -entis (o que ou aquele que detém), equitenência equivale ao inglês equitenence e, embora pouco divulgada, além do significado vocabular, o termo releva no campo da sociologia na medida que esta está relacionada com algumas palavras essenciais à compreensão da cada vez mais complexa realidade social em que nos vemos respirar.
Há, também, quem utilize resiliência apenas para enfeitar designações de planos de recuperação, quando, na circunstância recuperação e resiliência significam, praticamente, a mesma coisa.
Bem melhor do que o título Plano de Recuperação e Resiliência teria
sido a menos espampanante escolha do título
Plano de Recuperação e Resistência para significar que, graças ao dito
plano, a economia, após recuperar, seria capaz de suportar futuros impactos
sem sofrer nova quebra.
Mas, afinal, quem se importa? E resiliência é bem mais elaborado do que resistência, até tem mais uma sílaba, e demonstra que conhecemos mais uma palavra difícil… que não sabemos o que quer dizer.
- x -
Esta preocupante tendência linguística para a inconsequente e irresponsável
turbulência, tem, também, a ver com uma
equitenosa propensão de certas pessoas para, por se considerarem de
particular excelência, de qualquer mais ou menos medíocre instituto ou
associação aspirarem à presidência. Uma vez alcançado o poder –
equitenente objeto de desmesurada apetência -, independentemente da
inexistência da recomendável competência, é ele exercido com aquilo a que, em
equitenoso assomo de verbal incontinência, qualquer
equitenólogo rapidamente classificaria como ética degenerescência.
A despeito da tendência para manter a aparência, quem dessas organizações
ocupa a presidência rapidamente passa a padecer de grave equitenose,
dedicando-se, de preferência, a discursar com particular truculência, enquanto
deixa processos e procedimentos em eterna e abandonada pendência para se
dedicar a atividades relativas a outas presidências que ocupa por inerência –
por vezes com um grande rasto a pestilência, mas com alegada inocência -,
deixando os ignorados administrados na maior efervescência, enquanto,
despeitados, lavram pelas redes sociais comentários da maior contundência e
passam noites inteiras a digitar na sua pacata residência.
Mas com o que tem, afinal, a ver este equitenencial e intragável
arrazoado acerca da equitenência?
- x –
Equitenência significa... nada. Absolutamente nada, como
inevitavelmente se conclui da vacuidade do esvaziado escrito que antecede.
Se com todas as ências que acabo de referir equitenência algo tem a ver é com a simples terminação em ência, o que sempre é mais do que alguns significados por aí atribuídos, às palavras difíceis, por dicionários que entre si competem na quantidade de sinónimosque, quase ao peso, para cada vocábulo que se pretende definir nos são apresentados, em desenfreada epidemia polissémica.
Não me perguntem qual o processo criativo elaborado pelo qual cheguei ao termo
equitenência: não existe. Dei, simplesmente, comigo a pensar nele, no
que poderia significar; como às vezes sucede com um daqueles temas melódicos
que, vá lá saber-se porquê, às vezes parecem não querer sair-nos do
ouvido.
Pesquisei, e encontrei... nada de nada, fosse em que idioma ou dicionário
fosse, do mais elaborado ao mais elementar.
Dei, pois, comigo a refletir como é fácil, sem conteúdo ou base conceptual, um
palerma qualquer gerar neologismos prenhes daquela presunção bacoca que nos
leva a, avidamente, procurar palavras complicadas para com elas convencer quem
nos ouve de que somos os mais eruditos letrados que é possível encontrar; ou,
no mínimo, que com outros ilustrados podemos, sem dificuldade, competir
ou ombrear.
Como escreveu um presbítero português que, no século XVIII, ensinava a estudar, “estão persuadidos que a eloquência consiste na afectação e singularidade e, por esta regra, querendo ser eloquentes, procuram de ser mui afectados nas palavras, mui singulares nas ideias, e mui fora de propósito nas aplicações”*). Afinal, é tão mais belo e tão simples ser... simples! Dizer resistência, quando não se trata de resiliência...
Apesar da terminação coincidente, equitenência nada tem, bem pelo contrário, a ver com a cada vez mais escassa benevolência; com a envolvência e carinho que nos merece o próximo; com a inocência de uma mente adulta que, em certas coisas, se quer infantil; com a permanência e constância com que devemos manter-nos junto de quem do nosso cuidado necessita; com a desejável florescência e desenvolvimento de tudo quanto é bom; com a discreta transcendência de nós próprios, escondendo-a dos outros; com a deferência para com os que nos merecem respeito, que são todos. Equitenência nada tem a ver com a continência nos nossos apetites e anseios; com a paciência para com os que estão ainda a aprender o que outrora aprendemos nós; com a prudência que a experiência aconselha para as mais simples decisões da vida; com a previdência na gestão do Futuro de cada um; com a consciência com que deve exercer o seu mister o verdadeiro profissional.
Digo que equitenência tem a ver com nada disto, porque, como a
inventei, devo saber…
- x -
Massajando um pouco a origem latina, quisesse eu atribuir um significado a equitenência, poderia escolher, por exemplo, a teimosia de alguns em se aterem à ideia parva de que todos somos iguais em tudo, numa abusiva extensão da ideia de equidade (aequitas) inerente ao princípio da igualdade de oportunidades e de direitos, que inevitavelmente desvalorizado se torna por via de tal ideia.
O princípio, esse sim, deveria ser sagrado em qualquer texto constitucional, deveria ser honrado na aplicação do sistema legal… e deveria ser salvaguardado de deturpações ilegítimas por quem dele, para algumas duvidosas e radicais causas, ilegítimos dividendos não dessa de procurar obter.
Nega este mal cheio punhado de pessoas a mais visível evidência, esquecendo, numa altura em que se fala de solidariedade e de entreajuda, que, se fôssemos mesmo iguais - estruturalmente, potencialmente -como pretendem, qualquer um de nós seria capaz de fazer o que todos os outros fazem, pelo que raramente necessitaríamos dessa ajuda uns dos outros.
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Ora, pensando bem, vou antes adotar o termo equitenente para significar alguém que tem um poucochinho de cada uma daquelas ências de que primeiro falei, as dos ditos poderosos. Como o termo não existe, tenho a certeza absoluta de que ninguém, mas ninguém mesmo, me irá entender; e ao mesmo tempo, a certeza quase absoluta de que, como a ignorância é, para muitos, indizível vergonha, muito poucos mo irão dizer.
Por fim, deixo aos equitenentes mais vivazes a possibilidade de dizer
que foram eles que inventaram o conceito de equitenência.
Prometo que não vou dizer…
sábado, 5 de junho de 2021
Sporting: Direito de Comemoração?
"Ao aceitar, apesar de tudo, manter-se em funções, poderá o infeliz e
desajeitado
Ministro da Administração Interna estar a fazer um enorme
favor ao amigo que o nomeou,
mas é incomensurável o dano que, nessas
mesmas funções,
causa a cada um dos desgovernados que agora somos"
2. O Imperativo Legal de a Câmara Municipal de Lisboa Impedir as Comemorações
3. O Improviso Quase Encomendado
4. Desmandos a Mando do Futebol
5. Hooligans à Portuguesa
6. Os Poderes Políticos Foram Eleitos, Nomeados e Mandatados para quê?
1. Direito de Manifestação ou Direito de Comemoração?
Mais do que uma necessidade, a desambiguação vocabular*) constitui imperativo de quantos primam por fazer-se entender na significação estrita que quiseram exprimir, mormente em questões de índole jurídica ou política, por serem das que mais expressivamente afetam a vida e o bem-estar individual e coletivo e, no caso de que aqui trataremos, dando especial relevo às relacionadas com a preservação da saúde e da vida num cenário de epidemia ou de pandemia - de COVID-19 ou de qualquer outra que, a mais ou menos breve trecho, não deixará de vir.
Exemplificarei com aquilo que ocorreu em Lisboa*) e um pouco por todo o Portugal*) no dia em que se soube que, ao fim de dezanove anos de jejum, o campeão nacional português de futebol de 2020/2021 iria ser o Sporting Clube de Portugal.
- x -
A diferenciação entre o direito de reunião e o direito de manifestação não mereceu, por parte dos Constituintes de 1976, ser contemplada no Diploma Fundamental. No entanto, enquanto o direito de reunião não tem uma conotação necessariamente política, pode significar o que quisermos, o direito de manifestação radica na própria ideia de democracia, parecendo inegável ser dirigido à divulgação e salvaguarda dos direitos políticos de cidadãos que pretendam fazer valer, junto de terceiros, os seus pontos de vista, na defesa de causas que, num quadro democrático, lhes mereçam atenção e dedicação.
Dificilmente fará, assim, qualquer sentido confundir com manifestação um ajuntamento magno de adeptos de uma associação desportiva ou qualquer outra de cariz mais ou menos lúdico, visando o simples alarde da vitória de umas dezenas de milionários que passaram boa parte do ano – e da vida - a procurar enfiar uma bola de dimensões relativamente ínfimas numa rede imensa, mesmo que esteja ela zelosamente defendida por um abnegado guardador.
Entendeu-se, pois, nos conturbados anos da génese desta já não tão jovem democracia, que o direito de reunião era algo suficientemente próximo do direito de manifestação para nem justificar que fosse contemplado em norma distinta, assim tendo o texto do art.45º acabado por dizer, sob a epígrafe “Direito de reunião e de manifestação”, que “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização” e que “2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação”.
Não obstante, o art.1º do Decreto-Lei 406/74, de 29 de Agosto, é bem claro ao interpretar o texto constitucional no sentido de que esses direitos de reunião e de manifestação apenas são reconhecidos “para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à tranquilidade públicas”, explicitando o n.º 2 do seu art.3º que “As autoridades competentes só poderão impedir as reuniões cujo objeto ou fim contrarie o disposto no artigo 1.º (…) *)".
2. O Imperativo Legal de a Câmara Municipal de Lisboa Impedir as Comemorações
O que, antes de mais, haverá que clarificar é, sob o ponto de vista vocabular, a destrinça entre objeto e fim, conceitos muitas vezes confundidos dada a semelhança terminológica entre objeto e objetivo (substantivo significando finalidade, fim), mas que, porque a letra da lei os separa, haverá, também, que na interpretação assim fazer.
As pessoas, todas as pessoas próximas, são, então, objeto, ainda que involuntário, de qualquer reunião que tenha, como objetivo, uma comemoração como a que há dias aconteceu em Lisboa, às portas do Estádio José de Alvalade e pela rua fora, até ao Marquês de Pombal*).
Exemplificando, se o promotor de determinado evento entrega à entidade competente um aviso prévio nos termos do art.2º do mesmo Decreto-Lei, tem esta o poder-dever de impedir o evento desde que, fundamentando, conclua que o direito dos cidadãos à segurança sanitária em tempos de pandemia será seriamente comprometido pela realização do evento nos moldes previstos, ou que dela resultem danos à ordem e à tranquilidade pública.
Saliente-se que, contrariamente ao que por aí se tem dito para alijar responsabilidades evidentes, nada têm estas disposições a ver com qualquer estado de calamidade ou de emergência, sendo de aplicação genérica, mesmo em conjunturas consideradas normais.
Assim, dúvida não pode existir de que a autoridade do Estado jamais e de forma alguma estará limitada na defesa da ordem e na salvaguarda dos direitos dos cidadãos contra os desmandos de meia dúzia de alarves que preferem ignorar que têm o direito a quase tudo, mas não àquilo que a lei expressamente, no interesse de todos, proíbe.
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Refira-se, ainda, que embora a redação original do n.º 1 do art.2º dissesse que deveria ser avisado “o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito”, com a extinção do cargo de governador civil a capacidade para receber o aviso passou a ser exclusiva dos presidentes da câmara (cf. art.2º da Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro*)), assim inexistindo qualquer dúvida ou uidade relativamente a ela.
Não é, pelo exposto, verdade que “Dentro do que é o nosso quadro de competências, a Câmara de Lisboa não tem de autorizar manifestações, nem reuniões. Ou elas acontecem espontaneamente ou tentam organizar-se com os promotores"*) . Ocorre antes que, longe de corresponder a uma inconstitucionalidade material, a delimitação casuística, por parte das câmaras municipais, do direito de manifestação no quadro da legislação já referida é um imperativo legal, que em nada diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (cf nr.3 do art.18º da Constituição da República Portuguesa).
Por fim, perante um desfilar de cidadãos fortemente etilizados numa altura em que o consumo de bebidas alcoólicas era proibido na via pública, perante milhares de indivíduos colados uns aos outros e sem qualquer proteção na cara, numa altura em que o distanciamento social é obrigatório, tal como o uso de viseira ou máscara, estes factos constituem razão mais do que suficiente para obrigar as autoridades a determinar às forças de segurança que ponham cobro ao evento ao abrigo do que diz o n.º 1 do art.5º do Decreto-Lei 406/74 – ou nos termos, já que se trata, como vimos, de um poder vinculado.
“Ponham cobro”, desde que, naturalmente, lhes disponibilizem os meios adequados*).
3. O Improviso Quase Encomendado
A competência para o desempenho de funções de gestão ou políticas é medida, essencialmente, pela capacidade de integrar, no planeamento da ação, uma precisa antevisão do resultado e a eficaz mobilização dos meios necessários à sua consecução. Bem pelo contrário, dizer que “Uma vitória do Sporting seria sempre uma realidade muito difícil para a cidade de Lisboa” *) é como se o Presidente da Câmara encarasse os efeitos mais do que previsíveis da vitória, no campeonato da Primeira Liga de futebol e decorridos tantos anos de jejum, de um dos principais clubes desportivos da Capital com a mesma dose de fatalidade com que contempla o cíclico entupimento de sarjetas e bueiros nas estações do ano em que a chuva molha a sério: simplesmente não sabe o que há de fazer, que medidas há de tomar.
Não é, precisamente, esse o papel do Presidente da Câmara, saber o que deve fazer? Não terá, por acaso, ouvido falar da tragédia de Hillsborough*) e do que se lhe seguiu? Como pode, então, assistir impávido e omisso a um ajuntamento selvático, quase com contornos de tumulto, pondo em risco a ordem pública e a salvaguarda do direito à saúde de parte significativa dos munícipes?
Falta de planeamento, falta de reflexos pela Administração, paralisia política no momento, trapalhice e confusão generalizadas em plena pandemia, com fé quase absoluta na eficácia de vacinas ainda incompletamente testadas, são conclusões que sintetizam bem o que se terá passado.
Apesar da desolação das alternativas disponíveis, perante resultados previsivelmente fracos nas já bem próximas eleições autárquicas, depois de pareceres negativos da Direção-Geral da Saúde e de preocupações veemente expressas pela Polícia de Segurança Pública – cujo email a Câmara alegadamente leu apenas dois dias depois de ter sido enviado -, temos a Tutela, o Partido Socialista e o sucessor tacitamente indigitado do seu Secretário Geral a procurar sacudir a água do capote e alijar responsabilidades, escudando-se, indevidamente, numa lei que, por acaso, até é bastante clara e não dá cobertura às habituais esquivas e golpes de rins. Ou a ficar em silêncio, como, uma vez mais, o eterno e irremediavelmente desajeitado Ministro da Administração Interna*).
Ante a previsível balbúrdia, pensaram, e reuniram, e pensaram, e pensaram horas estiradas sem atinar com a solução, “sempre num cenário muito difícil, que era o de saber que haveria vários milhares de pessoas na rua”*), coisa que nem lhes passou pela cabeça impedir, já que tal ato de coragem politicamente irresponsável iria, sem qualquer dúvida, várias dezenas de milhar de votos custar a quem há muito se empenha desesperadamente em, procurando evitar a morte política inevitavelmente ligada à derrota, à tona de água esbracejar.
Se um écran gigante não serve para agregar multidões à sua volta, serve para quê? E foi pedida licença? Se foi, a quem competia autorizar? Quem autorizou? Porquê?
4. Desmandos a Mando do Futebol
Uma das utilidades sociais do desporto é o facto de permitir drenar a animosidade naturalmente latente em cada indivíduo, assim não sendo se estranhar que o extravasar de emoções aconteça, por vezes, sob a forma de violência bestial e selvagem vinda de brutos acéfalos, indiferentes a quaisquer tentativas ou formas de sensibilização, e que apenas podem ser controlados pela força.
Aquilo a que assistimos pela televisão não são manifestações de alegria, porque não se sabe, sequer, o que é alegria na selva moral onde vivem aqueles bandoleiros desperados, no seu deserto intelectual. Já se sabe que não têm culpa da má sorte que os persegue; que a culpa é um bocadinho de cada um de nós ou de todos nós; que, no estado a que, por nossa causa, chegaram já não têm recuperação possível e por aí fora. Mas, independente de tudo quanto, a seu respeito, possam dizer e possa dizer-se têm de ser controlados; e, se não houver como os controlar, têm de ser punidos, judicialmente afastados do nosso convívio, por magistrados apolíticos e não rendidos aos encantos do assim chamado desporto rei ou de qualquer dos seus clubes, independentemente da dimensão. Não é em vão que futebol é futebol, e o resto são meras modalidades das quais, na maior parte das vezes, até estranhamos ouvir falar.
Somos economicamente escravos do futebol porque futebolistas e seus treinadores são, por assim dizer, o único produto que lá fora nos granjeia alguma daquela notoriedade essencial à captação de massas de turistas notoriamente parolos, mas cujos sacos de dinheiro são vitais para a atenuação possível do desequilíbrio crónico da balança de pagamentos de um pequeno país que pouco mais sabe fazer do que sorrir ao cámon para assegurar o seu sustento sem ter de pedinchar demasiado lá fora nem aumentar, cá dentro, os impostos a ponto de comprometer, num dos mais corruptos países da Europa e do Mundo, o acesso à panela da República por parte dos mais ou menos crónicos penduras de tão disponível e cobiçado maná.
5. Hooligans à Portuguesa
Podemos apiedar-nos, sentir-nos culpados até às lágrimas pela desdita desta gente eticamente enviesada e que, a cair etilizada, de tronco nu, arrastada pela polícia brada, perante as câmaras de televisão e na voz teatral, fininha e esganiçada do popular Zé Chunga que “eu não fiz mal a ninguém”.
Podemos bater no peito as vezes que quisermos, sentir o mais genuíno e premente impulso de correr a salvá-los ou, mais simplesmente, a confortar os seus amargurados e desesperançados corações: têm, mesmo assim, de ser segregados, contidos, em nome do bem maior da segurança de todos os outros que aqueles que aceitam funções governativas juraram proteger e defender, por imperativo constitucional, e independente do impacto no resultado eleitoral.
Não se trata de um epifenómeno, mas de uma demonstração da essência daquilo em que, dia a dia, a utilização que temos vindo a fazer do progresso e da técnica está a fazer descambar a civilização como – ainda - a conhecemos; de uma antevisão do futuro se nenhuma medida de fundo no sistema educativo for tomada para o evitar, se nada de eficaz for feito em prol destas pessoas, para dar repouso ao seu desespero latente, para romper neles a crosta do torpor, da indiferença e da inconsciência que, cada vez mais, os afasta dos demais.
Que mensagem estavam, afinal, aqueles indivíduos a tentar passar, que ideal pretendiam, ao abrigo do direito de manifestação, estar a manifestar?
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Um mar de gente que, tal como as baleias vão morrer à praia, os usos e o instinto guiaram, amalgamados e sem máscara, para o inevitável Marquês de Pombal. Uma celebração apenas para tornar célebre o feito de meia dúzia de privilegiados, um ajuntamento sem qualquer conteúdo intelectual ou ideológico, uma festarola perigosa nestes tempos de preocupação sanitária e económica, que, como tal, deve ser encarada.
6. Os Poderes Políticos Foram Eleitos, Nomeados e Mandatados para quê?
A esquálida atuação do poder político contra esta mole humana destacou meios policiais em tão parca quantidade que amiúde se viram forçados a recuar, a reagrupar, a tomar medidas para se proteger.
Com polícias agredidos e feridos, seria de esperar que alguém fosse chamado a pagar por tais crimes. Estamos, porém, em Portugal, paraíso dos brandos costumes, e os políticos e os politiqueiros bem sabem que assim é, pelo que, com a desorientada ação ou com a crónica tendência para a inação, pouco ou nada estão, afinal, a arriscar.
Estamos, também, no Portugal que vai, como sempre, ficar impávido perante o Rt de 1,1 ontem registado no Continente e que acaba de determinar a exclusão da zona verde - sem quarentena obrigatória - na classificação do Reino Unido, automaticamente implicando uma catástrofe económica para o turismo, sobretudo para o Algarve onde o cancelamento de reservas se não fez esperar.
Falta, agora, saber o impacto das comemorações, no Porto, da final da Champions, que fará com que o Presidente da Câmara Municipal do Porto poucas razões tenha, também, para se gabar. Falta, esclarecer, por que foi permitida a presença dos hooligans na Cidade Invicta para uma final entre duas equipas ingleses, quando, em Coimbra, só a uns quantos convidados foi permitido assistir à final da Taça de Portugal.
Ao aceitar, apesar de tudo, manter-se em funções, poderá o infeliz e desajeitado Ministro da Administração Interna estar a fazer um enorme favor ao amigo que o nomeou, mas é incomensurável o dano que, nessas mesmas funções, causa a cada um dos desgovernados que agora somos.
Por sua vez, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa demonstrou, uma vez mais, não ter a mais ínfima qualidade para almejar o alto cargo de primeiro-ministro, furtando-se a agir com determinação e firmeza quando as circunstâncias, inegavelmente, o exigiam. Faz lembrar aqueles miúdos que limpam as mãos à camisola branca para ninguém ver que estavam sujas, porque ninguém lhes disse - nem têm discernimento para entender - que a porcaria se vê muito melhor na roupa do que nas mãos.
Contas feitas, e porque o que importa é a gente divertir-se e conviver, lá irá a incompetência impor-se nas eleições aí à porta, um pouco como naqueles eventos de certas associações desportivas em que apenas há dois competidores inscritos e um deles, por falta de comparência do outro, o título de Campeão lá acaba por ganhar.
Ut flatus venti, sic transit gloria mundi
sábado, 1 de maio de 2021
Os Factos e os Seus Atos
"Para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado,
e facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo,por
este andar,
de estar longe o dia em que será indiferente dizer
qualquer coisa ou o seu contrário,
desde que – por artes mágicas,
porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender"
2. Polissemia que Degenera em Confusão
3. Confusão no Tribunal
4. Notas Finais
1. Descrédito Crescente dos Dicionários
O que é um dicionário?
As pessoas da minha não muito ínclita geração, habituaram-se a venerar estes
anafados volumes em papel como uma espécie de cardápio de todas as palavras
que compõem um idioma - excluindo, naturalmente, as conjugadas e declinadas,
bem como o mais pesado palavrão -, e a eles sempre recorriam ao
deparar com um vocábulo novo e, para elas, desconhecido, ou quando uma dúvida
emergia relativamente a determinado significado ou ortografia.
Dicionários – sempre em papel, já que o digital ainda não era, sequer, uma
quimera -, havia diversos, uns mais conhecidos e tidos como fiáveis do que
outros, mas todos credores do maior respeito e tidos por fiáveis e
rigorosos.
Isto, era dantes.
O mais triste é que nada disto verdadeiramente espanta, se tivermos presentes as adaptações e concessões que simultânea e constantemente vão desvirtuando até as próprias regras gramaticais, hoje em dia eivadas de explicações no mínimo criativas - embora, muitas delas, de espantosa ilogicidade -, cada um palrando como muito bem lhe apetece, indiferente à teoria e à forma desde que, melhor ou pior, lhe pareça que se faz entender.
2. Polissemia que Degenera em Confusão
A título de exemplo, uma breve pesquisa nos dicionários em linha na Internet,
mostra-nos, para a palavra facto e entre muitos outros, o significado
de “coisa realizada, ato, feito”, ou de “ação, resultado acabado ou que está em vias de execução”, “ação de fazer alguma coisa; processo”.
Para ato, encontramos, por sua vez, “ação considerada na sua essência ou resultado. [Por extensão] Feito, facto”, “Funcionamento da habilidade de atuar ou agir, ou referente àquilo que dessa
ação resulta; (Por extensão) Ocorrência ou facto”.
Quer isto dizer que, para os dicionários consultados, ato tanto pode
ser a ação como o seu resultado, e facto tanto pode ser o resultado da
ação ou ela mesma, não havendo, por este andar, de estar longe o dia em que
será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário, desde que – por
artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender.
Aplicando a esta fantasiosa cartilha a propriedade transitiva "se é verdade que, se A é igual a B e B é igual a C então A é igual a C", teremos que facto e ato são a mesmíssima coisa, o que cedo se apresentará como um rematado dislate a qualquer pessoa que se disponha a dispensar uma porção mínima dos seus neurónios a refletir sobre a matéria.
Note-se que não estamos, sequer, em presença de um caso de ambiguidade ou
vagueza, uma vez que entre uma ação (ato) e o correspondente
acontecimento (facto) não existe confusão possível: o
segundo é, sempre, resultado do primeiro, ainda que este nasça de um
ato da Natureza - ou como lhe quisermos chamar -, com isto se
entendendo qualquer coisa desde um movimento tectónico até ao ataque por um
lobo em busca da sua vianda diária, passando por tudo o resto que não decorra
de um ato humano explícito, identificável e atribuível a um sujeito, sem
prejuízo, naturalmente, da eventual responsabilidade de seres humanos em
outras ações ou omissões identificadas como causas, ainda que indiretas,
desses naturais acontecimentos.
Um incêndio é um facto, e não passa de um facto. Pode é dar-se que a causa direta desse facto tenha sido um ato, doloso (fogo posto) ou negligente (um fósforo em brasa atirado, impensadamente, ao ar), que o tenha determinado.
Um facto, ou é espontâneo, ou é gerado mediante a prática, por alguém, do ato que o origina.
Não se pratica uma cadeira: constrói-se uma cadeira, dá-se-lhe existência (facto) através da prática dos atos necessários à obtenção do resultado pretendido: serra-se a madeira, prega-se os pregos e por aí fora, todos eles atos visando a conssecução do resultado final idealizado: uma cadeira.
Para que ocorra o facto de a cadeira passar a existir, é necessária a prática de uma série de atos na sequência definida no procedimento técnico adotado pelo marceneiro. Da mesma forma, jamais uma pessoa poderá praticar um facto, apenas lhe sendo possível dar-lhe existência, torná-lo real, como resultado mediato ou imediato do ato ou dos atos que praticar.
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Qual é, então, a função de um dicionário?
Elucidar quanto aos significados que o costume sedimentado e enriquecido pela obra de consagrados autores gradualmente foi associando a cada termo ou, obedientemente, aos primeiros ir aditando todas as semelhanças, por muito ténues, que o falador mais ignorante resolver começar a associar-lhe, por ignorância, arrogância ou parola gabarolice?
Não tarda irá aparecer por aí um autodenominado dicionário que nos dirá
que, além da vintena de significados que já lhe atribuem,
rasgar significa também arrasar, dar cabo de, como agora
é uso dizer-se nas redes supostamente sociais. Será, então, caso de rasgar mas é o dito dicionário – ou melhor, de o
deletar, como alguns gostam de dizer, já que bytes ainda ninguém
descobriu como rasgar.
Ao gosto pela elegância na escrita sucedeu o mau gosto pela agressividade. Por este andar, a falta de exigência, de um mínimo de rigor, levará a que, um destes dias, rasgar signifique também… oferecer uma flor.
3. Confusão no Tribunal
Do que antecede haverá, naturalmente, que ressalvar termos como
escrita, em que
substantivos homónimos significam quer o ato de escrever, quer o seu resultado; e até o
correspondente adjetivo qualificativo, para complicar. No plano global, porém,
a proliferação vocabular não apenas traz consigo inevitável prejuízo
para o rigor e para a fiabilidade dos significados inscritos nestes
gigantescos índices de palavras, como facilmente conduz a evidentes erros
lógicos, por vezes com repercussões lamentáveis, nomeadamente em áreas
particularmente sensíveis do conhecimento e, dentro destas, a profissões cuja
dignidade imprescindível ao funcionamento do Estado nos levaria, com toda a
legitimidade, a esperar que cuidassem os seus agentes de falar e escrever de
forma estruturada, até elegante e, sobretudo, clara.
Um caso evidente é o da magistratura, com especial acuidade no que se refere ao rigor e clareza da redação das decisões judiciais e de outras peças jurídicas, elaboradas por técnicos dos quais, em prol da fiabilidade das decisões prolatadas, seria de esperar que, em todas as situações, soubessem demonstrar especial capacidade para interiorizar, com precisão e critério, os conceitos e as respetivas e evidentes diferenças, em lugar de ceder a este novo facilitismo lexical que se apresenta, não apenas absolutamente injustificado e inútil, como contraproducente, apenas servindo para descredibilizar o desempenho de quem a ele adere e para, nos espíritos menos esclarecidos, a dúvida e a confusão fomentar.
O léxico comum, mesmo corrompido pelo facilitismo e pela indiferença, distingue-se de forma inconfundível do léxico jurídico, por maioria de razão quando se trata de conceitos técnicos muito específicos e frequentemente nomeados. Sobretudo, não pode esse léxico comum inquinar ou desvirtuar conceitos que a teoria jurídica consagra e, até há algum tempo, a prática cuidava de aplicar.
Voltando aos atos e aos factos, e salvo melhor opinião,
facto jurídico é qualquer ocorrência suscetível de gerar ou extinguir
um direito, podendo também servir para manter ou alterar um direito
previamente existente. Já por
ato jurídico entende-se, não um acontecimento, mas uma ação humana que,
se for censurável, poderá corresponder a um comportamento deliberado ou
meramente culposo.
Para o Direito, um facto é, assim, o efeito da causa que, quando originada num ser humano, se designa por ato, legítimo ou não. Trata-se, pois, de duas realidades distintas, de duas definições inconfundíveis.
Como admitir, então, que em peças jurídicas, designadamente em acórdãos de altos tribunais e, até, de tribunais superiores, tantas vezes se leia que o arguido “cometeu os factos”, “praticou os factos pelos quais vem acusado”? (Para ver que não exagero, experimente o Leitor procurar no Google estas expressões…)
Como entender e aceitar que, durante a leitura do resumo do despacho instrutório*) relativo ao mais mediático megaprocesso da democracia portuguesa tenha o juiz hesitado visivelmente ao referir os “factos cometidos” por um dos arguidos? Como acatar uma decisão vinda de quem não reflete sobre alguns conceitos fundamentais que a ela subjazem?
Como, enfim, admirar e respeitar o legislador de um Código Penal Português que dispõe, repetidamente, sobre a "prática do facto"?
Salvo o devido respeito, como poderemos, com as devidas confiança e deferência, submeter-nos um dia ao julgamento de um magistrado, por muito graduado e considerado que seja, que reiteradamente demonstre nem algo tão elementar como a diferença entre os conceitos de facto jurídico e ato jurídico haver interiorizado, referindo-se a um e a outro como da mesmíssima coisa se tratasse? Como poderemos, em tais circunstâncias, confiar que a decisão do Areópago*) é sábia, segura e, sobretudo, rigorosa, características que lhe são legitimamente exigidas por quem à sua justiça se submete?
Isto, para não falar das trocas e das omissões de preposições, com as quais já
ninguém muito parece ralar-se, como há dias encontrei num aresto em “pugna que sejam dados como não provados os factos” e outras maravilhas da produção de pessoas para quem a gramática não passa,
porventura, de uma ligeira contrariedade para quem não tem, com ela, tempo a
perder.
No entanto, “uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete” *).
Falar e escrever corretamente é um exigente, constante e contínuo exercício de
inteligência e de lógica, executado sobre um suporte teórico que desde os
primeiros anos da instrução primária nos é transmitido; é uma permanente
demonstração do cuidado dispensado às coisas sobre as quais temos de nos
interessar – como o modo de nos exprimirmos, ainda que ao nível mais
rudimentar -, bem como da maior ou menor competência para, em tempo real,
decidir quanto à mais correta utilização da palavra, no escrupuloso respeito
pelas regras gramaticais.
Ora, se mesmo na fala a responsabilidade é tamanha, dado o mais dilatado tempo disponível, muito maior na escrita ela é, por maioria de razão.
- x -
4. Notas Finais
Não é verdade que Tanto Faz!
A falta de rigor na expressão, particularmente na escrita, inquina fortemente
a credibilidade de quem escreve, pondo em causa, muito especialmente no caso
da magistratura, o âmago de uma função que é, simultaneamente, uma missão
essencial ao assegurar do cumprimento de leis pensadas e elaboradas para a
manutenção da ordem e da paz social, só nestas encontrando legitimação.
Podemos, até, ser os juízes mais sérios, mais sábios e tecnicamente mais sabedores que alguma vez prolataram uma decisão: ninguém alguma vez reconhecerá nos nossos escritos uma ciência que exprimimos com as palavras erradas; ainda que, quanto à substância, possamos ter, do nosso lado, a mais ampla razão.
Não basta saber: é preciso saber dizer.
* *
Caso bem recente e nascido, ao que tudo parece indicar, da ânsia de, através de uma suposta mas falsa originalidade, aparentar sabedoria que se não tem, é o da substituição de resistência por resiliência.
Ora, tratando-se, como se trata, de conceitos bem distintos, a utilização à toa dos correspondentes vocábulos apenas conduzirá a uma enorme confusão.
sábado, 10 de abril de 2021
Sexo É do Género Masculino
"Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu,
não
parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto,
preferindo-lhe
o tão ambíguo termo género na expressão que diz que os direitos
- e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser
iguais"
1. Pressupostos
Não valeria a pena investigar se a investigação científica não conduzisse à
descoberta de novas realidades e de conhecimento retificado ou acrescentado
quanto àquelas que julgamos conhecer; tampouco se, convidando o registo dessa
evolução à introdução, na linguagem falada e escrita, de novos conceitos,
escolhêssemos não os adotar.
Nesta adoção de neologismos ou adição de significados a termos existentes
sempre se haverá, porém, de assegurar que o léxico próprio de uma área do
conhecimento não irá, por erro, incúria, indiferença ou outro vício do
processo, afetar o rigor vocabular de outra área - ou de todas as outras.
Em tais condições, agravar a polissemia, acrescentando significados ou
utilizações possíveis a termos deles sobrecarregados, mais longe não levará do
que ao incremento da dúvida nociva e a uma crescente degradação da clareza, a
ponto de nos arriscarmos a cair na situação ridícula de, ao tentar, fechada
sobre si, enriquecer próprio o léxico, determinada área do conhecimento acabar
por adotar vocábulos de significado já tão difuso que, além de nada de bom
acabarem por acrescentar à clareza do discurso científico, inexoravelmente
acabarão, antes, por fortemente a prejudicar.
Assim parece ter acontecido, no caso que aqui me traz, com a Política e com as
Ciências Sociais.
2. Primeira Apropriação Lexical
Quando, num formulário, existe um campo “Sexo:”, ninguém espera que o
preenchamos designando o órgão reprodutor com que nascemos, ou com que, mais
tarde, tivermos escolhido ficar: o que se espera é que, mediante
feminino ou masculino, indiquemos qual o conjunto a que
pertencemos atendendo às diversas variáveis primárias e secundárias que,
sexualmente, nos caracterizam.
Assim, conscientes de que, ao nível do comportamento e a despeito do que é
fisicamente aparente, as coisas são tudo menos simples, parecem as Ciências
Sociais ter, num dado momento, sentido a necessidade de
introduzir, no seu léxico específico e em benefício exclusivo do mesmo,
um novo conceito destinado a caracterizar, já não os dois possíveis conjuntos
de caraterísticas sexuais biológicas propriamente ditas, mas algo que
poderemos, em síntese, definir como o que, inerente à sexualidade, se passa no
plano dos sentimentos e das emoções do ser humano; e também, a
necessidade de incluir cada indivíduo numa classificação quanto à forma como,
em virtude dessas emoções e desses sentimentos, se irá comportar.
De forma porventura ligeira e pouco refletida, ter-se-á, então, decidido acrescentar aos significados do termo género estas combinações de sentimentos, emoções e comportamentos de raiz sexual que visam, a jusante, o desenho de modelos sociais e culturais baseados nos múltiplos decimais e tons de cinzento que poderão assumir, designadamente na intensidade e na forma como cada pessoa se identifica com um ou outro padrão comummente associado a indivíduos de um ou do outro sexo biológico, intensidade e forma essas que, como um todo, por identidade de género *) as Ciências Sociais terão decidido designar.
Tal escolha aconteceu, porém, em claro detrimento do rigor dos léxicos da Biologia*) e da Linguística*), que, como veremos, não se terão as Ciências Sociais coibido de prejudicar.
3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação
O prejuízo para o léxico da Biologia aconteceu porque há muito que o animal humano está, como qualquer outro ser vivo, sujeito à classificação biológica*), a qual pode, de forma simplificada, ser hierarquicamente enunciada como domínio, reino, filo, classe, ordem, família, género e espécie – que são, no caso dos humanos, respetivamente Eukariota, Animalia, Chordata, Mammalia, Primate, Hominidae, Homo e Homo sapiens.
Só depois, na base da pirâmide, podem os indivíduos da maior parte das
espécies ser, complementarmente, classificados de acordo com o sexo biológico
que apresentam, feminino ou masculino.
Daqui se extrai, quanto ao ser humano, evidentes conclusões:
1. de que a sua classificação biológica quanto ao género é única
(Homo), e não dupla (feminino e masculino);
2. de que a divisão em feminino ou masculino se refere,
exclusivamente, ao sexo biológico, e é meramente complementar.
Existe, porém, outra área do conhecimento diretamente lesada pela apropriação feita pelas Ciências Sociais: a Linguística, para a qual Género *) é, inquestionavelmente, uma das variáveis utilizadas para classificar, não só os nomes, como as palavras declináveis que a eles se associam, classificação essa efetuada segundo critérios que, embora numa quantidade significativa de casos se encontrem intimamente ligados às aspetos sexuais biológicos dos seres que alguns substantivos designam, são, na sua maior parte, espontâneas, nascem dos usos, e não de qualquer caracterização biológica de propriedades das quais, amiúde, nenhuma, apresentam.
A palavra árvore, entre tantos outros exemplos, é do género
feminino, apesar de haver árvores do sexo feminino, masculino e
hermafroditas. Tampouco se conhece sexo a armário, mesa ou
cadeira; e, crianças, há-as dos dois.
4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)
Embora, na linguagem do quotidiano, a confusão deste novo género social
com o género biológico Homo seja muito improvável dada a raridade da
referência a este, o mesmo se não pode sustentar quanto à confusão com o
género das palavras, e isto desde os mais elementares níveis da
escolaridade.
Muito mais séria, porém, resulta, inevitavelmente, a confusão crescente entre, por um lado, os géneros biológico e gramatical e, por outro, o género da igualdade de género *), que por sua vez, a Política tem vindo, ao que parece, a colar ao de identidade de género das Ciências Sociais.
Aqui, os objetos da defendida igualdade são as mulheres e os homens – e, naturalmente, os indivíduos de sexualidade mista, por assim dizer -, e a igualdade que se almeja é, ao que dizem, absoluta, embora se trate de uma pretensão cuja simples formulação bastará para que a consideremos um objetivo de validade e, sobretudo, exequibilidade duvidosas. Entre outras razões, que aqui não cabe desenvolver, desde logo porque, sendo os indivíduos dos sexos feminino e masculino dotados de características biologicamente diferentes, pretender dispensar-lhes igual tratamento, a todos os níveis de todas as vertentes da vida, seria permanentemente violentar uns e outros; ou seja, precisamente o contrário daquilo se diz defender. Já muito diferente e premente é, naturalmente, a questão da igualdade de direitos e de deveres entre todos os indivíduos, independentemente da sexualidade - do sexo das pessoas, e não do género das palavras -, imperativo estruturante de qual sociedade dita civilizada e há muito plasmado na Constituição da República *).
Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu, não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto, preferindo-lhe o tão ambíguo termo género na expressão que diz que os direitos - e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais.
Apenas conheço o género humano. Género feminino e
género masculino não passam, para mim, de impropriedades
vocabulares.
5. Resumindo…
Ø
Sexo é uma variável de classificação biológica dos seres
vivos.
Ø
Género, aplicado a seres vivos, é uma unidade taxonómica
que, no caso dos seres humanos, corresponde, unicamente, a Homo.
Ø
Para a gramática, sexo é do género masculino, e o género
de um nome serve para, com este, outros termos declinar.
Ø
Em lugar de deitar achas na fogueira do facilitismo e da
confusão generalizada, bem fariam as Ciências Sociais em investir algum tempo
na procura, para identidade de género, de um novo conceito, de uma
alternativa clara e sem efeitos colaterais.
Ø
Quanto à igualdade prosseguida pelos políticos, não necessita
de neologismos: sexo diz muito bem aquilo que querem
significar.