sábado, 13 de março de 2021


Refugiado e Refugiados

"Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu
que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas,
bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará,
globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.
Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento
"

Imaginemos um país; um país europeu de dimensão relevante, desenvolvido e estimado pelos seus pares.

Imaginemos, também, que, nesse país e por circunstâncias que aqui não vêm ao caso, um governante de topo, um abastado rei, por exemplo, se vê na contingência de, fazendo uso do seu lauto pé de meia e da generosidade ou do pagamento de favores por parte de alguns amigos, ter de se exilar*), de abandonar a sua terra, rumando a paragens mais a Oriente para por lá se refugiar.  Tendo em conta a História recente da política europeia, é um cenário que não será difícil idealizar.

A esse governante, seria - sem hesitação, em condições excecionais e ao nível adequado a alguém com a sua anterior ocupação - facultado o acesso a todas as estruturas e serviços dessa sua temporária terra de adoção, desde os fornecimentos básicos de eletricidade e água, até aos cuidados de saúde, públicos e privados; e, se de idade avançada, aos necessários cuidados e tratamentos complementares.

Na nova terra, ninguém se espantaria, ninguém se insurgiria ou se sentiria lesado pelo luxuoso tratamento dispensado, pelo Estado e pela iniciativa privada:  uns, porque nem chegariam a saber o que se estaria a passar;  outros, porque se identificariam com o ilustre refugiado e para os próprios esperariam, em idênticas circunstâncias, iguais benesses;  por fim, os palermas que até se sentiriam honrados com tão distinta companhia e lamentariam, consternados, o facto de a veneradíssima personagem não poder regressar ao seu palácio para o Natal familiar.

Pensemos, agora, por um instante, num bote vindo de África, a transbordar de pessoas menos ilustres, desconhecidas, anónimas, desesperadas, sem Natal, a lutar pela sobrevivência, em fuga de quem, por razões políticas ou outras, os escorraçara da sua terra natal; fugindo da guerra, mas também da perseguição política ou religiosa, da miséria indizível; sabendo que parte deles nem chegará, porque o mar não irá deixar.

A estes refugiados pobres*), muitos portos batem com a porta na cara, acabando eles, por vezes, por se virar para um pequeno país a Norte das suas terras natais, logo acima e um bocadinho ao lado do Mediterrâneo, onde, mais coisa, menos coisa, dez milhões de seres humanos têm, entre muitas outras benesses, acesso a um serviço de saúde amiúde elogiado, porquanto fracamente financiado e, quanto a recursos, deficitário;  um serviço de saúde que, apesar de tudo, não desespera quando mergulhado numa pandemia, e lá vai arranjando meios e forma de acolher, de tratar e de recuperar as pessoas que o bote traz das paragens de onde foram escorraçadas, e que nesse pequeno país mais a Norte buscam refúgio.

Os refugiados dos botes são muitos?  Vêm em grande quantidade   Não.

Em pequenas embarcações, chegam a esse pequeno país umas cinco pessoas, em média, por dia.  Das minúsculas cascas de noz, veem os aviões que, aqui e ali, os sobrevoam como a expressão mais visível da crueldade do Mundo. Ignoram que, nesse preciso momento, um outro refugiado veleja, com ar enfadado, não num bote, mas num seu iate, rodeado de amigos, em magníficas paragens.

Será que acolher essas cinco pessoas por dia, cuidar delas, acarinhá-las será uma carga assim tão grande para o sistema de saúde desse pequeno país de dez milhões?  Será que o facto de não ter essa gente agora sem terra com o que pagar os cuidados que lhe são prestados justifica ser, por outra gente sem um mínimo de compaixão, mas com acesso a trabalhos parlamentares e a programas televisivos, exposta como parasita, como oportunista, composta por falsos necessitados que consigo até trazem telemóveis?

Será que a permanência dessas pessoas por cá, trabalhando como puderem, irá prejudicar assim tanto a empregabilidade dos nem sempre muito empenhados autóctones? Ainda que inicialmente não especializado ou particularmente bem preparado, será de desprezar o contributo que estes nossos habitantes darão à economia e à cultura do pequeno país que as acolhe?

Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas, bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará, globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.  Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento.

A partir dos dados disponíveis, concluir o contrário revela falta de humanidade, ou que anda por aí tenebrosa desinformação, a ponto de poder fazer esquecer que a maior maravilha do Mundo é as pessoas serem como são.

Aumento da criminalidade?  Claro que nem todos são santos, mas também não são os criminosos empedernidos que alguns querem fazê-los parecer.  Entre os refugiados há de tudo, melhor e pior, tal como de tudo há, também, no tal abençoado cantinho à beira mar plantado.

Em qualquer caso, não pode duvidar-se de que esse pequeno país de dez milhões tem alguma, embora reconhecidamente limitada, capacidade de acolher quem em tão deploráveis condições o demanda; e a responsabilidade varia na razão direta das nossas capacidades e na razão inversa das nossas limitações.

Não se entende, assim, como podem, no tal pequeno país, pessoas ditas de bem insurgir-se contra o acolhimento de meia dúzia de casos em cada mês*), manifestando-se pela imediata decisão de os deportar. Como pode continuar-se a confundir esta quantidade mínima, residual, que lá consegue desembarcar com o estabelecimento de uma nova rota migratória para quem quer ficar, inerte, a receber bens e serviços do país de acolhimento nada tendo que, por sua vez, lhe dar?

Há coisas que nem em campanha eleitoral se deve dizer.  Melhor dizendo, que, sobretudo em campanha eleitoral, não se deve dizer.  Num pequeno país que se pretende humanista, seria, para qualquer político, bem mais adequado e inteligente exaltar os valores a essa ideia indelevelmente associados.

Tampouco se entende o que leva alguns a associar a esquerda ou direita a decisão de acolher ou deportar, de discriminar positivamente ou de apenas tolerar, quando, independentemente da cor política, a rejeição se deve, fundamentalmente, a egoísmo, orgulho e preconceito, e pouco mais.

Quantos refugiados desses que vêm em botes não seria possível albergar, alimentar e tratar apenas com os milhões que, qual jogador de bola fugido ao fisco, o refugiado de luxo do início destas linhas irá entregar às Finanças do país de origem para um dia o deixarem regressar ao seu sumptuoso palácio sem temer mais pesada pena ter de pagar?

Pois não são estes refugiados seres humanos enquanto tal em tudo iguais a esse abastado velejador noutro país refugiado, apenas diferindo, no que é essencial, pelas condições degradantes e insustentáveis em que lutam para sobreviver?

Não, iguais ao abastado governante, de facto, não são.

São até bem diferentes as razões que os fazem escolher outra terra para morar;  e poucas dúvidas restam de que o próximo bote trará carga humana bem mais válida do que um decadente e rico pobre diabo obcecado por mulheres, pelo dinheiro e por aquilo que com ele poderá comprar.

Sic transit gloria mundi...

* *

Apesar de tudo, convirá ter presente que o acolhimento de refugiados não deve, não pode, pôr em risco funções tão essenciais à sociedade que os recebe - e, inevitavelmente, aos próprios - como é o caso da saúde.

sábado, 6 de março de 2021


O Menino das Rãs (conto infantil para adultos)


"Quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;
quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;
e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar"


Era uma vez um menino que nasceu numa aldeia por onde corria uma ribeira que tinha rãs.

Os pais tinham pouco dinheiro e o menino não ia à escola.

Como ele, muitos outros meninos do povo não podiam ir à escola;  mas, ao contrário dele, alguns outros meninos esforçaram-se, mesmo assim, por aprender fora da escola e chegaram, até, a dirigentes do Clube dos Meninos da Aldeia.

O nosso menino, no entanto, não era só pobre: era, também, pouco inteligente, embora se julgasse esperto como, também, alguns dos demais.

Ora, como acontece com meninos pouco inteligentes que procuram, com a esperteza, compensar o que da outra lhes falta, tratou o menino de pensar na melhor maneira de se salientar, de sobressair, de se exibir.

Pensou, pensou… e, de tanto pensar, pensou que era filósofo, como acabava por acontecer com boa parte de outros meninos que também passavam o tempo a pensar.

Vai daí, arranjou uma folha de papel, muito grande, muito grande, onde ia escrevendo as suas ideias, que lhe pareciam cada vez mais brilhantes, e das quais ele achava que era uma pena que todos os outros meninos não tomassem conhecimento para, assim, viverem mais felizes por aprenderem com ele, que pouco ou nada sabia.

Depois de escrever cada pérola de sabedoria, dobrava a folha e punha-a num bolso do casaco, contente com a sua habilidade.

- x -

De tanto pensar, um dia, pensou, até, que, quando subia o passeio do lado direito da sua rua, os carros estacionados desse lado ficavam à sua esquerda, e que, quando descia a rua, os mesmos carros que, quando a subia, ficavam à sua esquerda, continuavam, ao descer, à esquerda também.

Animado com tão espantosa descoberta, e porque se tratava de esquerda e de direita, achou-se predestinado à Política.

Lá arranjou, então, meia dúzia de amiguinhos também do povo a que dizia pertencer, e com eles fez um grupinho de apoio que conseguiu as assinaturas necessárias a que o menino pudesse candidatar-se a Presidente do Clube dos Meninos da Aldeia. É que ele achava que, se os outros que lá estavam e, dentro ou fora da escola, tinham estudado para se preparar para o desempenho do alto cargo, ele, embora fosse burrinho e nem competência tivesse para mandar nos seus poucos brinquedos, também tinha o direito de lá estar.

Tinha direito, apenas porque sim, e porque a campanha eleitoral seria a melhor maneira de mostrar que era o que não era, uma oportunidade única para se pavonear, e não porque estivesse minimamente preparado para ocupar o lugar ou preocupado com o serviço que, aos outros meninos, poderia esperar-se que viesse a prestar.

- x -

Ora, para a presidência do Clube, havia, além do presidente atual, outros meninos candidatos, os tais que tinham estudado e que seria mais provável estarem à altura do que a função lhes exigia do que o menino armado em filósofo que mal duas frases seguidas sem chavões – ou pérolas tiradas do papel que sempre trazia no bolso - conseguia articular.

Tinha, por essa altura, a rádio local organizado conversas dos outros meninos candidatos, dois a dois, sobre as propostas que as respetivas candidaturas tinham a apresentar. Mas, como o menino da nossa história não dava duas para a caixa e já ninguém estava para o aturar, a rádio lá conseguiu desenterrar um qualquer critério jornalístico pacífico e plausível para, sem parecer muito mal, o menino não ser convidado a participar.

Isso, sim!! O menino tanto se queixou, tanto se lastimou, que a rádio lá arranjou uns minutos para, numa frequência menos ouvida, pôr o menino a, um a um, abusar da paciência dos outros meninos candidatos, sempre com aquele ar de ingenuidade bacoca e deslumbrada com o papel que estava a representar.

Todo contente, lá levou no bolso a grande folha de papel dobrado que, orgulhosamente, até mostrou ao atual presidente do Clube e recandidato, o qual que só lhe faltou tratar por tu; e lá despejou, para indisfarçável embaraço e tédio de cada um dos outros meninos e dos senhores da rádio que os entrevistavam, a habitual e infindável série de lugares comuns e de brocardos tirados da sua cabecinha pobre, respondendo, qual verdadeiro político e por falta de ideias das quais conseguisse falar trinta segundos seguidos, sempre ao lado daquilo que ainda lhe conseguiam perguntar.

Bom, nem sempre respondia ao lado:  quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;  quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;  e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar.

- x -

Claro está que o menino não foi eleito, e até teve menos votos do que da outra vez em que tinha obrigado os outros a ouvi-lo falar, porque, ao contrário do que dizia esperar, foram muito poucos os meninos parvos que caíram na asneira de sair de casa para nele votar.

Claro está, também, que valeu a pena candidatar-se – se valeu ! -, já que tal lhe permitiu, não só massajar vigorosamente o ego, como ganhar estatuto junto dos poucos meninos vaidosos, egoístas e espertalhões da tal aldeia onde havia rãs e de outras terras por ali perto.  Tudo isto, à custa do tempo sem qualquer interesse que fez perder à rádio local, do sacrifício da paciência dos que o ouviram – ou leram no jornal do Clube – e do dinheirão que, pelo duvidoso privilégio de ouvir as suas pérolas, a todos indiretamente fez pagar.

Afinal, para aqueles dias serem tão bons para o menino, por que não haviam todos os outros meninos de colaborar ?  Até ia parecer que não gostavam dele.  Mas gostavam, claro:  de tão brilhante menino filósofo, como não gostar ?

- x -

Como já não era a primeira vez que se candidatava, e aquilo até foi giro, o menino não tem, de então para cá, parado de continuar a encher a folha onde escreve as suas ideias mais vazias e disparatadas.

Para quê ?

É que, agora, o grupo de meninos que o apoiou nas eleições já se juntou num partido que até dá vontade de rir, de meninos como ele que querem ajudá-lo a mandar.

E as eleições para as secçõezinhas do Clube não vão tardar…

Uma coisa é certa:  a história do menino que brincava com as rãs não vai aqui acabar e, se não alteram rapidamente os Estatutos do Clube para o travar, ainda todos nós vamos ter muito que lhe aturar.



sábado, 27 de fevereiro de 2021


Probabilidades: O Jogo da Governação

(Introdução à Secção ‘Política’)

"O bom político é quente no coração e frio na ação:
seja qual for a motivação, quem governa para ser ou parecer bonzinho,
para agradar a uns ou a todos, está condenado a praticar,
maioritariamente, o mal resultante da incompetente governação"


1. Da Razão de Governar com a Razão
2. Um Dia em que a Objetividade Falhou
3. Da Improvável Verdade
4. Demagogia Pura e Dura
5. Notas Finais sobre a Desgovernação


1. Da Razão de Governar com a Razão

Sou tão sensível às necessidades e anseios humanos como qualquer outra pessoa, tirando os mais ou menos sociopatas desta definição.  O que vou dizer não deve, assim, ser confundido com condenável indiferença ou indizível frieza;  apenas considero que, tal como a política deve viver separada das religiões, também o mandato democraticamente conferido aos órgãos de soberania não visa cuidar dos sentimentos e dos estados de alma daqueles que da governação dependem para o funcionamento da sociedade enquanto sistema organizado e, no momento do voto, pedem para ser governados:  passa, simplesmente, por, uma vez legitimada pelo voto a orientação política proposta aos eleitores, se ocuparem os empossados de elaborar e publicar normas que assegurem que esse funcionamento decorrerá de forma eficiente e eficaz, só em função dele devendo, casuisticamente, ponderar-se para que lado deverá, aqui e ali, oscilar a balança das promessas eleitorais.

Errou o rei que no século XVII terá dito: “L’État c’est moi”.  À época, como em todos os tempos e em toda a parte, o Estado somos todos nós, desejavelmente funcionando num sistema devidamente estruturado e coerente, qual máquina bem desenhada, fabricada, montada e oleada;  e  o Direito é o manual de instruções da máquina do Estado que cada um de nós integra na qualidade de cliente, de parceiro ou de fornecedor, àquele cabendo regular e fiscalizar as relações entre todos nós e entre cada dois de nós.

Ora, na fabricação, operação e manutenção de qualquer mecanismo, espera-se que utilizem os seres humanos a cabeça, e não aquilo que lhes bombeia o sangue até aos pulmões.  Por maioria de razão, o mesmo deverá acontecer, e de forma ainda mais isenta e objetiva, com quem propõe ao tal Estado que somos encarregar-se da respetiva governação:  não se pode escrever no papel as leis do coração.

Exemplificando, o ato de roubar constitui crime punível nos termos dos artigos 210º e 211º do Código Penal Português*). Mas roubar não é proibido porque isso não se faz, por ser feio: não é a noção subjetiva de feio, de socialmente condenável, que deve motivar a decisão de punir o roubo, e igual objetividade deve imperar na génese e na aplicação de qualquer outro preceito, penal ou não, em qualquer contexto legal ou circunstancial e em qualquer sede legislativa que consideremos.

Os estados não nos permitem roubar porque privar, pela força, os cidadãos dos seus bens patrimoniais constitui grave atentado à estabilidade emocional, à segurança e, eventualmente, à integridade física daqueles, além de produzir um inevitável impacto negativo, não apenas na situação pessoal da vítima, mas também na qualidade da sua prestação quotidiana em prol dos demais - podendo, até, ficar ela inviabilizada nos casos de violência física ou psicológica extrema.

Outras objeções à conduta criminosa naturalmente militam, entre elas o sério impacto nas contas do Estado produzido pelo muito elevado dispêndio inerente à busca, perseguição e punição de criminosos, já para não falar da indevida alocação de recursos necessários ao funcionamento das forças policiais e dos órgãos judiciários, como as entidades investigadoras e os tribunais - já que optar por deixar o ato impune sempre estará fora de questão, seja pelo efeito multiplicador do exemplo, seja pela probabilidade de repetição do ato pelo mesmo agente, entre outras razões.

Coincidentemente, ocorre que roubar é feio, não se faz;  mas isso é algo que tem a ver com valores morais e ditames religiosos, com a consciência de cada um, coisa que aos detentores do poder não deve interessar enquanto meros legisladores e gestores que são, sem mandato relativamente ao que é do foro íntimo dos cidadãos.

Quem rege os destinos de um país é, neste plano, comparável ao desenhador ou fabricante de automóveis, que desempenha o seu papel no processo de fazer este ou aquele modelo funcionar:  se o carruncho vai servir para transportar doentes ou para assaltar bancos, é algo que, enquanto desempenha a sua função, o não deve, o não pode preocupar.  Caso contrário, permaneceria inerte, já que automóveis – e tudo o resto, porventura – suscetíveis de servir intuitos criminosos sempre seria pouco ético fabricar.

Pode, então, um governo legislar contra o costume? Tecnicamente, sim, além do que sempre haverá quem diga que a moral não é universal nem objetiva, que cada sociedade tem a sua, e que quem manda tem o poder de, através da lei, a alterar. Mas parece também legítimo assumir que legislar - ainda que racional e objetivamente - contra o costume legitimamente estabelecido não deixará de desencadear a revolta e os custos sociais e económicos a ela inerentes. Nesse sentido, a resposta à pergunta deverá ser “não”.

 

2. Um Dia em que a Objetividade Falhou

O bom político é quente no coração e frio na ação: seja qual for a motivação, quem governa para ser ou parecer bonzinho, para agradar a uns ou a todos, está condenado a praticar, maioritariamente, o mal resultante da incompetente governação. O mesmo acontece com quem, perante as dificuldades, age como se em estado de negação vivesse, especialmente se, na prática política, recusa aceitar, por um lado, que sem pessoas vivas não haverá quem governar e, por outro, que sem saúde as pessoas tendem a não viver muito tempo, pelo que em breve não haverá muito quem governar;  e que resulta, assim inútil e contraproducente cuidar das também importantes questões da educação, da cultura, da economia e da imagem externa de um país antes de assegurar a saúde e, com ela, a sobrevivência de governados que sobejas provas vão dando de as respetivas vidas não saberem governar.

Num texto introdutório como este, seria deslocado desdobrar o praticamente infindável rol de exemplos que, com a maior das facilidades, poderia seguir-se.  Mas deixaria, outrossim, diminuída a triste realidade não referir aquela que acaba por ser, nos tempos que correm, porventura a mais eloquente e grave demonstração do absoluto contrário deste frio mas, desgraçadamente, cada vez mais acertado arrazoado positivista.  Encontramo-la na atitude lamecha, no monumento ao facilitismo - não confundível com liberalismo -, à irracionalidade, ao desnorte e à falta de estratégia e, consequentemente, à falta de firmeza nas sedes legislativa e executiva do Estado Português, plasmados no pouco esclarecido, pouco sensato e nada oportuno aliviar das medidas de contenção da pandemia de COVID-19*) durante o período natalício do ano de 2020.

Um dos maiores pecados da Humanidade é a eterna propensão para se maravilhar até com o mais ínfimo dos seus feitos, e os políticos portugueses ficaram, quase todos eles, ingenuamente – ou convenientemente – extasiados com o exemplo, o milagre da primeira vaga, confundindo o atordoamento pelo medinho rasteiro e inconfundível que fez os ditos portugueses em estado de choque ficar meia dúzia de semanas em casa a maldizer a triste sina, com a lição de civilidade e de cidadania que não deram porque aquilo que não tem ninguém pode dar.  A hipocrisia deste civismo bem se viu nos meses que se seguiram, com as toalhas de praia coladas umas às outras, as festarolas, as jantaradas, enfim, um Verão como qualquer outro, para gáudio do inimigo silencioso que tanto anda na praia, como em casa, como onde quer que um hospedeiro curta a vida.

Se o tão propalado milagre cívico*) o fosse mesmo, teria, bem antes do segundo confinamento, a quantidade de novos casos naturalmente baixado mediante a mera divulgação das recomendações emitidas – apesar da trapalhada comunicacional que as caracterizou -, e não à bruta quando, depois do Natal, tudo estava já perdido*), Portugal tinha ascendido ao primeiro lugar na escala da asneira e, sobretudo, começou, junto dos cívicos governados, a constar que estavam as forças policiais a autuar a sério e as coimas a doer*).

As coisas não acontecem porque a gente quer:  acontecem, porque as fazemos acontecer, e, se os políticos existem, é porque as pessoas necessitam de quem as governe, de quem por elas faça o que não sabem fazer.  Em lugar de confiar em quem precisa de ser governado – em boa parte dos casos por, sem os irresistíveis créditos bancários e não tão bancários, nem a sua vida privada saber orientar -, um governo deve analisar os dados, ouvir, refletir, ponderar.  Depois, decidir tendo em vista o bem objetivo da generalidade dos governados, e não acarinhar a hipócrita pieguice de quem diz morrer de saudades dos velhos em cima de quem não põe a vista desde o anterior Natal;  e isto aplica-se não só aos governos, como a quem lhes faz oposição e concordou com a abstrusa decisão de desconfinar, talvez “por prevalecer o número dos votos mais que o peso das razões”.

 

3. Da Improvável Verdade

Não é verdade que as probabilidades interessem só aos jogadores.  Nem principalmente, até.

Dado que a certeza absoluta não existe, jamais qualquer governo poderá basear nela a sua atuação.  Governar é gerir probabilidades, pelo que é inadequado e incompetente o governo que nelas não acerta e se desculpa por o Futuro não poder prever.

Os jogadores baseiam as probabilidades deles em dados inconsistentes, reconhecidamente aleatórios e que só proporcionam ganhos a quem tem uma grande falta de azar.  Já dos governos exige-se que planeiem partindo de hipóteses sustentadas em informação científica proveniente das mais diversas áreas do conhecimento e propiciadora de expetativas realistas de sucesso incomparavelmente maiores do que as de qualquer jogador.

Exige-se, também, que ajam:  de nada interessa um governo que parece achar que, se deixar a janela aberta, a mosca acabará por sair.  A mosca, talvez.  O vírus, não sai.

Eram sobejamente badaladas as nefastas consequências da forma hiperliberal com que certo país de dimensão semelhante ao nosso encarou a pandemia*), adotando táticas de pseudo-combate consideradas tão escandalosamente ineficazes que as mais altas personalidades do Estado tiveram, depois, que se desculpar*) – apesar de o escandaloso resultado ser, em termos agregados, muito próximo do português, pelo qual ainda ninguém ouvi desculpar-se.

Por cá, existia, desde meados do Verão, sério e fundado alarme da comunidade científica quanto a novas vagas e a mais contagiosas e mais letais estirpes.  Relatos não faltavam do ambiente vivido em Portugal de costas para o vírus, sempre de grande bonomia e descontração.

Tudo isto recomendava que, nas diversas vertentes, muito maiores restrições à atividade e à liberdade por via legislativa fossem impostas a fim de evitar a catástrofe social e económica que se seguiu ao confinamento dos primeiros meses de 2021 e relativamente à qual, à data em que escrevo, ninguém tem, ainda, a mais pálida ideia da verdadeira dimensão.

O facto de tão eficaz se haver revelado o confinamento cumprido logo a seguir ao Natal demonstra bem que, tivessem sido tomadas medidas respeitando os alertas inequívocos da generalidade da comunidade científica, teria ele funcionado - e poupado sequelas e vidas – no período do Natal.  Em claro detrimento da vida e da saúde, optou-se, ao invés, por proteger a educação, a economia e a imagem, com base na conveniente tese contrária defendida por poucos ou por um só cientista, contra os muitos restantes.

Consequentemente, pouco ou quase nada foi feito, quiçá na esperança pueril de que as coisas se resolvessem;  e, se algo corresse mal, sempre haveria um ou outro cientista subserviente, desalinhado ou criativo cujas teorias incompreensíveis para a esmagadora maioria poderiam ser desenterradas em defesa do indefensável -  como lá por fora acontecera.

Resultou, pois, inevitavelmente desastrosa a clamorosa cedência natalícia às coisas do coração e da eleição, em intolerável detrimento da razão, prova acabada de que, tal como os vírus, a demagogia está por toda a parte, e com idêntica ou maior capacidade de se replicar.

Acontece que, em democracia, mesmo a demagogia – aqui disfarçada de incuráveis otimismo e confiança – não pode servir para dissimular a verdade.  Asneira feita, só mesmo não sabendo o que é governar e gerir – nomeadamente a comunicação - poderá alguém procurar justificar-se com pérolas como “planeámos, mas não para uma coisa desta dimensão”, ou “se soubéssemos da variante inglesa, teríamos endurecido o Natal”.

Sabiam, sim, já que desde Agosto se não falava de outra coisa.  Só não souberam de forma efetiva, porque não quiseram, porque não lhes conveio saber;  mas, não faz mal, não é feio, já que talvez tenha alguma razão quem escreveu que “a linguagem da política é concebida para a ocultação da verdade”.

Não nos esqueçamos no entanto de que, por mais forte que seja o poder, a Incapacidade para admitir o erro é sinal de bem fraca autoridade.

 

4. Demagogia Pura e Dura

Existe, é verdade, a promessa eleitoral de se ser fiel a determinados princípios e de seguir uma também determinada linha política – além de ser recomendável honrar eventuais cedências pré ou pós-eleitorais.  Mas, tal como acontece com a generalidade das obrigações, honrar um compromisso apenas é exigível se se mantiverem as condições em que é assumido:  se um edifício arde ou colapsa, não podem os inquilinos legitimamente esperar que os proprietários mantenham os contratos de arrendamento – os quais, aliás, a própria lei se encarrega de fazer caducar.

Como podem, pois, num quadro de sucessivos colapsos dos edifícios social e sanitário, de imposição de estados de calamidade, de emergência e sei lá mais de quê, alguns desmiolados dizer “nem menos um direito por causa da pandemia”, dichote impróprio entre tantos outros que palavras nem encontro para qualificar?

Como, na mesma linha e para procurar conservar uma nada convincente aparência de igualdade onde não é devida e para fazer o frete a radicais sem argumentos válidos que esbracejam para se manter à tona da representação parlamentar, pode um governo supostamente moderado insistir em, quando há muito se sabia da proliferação de novas e mais contagiosas e letais estirpes do vírus, manter em funcionamento um sistema de ensino presencial que ocupa cerca de um quinto dos portugueses ?  Especialmente sabendo-se que o alardeado milagre cívico não passa de uma balela e que dois milhões de seres humanos, em muitos casos sem máscara, distanciamento social ou uma borrifadela de gel, entre a escola e o pavilhão das festas foram por aí largados a passear ?

Há que admitir que a génese da desigualdade não esteja no governo, neste ou naquele;  mas onde quem manda inequivocamente falha a responsabilidade de a atenuar é em, depois de, fanfarronando, se propor gastar meio milhar de milhão de euros a informatizar quem, quando esta história triste começou, ainda não tinha computador, preferiu apostar que a tal mosca acabava por sair da sala e não os comprou, fazendo com que as vítimas da desigualdade continuassem a não os ter quase um ano depois.

Não é possível deixar de evocar aquela história do Magalhães*).  Não o Fernão, o outro, que, há anos atrás, também ia ser distribuído como a tábua de salvação da mais desfavorecida população…  Viu-se.

A conclusão pela desigualdade, na telescola, por parte de quem computador não tem parte do princípio de que as aulas servem para alguma coisa, apesar da indisciplina lamentável, da duvidosa qualificação de parte de docentes que resistem à própria avaliação, da instabilidade e aleatoriedade dos programas deixados à sorte, cada um fazendo o que pode para ensinar o que bem entende por aqui e por acolá – mesmo coisas que não tinha nada que ensinar.

Esquece-se, porém, quem manda de que, mesmo com aulas presenciais, muito maior desigualdade ocorre, a todo o tempo e há muitos anos, por falta de meios informáticos, por quase absoluta falta de acesso à mais eficiente forma de aquisição da informação com que os ensinamentos do professor podem ser complementados.

A preocupação dos órgãos legislativos e governativos deveria, mesmo antes de a pandemia emergir, estar em atempadamente distribuir os tais computadores*) – Magalhães ou outros -, e não em, uma vez mais atirar poeira demagógica aos olhos de quem não pode deixar de contemplar tão grande desilusão, enquanto se enterra, em gigantes empresariais moribundos ou falecidos, muitas vezes mais do que o tal meio milhar de milhão.

De uma maneira geral não há, neste país, quem realize.  Pensa-se e divaga-se com facilidade mas, chegados à hora das realizações, das provas reais, poucos são os que resistem à seriedade dos problemas”.  Ao que parece, sempre assim foi, já que, decididamente, este pensamento não nasceu num adepto da liberdade, quase levando a crer que, de alguns dos atuais males em democracia, se padecia também na ditadura de então.

5. Notas Finais sobre a Desgovernação

A missão dos políticos reside em elaborar leis que, naquilo que é prático, pela sua racionalidade, razoabilidade e clareza contribuam para eliminar o receio dos nossos corações.

Não basta a um governo ter uma certa razão:  quem se propõe gerir os destinos de uma nação proclama a própria aptidão para, em tempos fáceis ou difíceis, fazer o que é certo, após avaliar com objetividade e isenção.

Imprevistos, sempre os houve, mas ter de improvisar, de gerir a mudança em nada se assemelha a desgovernar.  O desgoverno apenas acontece quando falta o substrato, quando o que parece não é, e o que é lá não parece estar.  Inexoravelmente, a ausência de um sólido arrimo na razão conduz ao primado da politiquice,  do clientelismo político e, acima de tudo, ao pânico do futuro impacto económico e dos dissabores que a qualquer político ele traz.

Por parte dos desgovernados, tal falta leva à insegurança e à incompreensão do sentido das normas, uma e outra decorrentes da constante inflexão do sentido das decisões, confusamente explicadas por falas desnorteadas e disparatadas, que nada têm a ver com verdadeiros discursos, já que, longe de dar forma a quem racionalmente discorresse sobre as situações apresentadas, amiúde mais não plasmam do que desesperadas, impreparadas e ziguezagueantes tentativas de encontrar adequado itinerário cognoscitivo que conduza a uma sábia decisão.  Mais não conseguem, ao invés, do que atirar, àqueles que os contrataram para que os governassem, contraditórios mosaicos de um caleidoscópio de decisões fatalmente ineficazes, quantas vezes arbitrárias e de indiscerníveis sustentáculos político, administrativo e intelectual.

A democracia não é, por definição o regime em que um povo vive condicionado por indivíduos sem estratégia que se vão equilibrando no bote do poder mediante uma gestão da coisa pública eminentemente casuística, pintalgada de tiques autoritários e constantes remendos legislativos.  Uma coisa é ser um político hábil;  outra, um bom governante.  O primeiro assenta que, nem uma luva, ao próprio e ao partido;  o segundo, serve muito melhor à República e à população.

Jamais os ideais políticos, mas apenas a competência, o empenhamento e o bom senso alguma vez governarão eficazmente um país, tornando-se evidente que a vacuidade crescente do ato político decorre da cada vez menor competência para governar, materializada na falta de objetividade e de razão de ser do mesmo.  Tal falta é o fruto amargo de uma visão global deficiente, de uma estratégia incipientemente esboçada e conducente, a prazo, à generalização do caos que muitos confundem com a verdadeira liberdade, com uma fantasiosa igualdade, direito que, despudoradamente, alguns pretendem estender muito além daquilo que é igual.

 
Sobretudo em situações de catástrofe, nada resolve a inércia atuante, processo quiçá inventado e desenvolvido em Portugal.  Omnia videre, multa dissimulare, pauca corrigere“ poderá ter funcionado no século VI;  mas, agora, decididamente não.  Não, quando a consequência imediata de olhar para o lado ou de confiar na sorte é a perda de vidas pela qual, ainda que por negligência, um governo é responsável e que, contrariamente ao prejuízo económico, nada poderá fazer para proporcionar reparação.

A mais sólida manifestação do poder é não ter de o exercer, mas tal milagre apenas é possível depois de as seringas da educação e da formação terem feito jorrar para dentro de uns setenta por cento da população a vacina contra a portuguesinha propensão à sistemática e espertalhona violação de determinados e indispensáveis princípios, só assim se conseguindo, talvez, uma razoável imunidade de grupo com a inoculação.

Porque, princípios, há, sim.  Muitos, sérios, e estruturantes de qualquer país civilizado.  O menor de todos não será que, com o que é dos outros, como a saúde pública e a coisa pública, não se brinca.  Faz-se o que se tem de fazer.  Se não se sabe o que fazer, põe-se lá outros a governar.

Nenhum governo pode passar a vida a fazer a vida esperar.

Sic transit gloria mundi

sábado, 20 de fevereiro de 2021


Vende-se ou Vendem-se?

A resposta é "Vende-se casas",
não apenas como manda o imperativo de evitar a desambiguação mas,
sobretudo, por ser esta, por dedução lógica, a correta formulação gramatical



   1. Casos de Ambiguidade Semântica

   2. Uma Possível Origem da Confusão
ref
   3. Comentários à Fundamentação Encontrada
       3.1. Ao Argumento do "Soa Melhor"
       3.2. Ao Argumento do Exemplo de Autores de Séculos Há Muito Passados
       3.3. Ao Argumento da "Cópia do Francês"
       3.4. Ao Argumento do "Reforço da Ideia de Pluralidade"
       3.5. Ao Argumento de Terem o Mesmo Significado a Voz Ativa e a Voz Passiva
       3.6. À Classificação da Voz Ativa como "Voz Passiva Sintética"
       3.7. Ao Argumento da "Regência de Preposição"

   4. Em Jeito de Conclusão

   5. Proposta

1. Casos de Ambiguidade Semântica

Casos de Ambiguidade
Comecemos por ilustrar com o cenário imaginado de, na margem de uma pequena lagoa, existir uma tabuleta com os dizeres “Aqui lavam-se cães”.

O que significa isto? O que quer transmitir-nos quem aquilo ali escreveu?

Se seguirmos a lusitana propensão para nos escusarmos a refletir, recorrendo à mais elementar lógica, sobre estas coisas da língua falada e escrita, seremos livres de entender como bem nos aprouver o que a tabuleta reza… e seremos livres de cair no erro ao interpretá-lo, também.

No entanto, se preferirmos a precisão e a clareza, leremos “Aqui lavam-se cães” como um aviso para não nos banharmos naquele lago porque os simpáticos animaizinhos têm o hábito de ali se lavar… cada um por si ou uns aos outros.
Inversamente, se nos identificarmos com o que parece ser a tendência cada vez mais generalizada para, mesmo com o verbo no plural, considerar o se, não como pronome reflexo, mas como pronome indefinido - ou, como se habituaram a chamar-lhe, partícula apassivante, partícula apassivadora ou pronome apassivante - quem escreveu “Aqui lavam-se cães” terá podido querer dizer que alguém ali costuma lavar os cachorros, ou que alguém ali presta esse serviço.

O que daqui importa reter é que, se considerarmos aceitáveis ambas as formas, se Tanto faz! , ser-nos-á impossível conhecer a intenção de quem escreveu “Aqui lavam-se cães”, uma vez que deixaremos caminho aberto a qualquer das interpretações: que, a eles próprios, os cães se lavam ali, ou que lá os lava alguém.

- x -

Imaginemos, agora, uma sala nas instalações de uma fábrica cuja atividade produtiva represente especial risco para a integridade física de quantos lá trabalham.

Durante a apresentação a um visitante, o guia informa: “Nesta sala, tratam-se os trabalhadores”, querendo transmitir que, quando algum se fere, ali vai tratar-se - a si próprio -  recorrendo, por exemplo, à caixa de primeiros socorros disponível na sala. No entanto, a aceitarmos ambas as interpretações acima enunciadas, também esta frase poderia tornar-se ambígua, na medida em que poderia significar que algum trabalhador com conhecimentos na área da saúde à mesma sala acederia sempre que necessário, a fim de tratar, não as próprias feridas, mas as de colegas que se lesionassem, uma vez mais se gerando a confusão entre o reflexo e o indefinido, entre o próprio ou alguém por ele.

Lista de Palavras
Anexa a este texto existe uma listagem que, apesar de incompleta, contém dezenas de situações de ambiguidade possíveis, como  o caso de uma escola que publicite “Aqui formam-se profissionais competentes e qualificados", pretendendo focar o esforço e o brio dos seus alunos.  Ora, a admitirmos a utilização do verbo no plural, poderia a escola, recorrendo à mesma frase, estar afinal a pretender elogiar, não o empenho dos alunos na própria formação - forma reflexa -, mas o esforço de professores não nomeados, indefinidos, para a formação daqueles.

- x -

Este risco sério de ambiguidade semântica ocorre, na voz ativa, em presença de verbos reflexivos correspondentes a ações que possam ser praticadas por uma pluralidade de pessoas ou de animais tendo como objeto os próprios ou idênticos a eles (se como pronome reflexo ou recíproco), sempre que essas ações forem também materialmente suscetíveis de ser sobre eles desencadeadas por um ou por vários terceiros indefinidos (se como pronome indefinido, a tal partícula apassivante que a alguns alunos tanta confusão faz, e bem).

Nos três exemplos acima, a dúvida quanto à real intenção dos autores das frases apenas poderá ser afastada se, para significar que alguém lava cães na lagoa, se anunciar, no singular, “Aqui lava-se cães”, e não "Aqui lavam-se cães"; se se utilizar “Nesta sala trata-se trabalhadores” para dizer que alguém trata os trabalhadores, em lugar de se tratarem eles; e se a escola publicitar: “Aqui forma-se profissionais competentes e qualificados” referindo-se à atividade docente e formam-se - a si mesmos - para a discente.

Estar-se-á, desta forma, a referir sempre com o verbo no singular a ação empreendida por alguém indefinido sobre um qualquer objeto, seja este singular ou plural, ficando as formas plurais lavam-se, formam-se e tratam-se reservadas para quando a ação de lavar, formar ou tratar for desencadeada, sobre os próprios ou reciprocamente, por vários animais ou pessoas atuando como sujeitos.

Com o verbo no plural, se opera como pronome reflexo, significando os próprios. Com o verbo no singular, se opera como pronome indefinido, significando outrem, alguém.

- x -

Um último exemplo, que recentemente encontrei: entende um dirigente de topo de um partido português que “só devem ser vacinados os deputados que se consideram vitais”. Mas consideram-se eles vitais a si mesmos, uns aos outros, ou refere-se o dirigente àqueles que se considera – ou seja, que alguém exterior ao conjunto dos deputados considera - vitais ?

Eis, pois, definitivamente, estabelecida a confusão e instalada, por via do facilitismo, a ambiguidade semântica - e não apenas a sintática, como alguns pretendem -, e explanada a razão desta reflexão.

2. Uma Possível Origem da Confusão

Origem da Confusão
Além do reflexivo ou recíproco vendem-se e do indefinido vende-se, existe uma terceira construção que, por utilizar o verbo no plural, poderá ter dado origem à forma incorreta vendem-se pretendendo significar que alguém, que não os próprios, vende. Trata-se do mais simples vendem, significando, na voz ativa e com sujeito também indeterminado, que há pessoas que vendem.

Encontramos esta formulação em expressões como "vendem por aí casas boas e baratas", também no sentido de que há quem por aí venda casas boas e baratas. Ou seja: existe uma forma do verbo no plural da terceira pessoa que, é verdade, exprime, de forma gramaticalmente correta, a ideia de que alguém age sobre as casas, vendendo-as.

Note-se que esta terceira forma tem, relativamente ao degenerado vendem-se, a única diferença de não incluir o se - seja lá como for que queiramos classificá-lo.

Porventura por, dada a inexistente diferença de significado entre eles, ter havido quem confundisse este vendem com o seu sinónimo vende-se, terá a forma vendem acabado por degenerar em vendem-se, não por tal corresponder a um aperfeiçoamento lógico, racional, criterioso do idioma, mas apenas por facilitismo, por se haver abdicado de pensar nestas coisas da língua e assumido, erroneamente, que, afinal...  Tanto faz! 

Não encontrei qualquer referência à razão pela qual terá sido inventada a designação partícula apassivante para algo que, com o verbo no singular, não passa, afinal, de um pronome indefinido, classificação bem mais adequada a este se que, muito simplesmente, faz as vezes do indiscutível pronome indefinido alguém. Penso, no entanto, que o assunto é relevante e digno de consideração, se quisermos ficar com uma ideia abrangente sobre a problemática em discussão.

3. Comentários à Fundamentação Encontrada

3.1. Ao Argumento do "Soa Melhor"

Encontrei, por essa Internet, quem diga que há linguistas que preferem a forma vendem-se casas - e outras coisas que a si próprias ou umas às outras não podem ser vendidas - porque soa melhor, ou porque subjaz uma suposta intenção estilística de valorizar a ação, e não o agente*).

Ondas do Mar
Sempre com o devido respeito, a estes direi que, no momento em que linguistas começarem a defender determinada formulação gramatical fundamentando em meras questões de estilo ou no facto de soar melhor, toda a teoria se terá esfumado no ar, a gramática terá perdido as suas regras - que, a partir de então, poderão ser ignoradas e violadas ad libitum - e sido transformada em não mais do que um registo histórico de uma evolução anárquica dos idiomas. Terá, nesse dia, o chamado ensino do Português nas escolas passado a ser olhado como o ato de, simplesmente, impingir matéria para tortura, tédio e perda de tempo de mestres e alunos.

A Língua Portuguesa está, como qualquer idioma vivo, em constante transformação, tal como os seres humanos que a criaram e desenvolveram o estão; mas, tal como os seres humanos, está, também ela, sujeita a regras, a leis, cuja inobservância sistemática - em nome de uma suposta liberdade, criatividade ou o que queiram chamar-lhe - a nada mais conduzirá do que à perda da identidade, como cada vez mais acontece com a língua que falamos em Portugal.

3.2. Ao Argumento do Exemplo de Autores Consagrados

Esta questão é importante, uma vez que existe a presunção quase generalizada de que um autor, por muito consagrado, se interessa necessariamente pelas mais polémicas questões da gramática - ou de todas elas, pelo menos, se apercebe.

Ora, o que, antes de mais, ocupa um escritor que se preze não é o estudo da gramática, antes a reflexão sobre a estrutura do texto, o conteúdo ideológico daquilo que escreve e a forma mais ou menos convincente como o irá apresentar, podendo para tal recorrer, quase até ao absurdo, às chamadas liberalidades, direito que lhe é genericamente, socialmente e, até, pelos linguistas reconhecido. A teoria e o rigor gramaticais aparecem-lhe, depois, como algo bem menos importante do que o facto de soar melhor já aqui referido, do que a preocupação de mais intensamente o leitor   impressionar.

Torna-se, pois, substancialmente abusivo pretender olhar-se para autores que escrevem em Português como se de puristas da língua se tratasse: não o são, e insistir nesta postura será subscrever a tese facilitista de que um idioma se forma, antes de mais, a partir da prática que, sem limites, é deixada à solta para se sobrepor à lógica, à teoria, à regra.

Se assim fosse, sendo as redes sociais o maior repositório de produção escrita dos nossos dias, haveria, mais tarde ou mais cedo, que reconhecer o há-des e o há-dem como formas... sabe-se lá de quê.

Ou será sabem-se lá de quê?

Evolução do Idioma
Um linguista escreve sobre linguística, e ai dele se o não fizer seguindo, rigorosamente, os cânones da gramática. Qualquer outro autor escreve sobre aquilo que bem lhe aprouver, e preocupa-se tanto com a lógica gramatical como a maior parte dos seus leitores - que vão intuindo como regra gramatical qualquer liberalidade recorrente dos seus autores favoritos...

Tudo isto para não falar, claro está, do paradoxo em que, inevitavelmente, caem aqueles que pretendem que um idioma evolui, não pelo desenvolvimento do raciocínio lógico subjacente à regra gramatical, mas pela absorção dos usos de escritores cuja arte se caracteriza, entre outras coisas, precisamente por esse salvo conduto para violar as regras.

Assim, a referência a autores apenas servirá para, a jusante, ilustrar a aplicação desta ou daquela regra: nunca para, a montante e mediante o processo inverso, se invocar a sua produção literária como manancial de informação relativa à forma como, em Português correto, nos devemos exprimir.

- x -

A fonte por excelência da regra gramatical é a lógica, e o seu livro a teoria a partir dela deduzida, sem a qual estaremos condenados ao desnorte próprio de quem deambula sem rumo.

Como deixou escrito um notável italiano, "todo aquele que se apaixona pela prática, sem ligar ao conhecimento, é como o marujo, que entra no navio sem leme ou bússola, e nunca sabe ao certo para onde vai".

Fica, por fim, a pergunta: quererá, mesmo, quem assim argumenta exemplificando, por exemplo, com o Padre António Vieira, que voltemos a exprimir-nos no Português de então? É que, se Vieira e outros são invocáveis para argumentar a favor do vendem-se, haverá, se quisermos parecer minimamente coerentes, que segui-los em tudo o mais, também...

"Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser".

Será caso para se dizer "escrevei assim nas redes sociais e não vos espanteis com o que vos irão responder!"


3.3. Ao Argumento da "Cópia do Francês"

A Regra em Francês
Naquele tom mais ou menos inflamado que nada convém à discussão, que se pretende serena, desta e das outras coisas, sustentam alguns que, quem defende que se é sujeito da oração e pronome indefinido, se limita a, obedientemente, transpor para o Português a regra francesa de utilização do verbo no singular a seguir a on - como em "on vend des maisons".

A estes haverá que dizer que é mais provável que se trate de algo bem diferente, por muito que tal possa desagradar-lhes: por ser a classificação do se e do on como pronomes indefinidos a correta, também os franceses concluíram assim. E, já que falamos disso, também os brasileiros e, por exemplo, os alemães, com o man em "Wo kann man gute Sachen verkaufen?" - e não können -, ou em "Man verkauft Güter" - e não verkaufen.

Ora, isto está bem à vista de qualquer um capaz de uma abordagem desassombrada e cristalina do problema - mesmo que ensine francês há por aí quem diga como garantia de qualidade do absurdo em que insiste.


3.4. Ao Argumento do "Reforço da Ideia de Pluralidade"

Existe, também, quem pretenda que “Vendem-se casas” e “Vende-se casas” significam exatamente a mesma coisa, devendo-se a terminologia escolhida ao facto de, no primeiro caso, supostamente resultar reforçada a ideia de pluralidade relativa a casas*).

Ora, salvo melhor opinião, direi que, do ponto de vista gramatical, tal posição não é aceitável, uma vez que, em “Vendem-se casas”, a ideia de pluralidade estaria reforçada no lugar errado, no complemento direto, em casas, naquilo que se vende, e não no sujeito indeterminado da voz claramente ativa alguém, como cumpriria - uma vez que o que se pretende significar com o se é que "alguém vende casas".

Não manda, de facto, a gramática que é o sujeito, e não o complemento direto, que condiciona a forma do verbo? Ou também aqui a gramática é para ser só a brincar?

Com os pronomes indefinidos invariáveis (algo, cada, nada, ninguém, outrem, tudo e o  alguém que o se aqui substitui ), o verbo é sempre conjugado no singular, pelo que não existe qualquer razão para que com o substituto se tal não acontecer. Sendo o aqui sujeito alguém (se) indeterminado, o verbo há de com ele concordar na forma ativa da terceira pessoa do singular – vende-se casasalguém vende casas -,  e não, no plural, como em alguém vendem ou alguéns vendem, se quisermos disparatar.

Repetição do significado
Ademais, esta coisa de reforçar a ideia de pluralidade viola frontalmente o princípio da economia linguística, uma vez que, estando o plural já clara e obrigatoriamente estabelecido em casas, o alegado reforço - aliás, incorreto - mais não constitui do que manifesta redundância – figura aqui e ali tolerável por uma questão de estilo mas à qual me parece jamais dever ser atribuída a dignidade de regra gramatical. Redundância essa que, saliente-se, nada tem a ver com o processo morfo-sintático legítimo de concordância do predicado com o sujeito, processo que segue a regra gramatical.

Além do mais, qual a utilidade semântica de, em todas as situações - porque de uma regra se trata - reforçar a ideia de pluralidade? Não seria bem mais útil e adequado, nos casos em que tal se justificasse, reforçar a ideia com um modificador? "Vende-se muitas casas" reforçaria muito mais a ideia do que o "Vendem-se casas" que alguns insistem em advogar.


3.5. Ao Argumento de Terem o Mesmo Significado a Voz Ativa e a Voz Passiva

Sustentam outros que vende-se casas na voz ativa equivale a casas são vendidas na voz passiva*).

Isto é verdade: a frase é reversível. Mas é-o apenas quanto à ideia, ao significado: não quanto à classificação sintática dos elementos daquela, já que "voz ativa" e "voz passiva" são expressões que dizem unicamente respeito à forma, e não ao conteúdo, à ideia expressa na oração.

Soçobra, assim, inteiramente a pretensão de que, significando "vende-se casas" (ou "alguém vende casas") e casas são vendidas precisamente o mesmo, casas será o sujeito de ambas as frases: isto é gramaticalmente errado, uma vez que, na voz ativa, o sujeito é quem atua, quem executa a ação, enquanto, na passiva, o sujeito é quem a suporta, quem sofre o efeito da mesma às mãos do agente.

O Complemento Direto e a Forma Verbal
Ora, como parece ninguém contestar, a transformação de uma frase da voz ativa para a passiva implica que o sujeito (alguém) da primeira assuma o lugar de agente da passiva da segunda*), e que o complemento direto (casas) da primeira assuma o lugar de sujeito da segunda. No processo inverso - a conversão da voz passiva em voz ativa -, o agente da passiva (alguém) torna-se sujeito na ativa, e o sujeito da voz passiva (casas) torna-se, na ativa, complemento direto, assim não conservando a qualidade de sujeito*).

Dado que, na voz ativa, está em causa uma ação desencadeada sobre algo ou alguém por um terceiro, não é com casas (complemento direto), mas com alguém (sujeito) que a forma verbal vende há de concordar; e se alguém, um terceiro indeterminado age, a forma verbal aplicável é, como vimos, invariável e deve sempre, assumir o singular.

Assim, se as casas fossem vendáveis a si mesmas ou umas às outras, na voz ativa o verbo poderia estar no plural, exprimindo uma ação reflexa, sobre as próprias, que delas mesmas afixariam imagens nas montras das agências imobiliárias e a elas próprias se transacionariam, sem intervenção humana; mas, sendo o ato de vender materialmente impossível a uma casa, nunca ela poderá ser o sujeito de tal oração.

Nunca é uma casa que se vende a ela mesma: é, necessariamente, alguém que o faz por ela, quem age, o sujeito, mais especificamente o sujeito humano materialmente capaz de a vender.

Vende-se casas, porque nunca se vendem as casas - a elas próprias.

3.6. À Classificação da Voz Ativa como "Voz Passiva Sintética"

Convém, ainda, dirimir a questão da chamada voz passiva sintética, como há quem classifique a forma "vendem-se" por oposição à forma dita analítica "são vendidas".

Não me parece que esta classificação faça qualquer sentido: estando a ideia de passividade sempre presente na voz ativa quando o verbo é transitivo, é redundante pretender que em "vende-se casas" - ou seja, em "alguém vende casas" - a componente passiva está mais presente do que em "João vende casas": as casas são sempre vendidas, passivamente, seja por alguém, seja pelo João.

Vendem-se casas - Partícula Apassivadora
se é, pois, simplesmente indefinido, e não apassivante, porque, nem transforma a voz ativa em passiva (sintética), nem, ao menos, naquela introduz uma componente de passividade, como já vimos inevitavelmente presente quer numa, quer noutra voz.

"João vende casas" é uma forma ativa em que o sujeito é João.

"Vende-se casas" e "alguém vende casas" são, igualmente, formas ativa em que o sujeito é quem vende.

A voz - forma, estrutura - passiva apenas se encontra presente na oração "Casas são vendidas" quando exatamente assim formulada, ou seja, na estrutura que corresponde à forma dita analítica da voz passiva, embora nela se não vislumbre qualquer resquício de análise que justifique tal denominação.


3.7. Ao Argumento da "Regência de Preposição"

Por fim, àqueles que, sempre sem apresentar fundamentação além do axiomático porque é assim, defendem que a forma do singular apenas é aplicável quando o verbo antecede preposição, direi que tal postulado me não parece fazer qualquer sentido, já que dúvida não pode haver de que o sujeito indeterminado de "vende-se casas" e o de "precisa-se de operários" é exatamente o mesmo: o tal misterioso e indefinido alguém.

Neste caso, a regência depende, unicamente, de qual o verbo utilizado como predicado da oração, nada tendo a ver com a voz ativa ou passiva, com o pronome reflexo ou indefinido, ou com qualquer outra consideração, apenas contribuindo para aumentar a já de si preocupante confusão.

Ambiguidade Semântica
Como digo, não encontrei qualquer fundamentação para esta pretensão, seja na boa e desejável lógica, seja em qualquer raciocínio mais ou menos abstruso e idealizado para servir, especificamente, tal alegação.


4. Em Jeito de Conclusão

Voltando à questão da ambiguidade semântica, ninguém duvida de que, independentemente da forma adotada e dado que, de facto, as casas se não vendem a si mesmas ou umas às outras, com esta gramaticalmente errada expressão “Vendem-se casas” estamos a querer significar que “Alguém vende casas”, assim não ocorrendo ambiguidade neste contexto específico - o das casas a venderem-se a elas mesmas ou a serem vendidas por alguém.

Mas não é menos certo que, nos caso dos quatro exemplos com que iniciei este texto – e também,  nomeadamente, no dos verbos reflexivos enganar-se, maquilhar-se, pentear-se e nas dezenas restantes que integram a relação que se segue -, este Tanto Faz!, que mais não expressa do que endémico facilitismo, nunca deixará de gerar a incerteza e a ambiguidade semântica que qualquer regra gramatical deve cuidar de eliminar.

Dado que a generalidade dos autores que vejo pronunciar-se sobre estas coisas não parece ter o hábito de se arrimar na lógica, limitando-se, neste como em outros temas, a procurar legitimar - com recurso a mais ou menos fabulosas e irracionais invenções e procurando fazer valer, como axioma, uma ou outra suposta solução para o problema que lhe pareça mais plausível e fácil de entender - a evolução mais ou menos errática e anárquica que observa, não encontrei qualquer apoio ou elucidação de natureza teórica sustentável para a convicção, que parece quase generalizada, de que qualquer das formas do verbo, singular ou plural, é aceitável, ou, até, de que é "vendem-se" a correta ou, pelo menos, a preferível.

Isto, numa área como a gramática em que, atualmente, parece valer tudo e mais alguma coisa, até que, de uma vez, deixemos de nos fazer entender ao escrever ou falar.

Tão infundadas e erróneas conclusões parecem, assim e além do que já aqui foi dito, de afastar, também por falta de fundamentação, além do que a extensa lista de casos possíveis de ambiguidade diz bem da necessidade premente de se definir, de uma vez por todas, uma clara e consensual posição.

A resposta à pergunta de partida é, pois, "Vende-se casas", não apenas como manda o imperativo de evitar a desambiguação mas, sobretudo, por ser esta, como por dedução lógica se procurou demonstrar, a correta formulação gramatical.


5. Proposta

O débil e pouco útil efeito colateral de reforçar, pelo recurso à mera redundância, a ideia de pluralidade sempre haverá de ceder perante os imperativos maiores do respeito pela classificação sintática, da observância do princípio da economia e do imperativo de prosseguir o importante objetivo de procurar a clareza através da fundamentação lógica e coerente, unica forma legítima de eliminação da ambiguidade.


Propõe-se, assim, que, caso oposição fundamentada e convincente não seja apresentada, se adote como regra que:

     i) quando a ação é executada pelo sujeito sobre o próprio ou entre idênticos, encontramo-nos na voz ativa e perante o pronome reflexo ou recíproco se, devendo o verbo concordar em número com aquele, seja ele singular ou plural;

   ii) quando a ação é executada pelo sujeito sobre terceiros não idênticos (complemento direto), estamos também na voz ativa - e não numa impropriamente chamada voz passiva sintética -, mas, desta vez, perante o pronome indefinido se - impropriamente designado partícula apassivante -, devendo em tal caso ser o verbo utilizado unicamente na forma singular, por imperativo de concordância, na terceira pessoa, com o sujeito indeterminado (alguém, ninguém).

Dado que o contrário resultará, sempre, na falta de concordância, quanto ao número, do verbo com o sujeito, a regra agora proposta deverá ser de aplicação geral, mesmo nos casos insuscetíveis de gerar ambiguidade - como o tal das casas que a si mesmas ou umas às outras não são materialmente suscetíveis de se vender.

Quanto à relevância e importância da questão, a expressiva quantidade de casos possíveis de gerar ambiguidade, não deverá deixar grandes dúvidas de que se trata de um problema que urge resolver.

Ou continuaremos a encontrar, em peças jornalísticas, pérolas como "Tratam-se, portanto, de situações delicadas que"... dizem bem do pouco cuidado que há com estas coisas do falar e do escrever.

* *

Por que terá de continuar a ser assim? "Por que terá?" ou "porque terá?"

Eis outra dúvida omnipresente no espírito atento de quem escreve, e no espírito crítico de quem lê.

(continua aqui a discussão deste tema)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará

Casos Suscetíveis de Gerar Dúvida na Conjugação no Singular ou no Plural,
(por a ação poder ser executada sobre o próprio agente ou sobre terceiros)

(caso lhe ocorram outros, por favor ajude a completar esta lista informando no espaço "Comentários")

aborrece-se ou aborrecem-se
acomoda-se ou acomodam-se
acorda-se ou acordam-se
adormece-se ou adormecem-se
assume-se ou assumem-se
assusta-se ou assustam-se
atira-se ou atiram-se
barbeia-se ou barbeiam-se
cala-se ou calam-se
cansa-se ou cansam-se
casa-se ou casam-se
cata-se ou catam-se
chama-se ou chamam-se
corrige-se ou corrigem-se
considera-se ou consideram-se
corta-se ou cortam-se
cura-se ou curam-se
deita-se ou deitam-se
deixa-se ou deixam-se
despe-se ou despem-se
despede-se ou despedem-se
desperta-se ou despertam-se
dirige-se ou dirigem-se
emenda-se ou emendam-se
encontra-se ou encontram-se
encosta-se ou encostam-se
enfurece-se ou enfurecem-se
engana-se ou enganam-se
enoja-se ou enojam-se
entristece-se ou entristecem-se
envergonha-se ou envergonham-se
estima-se ou estimam-se
faz-se ou fazem-se
fere-se ou ferem-se
forma-se ou formam-se
lava-se ou lavam-se
leva-se ou levam-se
levanta-se ou levantam-se
maquilha-se ou maquilham-se
mete-se ou metem-se
molha-se ou molham-se
move-se ou movem-se
muda-se ou mudam-se
ocupa-se ou ocupam-se
olha-se ou olham-se
penteia-se ou penteiam-se
pinta-se ou pintam-se
põe-se ou põem-se
preocupa-se ou preocupam-se
refere-se ou referem-se
retira-se ou retiram-se
reúne-se ou reúnem-se
rompe-se ou rompem-se
seca-se ou secam-se
segura-se ou seguram-se
tem-se ou têm-se
tranquiliza-se ou tranquilizam-se
trata-se ou tratam-se
vê-se ou vêem-se
vende-se ou vendem-se
veste-se ou vestem-se

A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de definir como devemos exprimir-nos, a gramática se limitar a observar como vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada hipercorreção qualquer tentativa de resistência à degeneração