sábado, 10 de abril de 2021


Sexo É do Género Masculino

"Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu,
não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto,
preferindo-lhe o tão ambíguo termo 
género na expressão que diz que os direitos
e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais"


   1. Pressupostos
   2. Primeira Apropriação Lexical
   3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação
   4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)
   5. Resumindo…


1. Pressupostos

Não valeria a pena investigar se a investigação científica não conduzisse à descoberta de novas realidades e de conhecimento retificado ou acrescentado quanto àquelas que julgamos conhecer; tampouco se, convidando o registo dessa evolução à introdução, na linguagem falada e escrita, de novos conceitos, escolhêssemos não os adotar.

Nesta adoção de neologismos ou adição de significados a termos existentes sempre se haverá, porém, de assegurar que o léxico próprio de uma área do conhecimento não irá, por erro, incúria, indiferença ou outro vício do processo, afetar o rigor vocabular de outra área - ou de todas as outras.

Quando falamos ou escrevemos, importa sermos precisos e inequívocos na aplicação dos conceitos; importa saber não só o que queremos dizer, mas o que estamos, efetivamente, a dizer.  Há, pois, que usar da maior precaução, sempre que, em lugar de investir na formação de novas palavras, uma área do conhecimento optar pela apropriação de termos já utilizados por outras ou, mesmo, pela linguagem do quotidiano, muito especialmente se se tratar de palavras já de si inquinadas de vasta ambiguidade, seja ela inerente ao caráter genérico do conceito único que exprimem, seja à multiplicidade de significados que lhes possa ser atribuída.

Em tais condições, agravar a polissemia, acrescentando significados ou utilizações possíveis a termos deles sobrecarregados, mais longe não levará do que ao incremento da dúvida nociva e a uma crescente degradação da clareza, a ponto de nos arriscarmos a cair na situação ridícula de, ao tentar, fechada sobre si, enriquecer próprio o léxico, determinada área do conhecimento acabar por adotar vocábulos de significado já tão difuso que, além de nada de bom acabarem por acrescentar à clareza do discurso científico, inexoravelmente acabarão, antes, por fortemente a prejudicar.

Assim parece ter acontecido, no caso que aqui me traz, com a Política e com as Ciências Sociais.

 

2. Primeira Apropriação Lexical

Quando, num formulário, existe um campo “Sexo:”, ninguém espera que o preenchamos designando o órgão reprodutor com que nascemos, ou com que, mais tarde, tivermos escolhido ficar:  o que se espera é que, mediante feminino ou masculino, indiquemos qual o conjunto a que pertencemos atendendo às diversas variáveis primárias e secundárias que, sexualmente, nos caracterizam.

Mas, sexo, é uma coisa; outra, o comportamento sexual *). Quanto a este, não há extremos ou opostos, nada é preto ou branco, ou expresso em zeros e uns:  há que considerar infinitos tons de cinzento e números decimais nos quais cada um de nós se situa, pois, tal como não há gente cem por cento boa ou cem por cento má, também não há absolutos na caracterização da identidade sexual de cada um e, muito especialmente, do seu comportamento.

Assim, conscientes de que, ao nível do comportamento e a despeito do que é fisicamente aparente, as coisas são tudo menos simples, parecem as Ciências Sociais ter, num dado momento, sentido a necessidade de introduzir, no seu léxico específico e em benefício exclusivo do mesmo, um novo conceito destinado a caracterizar, já não os dois possíveis conjuntos de caraterísticas sexuais biológicas propriamente ditas, mas algo que poderemos, em síntese, definir como o que, inerente à sexualidade, se passa no plano dos sentimentos e das emoções do ser humano;  e também, a necessidade de incluir cada indivíduo numa classificação quanto à forma como, em virtude dessas emoções e desses sentimentos, se irá comportar.

De forma porventura ligeira e pouco refletida, ter-se-á, então, decidido acrescentar aos significados do termo género estas combinações de sentimentos, emoções e comportamentos de raiz sexual que visam, a jusante, o desenho de modelos sociais e culturais baseados nos múltiplos decimais e tons de cinzento que poderão assumir, designadamente na intensidade e na forma como cada pessoa se identifica com um ou outro padrão comummente associado a indivíduos de um ou do outro sexo biológico, intensidade e forma essas que, como um todo, por identidade de género *) as Ciências Sociais terão decidido designar.

Tal escolha aconteceu, porém, em claro detrimento do rigor dos léxicos da Biologia*) e da Linguística*), que, como veremos, não se terão as Ciências Sociais coibido de prejudicar.


3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação

O prejuízo para o léxico da Biologia aconteceu porque há muito que o animal humano está, como qualquer outro ser vivo, sujeito à classificação biológica*), a qual pode, de forma simplificada, ser hierarquicamente enunciada como domínio, reino, filo, classe, ordem, família, género e espécie – que são, no caso dos humanos, respetivamente Eukariota, Animalia, Chordata, Mammalia, PrimateHominidae, Homo e Homo sapiens.

Só depois, na base da pirâmide, podem os indivíduos da maior parte das espécies ser, complementarmente, classificados de acordo com o sexo biológico que apresentam, feminino ou masculino.

Daqui se extrai, quanto ao ser humano, evidentes conclusões:

1.    de que a sua classificação biológica quanto ao género é única (Homo), e não dupla (feminino e masculino);

2.   de que a divisão em feminino ou masculino se refere, exclusivamente, ao sexo biológico, e é meramente complementar.

Existe, porém, outra área do conhecimento diretamente lesada pela apropriação feita pelas Ciências Sociais: a Linguística, para a qual Género *) é, inquestionavelmente, uma das variáveis utilizadas para classificar, não só os nomes, como as palavras declináveis que a eles se associam, classificação essa efetuada segundo critérios que, embora numa quantidade significativa de casos se encontrem intimamente ligados às aspetos sexuais biológicos dos seres que alguns substantivos designam, são, na sua maior parte, espontâneas, nascem dos usos, e não de qualquer caracterização biológica de propriedades das quais, amiúde, nenhuma, apresentam.

A palavra árvore, entre tantos outros exemplos, é do género feminino, apesar de haver árvores do sexo feminino, masculino e hermafroditas.  Tampouco se conhece sexo a armário, mesa ou cadeira; e, crianças, há-as dos dois.

4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)

Embora, na linguagem do quotidiano, a confusão deste novo género social com o género biológico Homo seja muito improvável dada a raridade da referência a este, o mesmo se não pode sustentar quanto à confusão com o género das palavras, e isto desde os mais elementares níveis da escolaridade.

Muito mais séria, porém, resulta, inevitavelmente, a confusão crescente entre, por um lado, os géneros biológico e gramatical e, por outro, o género da igualdade de género *), que por sua vez, a Política tem vindo, ao que parece, a colar ao de identidade de género das Ciências Sociais.

Aqui, os objetos da defendida igualdade são as mulheres e os homens – e, naturalmente, os indivíduos de sexualidade mista, por assim dizer -, e a igualdade que se almeja é, ao que dizem, absoluta, embora se trate de uma pretensão cuja simples formulação bastará para que a consideremos um objetivo de validade e, sobretudo, exequibilidade duvidosas. Entre outras razões, que aqui não cabe desenvolver, desde logo porque, sendo os indivíduos dos sexos feminino e masculino dotados de características biologicamente diferentes, pretender dispensar-lhes igual tratamento, a todos os níveis de todas as vertentes da vida, seria permanentemente violentar uns e outros; ou seja, precisamente o contrário daquilo se diz defender.  Já muito diferente e premente é, naturalmente, a questão da igualdade de direitos e de deveres entre todos os indivíduos, independentemente da sexualidade - do sexo das pessoas, e não do género das palavras -, imperativo estruturante de qual sociedade dita civilizada e há muito plasmado na Constituição da República *).

Falta, evidentemente e em muitos casos, transpor para a prática tal desígnio.  Mas isso apenas poderá ser conseguido mediante a evolução das mentalidades, para cuja educação não parece necessária ou, minimamente, eficaz a prévia degeneração do significado de género em prol de algo – o sexo – que tem, desde tempos imemoriais, uma precisa e inequívoca correspondência vocabular.

Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu, não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto, preferindo-lhe o tão ambíguo termo género na expressão que diz que os direitos - e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais.

Apenas conheço o género humano. Género feminino e género masculino não passam, para mim, de impropriedades vocabulares.

5. Resumindo…

Ø  Sexo é uma variável de classificação biológica dos seres vivos.

Ø  Género, aplicado a seres vivos, é uma unidade taxonómica que, no caso dos seres humanos, corresponde, unicamente, a Homo.

Ø  Para a gramática, sexo é do género masculino, e o género de um nome serve para, com este, outros termos declinar.

Ø  Em lugar de deitar achas na fogueira do facilitismo e da confusão generalizada, bem fariam as Ciências Sociais em investir algum tempo na procura, para identidade de género, de um novo conceito, de uma alternativa clara e sem efeitos colaterais.

Ø  Quanto à igualdade prosseguida pelos políticos, não necessita de neologismos:  sexo diz muito bem aquilo que querem significar.

Porque não é verdade que… “Tanto faz!.

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A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará

sábado, 3 de abril de 2021


Quero Ser Feliz!

(Introdução à Secção ‘Sociedade’)

"O que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade
consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe,
realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém,
por nossa causa, acabar por perder"

Recebi há dias, na caixa de correio eletrónico, uma mensagem a informar de que vinha a caminho “a encomenda da sua felicidade”, assim se designando, pelos vistos, uma coisa qualquer indiferenciada e sem importância que, por força do dever geral de recolhimento, me vi na contingência de ter de encomendar em vez de, como habitualmente, ir à loja buscar.

Mas, a quem tem de estar fechado em casa, que espécie de felicidade é que uma banalidade daquelas poderia trazer?  Por que razão há de um fornecedor entender que qualquer coisa que venda, mesmo meia dúzia de esferográficas, é suscetível de causar felicidade?  O que é, para estas pessoas, essa tão ambicionada felicidade?

O conceito de felicidade é dos mais difíceis de definir claramente:  para uns, um momento; para outros, uma época; para outros ainda uma quimera, uma mera ilusão.  Para uns, esfusiante alegria; para outros, simples bem-estar; para outros, apenas que a saúde e a mesa não causem preocupação.

Nos tempos que correm, porém, os mais fiéis sinónimos de felicidade parecem ser riqueza, prazer e ostentação, tudo isto orientado, de forma mais ou menos evidente, para o eterno eu, centro do Universo, e sem o qual todos os outros – os infelizes que não sabem ser felizes como eu – passarão a vida inteira de monco caído por não poder admirar e idolatrar alguém como… eu.

Eu sou assim”, estou “muito bem resolvido” e, como consigo irradiar toda essa felicidade, todos me amam, pelo que “estou muito orgulhoso de mim”; e, como tanto faço pelos outros, tudo quanto tenho “eu mereço”.

Balelas!

Tudo isto, herdado, porventura, do bem conhecido e mais subversivo dislate publicitário que os meus olhos e ouvidos alguma vez captaram e, provavelmente, captarão: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” - do qual me não lembro de que as tão sensíveis consciências cívicas que por aí andam alguma vez se tenham queixado; e, como o anúncio continuava a dar na televisão, provavelmente até o  cosmético embevecida e obedientemente  utilizavam e eram, até, capazes de elogiar.

Todavia, dizer que, se eu não gostar de mim, mais ninguém gostará não passa da defesa abjeta do cada um por si, do completo afastamento daquela entreajuda elementar que até os mais ferozes bichos sabem o que é, da absoluta negação de tudo quanto é social e, como tal, vital à manutenção da vida como por cá a conhecemos e, embora com bem necessárias melhorias, gostaríamos de continuar a conhecer.

Seja qual for a capacidade económica, muita desta gente que pensa unicamente em si - e, pateticamente, se leva muito a sério - não se limita à congratulação íntima e ao recatado usufruto daquilo que a carteira lhe permite adquirir: obriga, antes, o egocentrismo desmesurado a que os assim chamados sucessos sejam deliberada e pormenorizadamente esfregados na cara daquilo que, aos seus olhos embaciados por uma espécie de glamour parolo, não passa de uma mole de adeptos tão medíocres que jamais conseguirão imaginar quão pequena fração o pouco que têm representa do suculento bolo que os bem sucedidos empanturra - por não terem sido ensinados a digeri-lo.

Ao adquirir o bem não visam um prazer de uso ou qualquer outro tipo de vantagem que dele possam extrair: compram, simplesmente, a ideia de riqueza que subjaz à posse.

Por não saberem quanto a própria imagem é desoladora, estas autênticas marionetas animadas pelas mãos da vaidade cultivam-na obsessivamente, continuamente impondo, àqueles que não podem deixar de o ver, o desfile patético daquilo com que, raras vezes o dinheiro, muitas o crédito, algumas a troca de favores lhes permite obter, como as acessíveis e inevitáveis unhas de gel, o já não tão acessível conjunto da última moda que viram na revista da cabeleireira, a carripana das mais caras que o dinheiro pode comprar, um iate, um aviãozinho, a leiloada camisola transpirada pela prática desportiva de um notável qualquer.

Talvez inspirados por slogans irresponsáveis como "A Criar Excêntricos Todas as Semanas"*), da desbragada ostentação se não coíbem estes magníficos, estes narcisistas porventura indiferentes ao sofrimento alheio - porque não basta dizer que temos muita peninha... -,mesmo numa altura em que o Mundo inteiro sofre como poucas vezes terá sofrido, em que a miséria grassa, os hospitais transbordam por falta de meios, o medo espreita.  Não obstante, alguma legitimidade há que lhes reconhecer para pensar como pensam, já que nem em tão desoladora conjuntura deixam de ser idolatrados por adeptos com paupérrimas mentes e depauperadas algibeiras, integrados em famílias desesperadas que, para povoar o imaginário das suas vidas sem graça, continuam a depender da alheia e impressa ou televisionada ostentação.

Enfim, sendo a inconsciência o lar da verdadeira felicidade, a alguma dela sempre acharão estes tacanhos e desamparados amigos e seguidores que, embasbacando-se perante tamanha vulgaridade, lá acabaram por aceder - ignorando ou preferindo ignorar que, para aqueles que, com tanta luz, lhes queimam os olhos, cada um destes confrangedores basbaques não passa de “uma pinta num melão verde”.

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Inesgotável manancial para um caricaturista, esta casta de salientes habita os mais diversos lugares - e vive em todos os estratos económicos e sociais -, mais não representando, todavia, do que o papel da sua própria personagem, numa carência de substância total ou quase total.  Apesar do efeito que sabem provocar nas suas plateias, domésticas ou universais, estas estranhas e superficiais pessoas não passam de aprendizes de ilusionistas, de desengraçados comediantes papagueando um mal-amanhado texto e esquecendo-se de que, como acontece com tudo na vida, chamar a atenção para nós mesmos, só é saudável até ao ponto preciso em que deixa de o ser.

A desmedida soberba ainda seria tolerável se, juntamente com a tralha que exibem, nos não impusessem aos olhos a desagradável imagem das suas personalidades e, pior ainda, aos ouvidos as palavras ocas e atiradas ao calhas que já nem pachorra temos para tentar entender.  Agora, e para cúmulo, alguns dos mais abastados até se deixam convencer de que sabem escrever, assim dando razão a quem diz que “com dinheiro no bolso somos sábios, elegantes e até sabemos cantar” - não se ralando minimamente com o facto de não saberem estar.

Trata-se, afinal, de pessoas que são aquilo que não mostram e mostram aquilo que não são, que não são aquilo que mostram e não mostram aquilo que são.  Mas, pelo menos, não macem, não se imponham, nem sequer apareçam: quem vive só para si mesmo, só consigo mesmo deve viver.

Isto, sejam os ditos poderosos políticos, funcionários corruptos, aldrabões profissionais, milionários feitos à pressa, medalhados da treta ou apresentadores arvorados em acionistas de canais de televisão sem particular apetência pelo cumprimento das suas contratuais obrigações, todos eles talvez nem sempre animados das mais nobres intenções e valendo-se da facilidade com que, fazendo-se servir dos mais modernos artifícios comunicacionais, mesmo à distância conseguem ir ganhando injustificada afeição, mormente junto das camadas menos instruídas e educadas da população.

Ou poderá tratar-se daqueles multimilionários que aprenderam a dar uns toques na bola, alguns deles de couro pouco cabeludo mas cheio de pinceladas surrealistas; daqueles que têm, ganham e não cessam de exibir centenas de milhões, evitam, por desconhecimento, as obrigações fiscais, e vêm de longe a longe, alardear na imprensa donativos de parcas centenas de milhar a uns bombeiros, a um hospital ou a um lar.  Não é por terem tido sucesso e conseguido molhar o pão na sopa que, uns ou outros, passaram a fazer parte dela, da mesma forma que uma mosca que aterra numa sopa de legumes não passa a ser um legume: continua a ser uma ridícula e indesejável mosca no meio da gamela.

Lá se vão, pois, esgadanhando uns aos outros esses infelizes na disputa do protagonismo essencial à manutenção dos fluxos monetários que abundantemente jorram da inesgotável fonte da publicidade ou dos fartos seios da República, e dos quais dependem para alimentar os monstros de vaidade em que, sem remédio, se vão transformando, já que “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros*) – coisa que toda a gente sabe mas custa muitos votos dizer.

Fariam bem os teóricos e os politicamente corretos em ter em conta, nos seus comentários, recomendações e decisões, que há muita gente assim; e que muitos deles querem ser felizes, à maneira deles, comprando, ostentando, fazendo mal, ora ourados com a glória assegurada pela simples posse, ora transidos de medo de que lhes reduzam o agasalho ou lhes penhorem os brinquedos que tanto gostam de assoalhar.

Toda esta oca palermice de acenar com muitos bens, com muito eu, aos muitos fans – em inglês, que é mais chic -, aos muitos amigos das armadilhas (perdão: redes!) sociais, não passa da eterna busca pela felicidade; mas é uma busca enviesada e vã, já que os que mais se esforçam por mostrar o quanto são amados, são, quase sempre, os mais infelizes, também: apesar da aura de infuencers, de orientadores espirituais da gulodice dos outros, estes lastimáveis seres, ao mesmo tempo que explodem em simulada alegria, muitas vezes implodem em profunda dor no mais íntimo dos seus corações.

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Mal ou bem, ensinaram-me que ser respeitável não é ter direito ao respeito dos outros, mas sim merecê-lo - coisa que em certos espíritos parece ter grande dificuldade em entrar, já que, seja qual for o nível de vida ou a dimensão da bolha de empréstimos, toda a atividade do cérebro empobrecido de quem se maravilha com a sua pessoa parece focar-se na incontrolável necessidade de causar inveja junto dos atentos e obrigados veneradores que se esgorjam por mostrar que conhecem todos os seus importantes segredos para, pressurosamente, depois os bichanar ao ouvido do vizinho.

Boa, ‘Miga, vão morrer de inveja!” parece ser a frase preferida desta trupe cada vez mais preponderante num país que, a acreditar nos Censos, é maioritariamente cristão e no qual, paradoxalmente, tanta gente parece empenhar-se em fomentar nos outros a prática do um pecado mortal da inveja.

Quando a montanha de notas não tem cume, não deixam estes alpinistas de ter alguma razão, na medida em que estão mesmo a pedi-las aqueles que, tão longe da realidade dos seus ídolos, nem inveja deles e das coisas deles conseguem sentir, já que não é possível invejar algo de nós tão distante que nem logramos vislumbrar sua real dimensão.

Já quando, pelo contrário, as poucas notas que há em casa pertencem todas ao banco ou nem dão para aconchegar a carteira, as canseiras a que os mais pequenos se dão para imitar os poderosos apenas os fazem parecer ainda mais pequeninos, pobretes, mais ridículas, e desproporcionadas as suas pretensões.

Para estes e para aqueles que, apesar de afortunados, são menos dados a essas coisas da inveja e da ostentação, a felicidade não passa da animalesca maximização do usufruto dos bens efémeros a que conseguem aceder, muitos dos quais acabam por ficar na posse de quem, para eles os poderem comprar, caiu na asneira de o dinheiro emprestar.  Também há, é claro, as cirurgias plásticas sem fim, as dependências do mesmo género, os casos dramáticos, as histórias que acabam mal, que toda a gente conhece e de que, por isso mesmo, nem vale a pena aqui falar.

Sempre haverá gente que, mesmo quando se acha feliz, continuará a ambicionar sê-lo ainda mais, em lugar de pensar em passar a dedicar-se à felicidade dos outros.  Gente que sempre confundirá felicidade com facilidade em todos os momentos da vida, e cada vez mais.  Trata-se da abissal diferença entre o ser relativamente feliz e o procurar, ao menos, por uns breves momentos, sentir-se feliz, contentando-se com isso, que já não é nada mau (sei que, a pensar assim, não vou longe, mas apontem à vontade o dedo à minha falta de ambição, a qual prefiro, de longe, a ser adjetivado de algumas outras formas).

"Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas; então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade do dever cumprido".

No entanto, o que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe, realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém, por nossa causa, acabar por perder: perdem os que não ganham, os que são roubados, os enganados, os que pasmam embevecidos ou embasbacados, os que passam a vida infelizes, à espera de acabar.

Nestes conturbados tempos, alguém mais exposto ou vulnerável também perde quando outro alguém fica feliz por ter conseguido uma não planeada picadela de seringa, e alguns inocentes perdem quando outro alguém consegue trazer, como sobra de uma jantarada fora com amigos ou de um bacanal, um microscópico bicharoco cheio de perninhas, da família dos Covid Portugal, seus primos brasileiros, africanos ou ingleses, que, generosamente, esse inocente irá partilhar com quem ao caminho se lhe cruzar, durante ou depois do tal jantar.

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A felicidade está, ou não está, em nós próprios:  é insano contar que no-la deem outros que a querem para eles. O segredo para sermos felizes é saber voar com os pés no chão, desejar, apenas, aquilo que, naturalmente, podemos alcançar ou ter sem, para tanto, coisas bem mais importantes termos de sacrificar.

Não vale, também, a pena tentar compensar com o dinheiro e com o corpo a debilidade do espírito: só é especial quem o é para os outros, quem busca a felicidade procurando fazer do mundo que o rodeia uma feliz cidade.

Ser especial para si mesmo é nada.  Ser especial é darmo-nos; e darmo-nos não é fazer pelos outros aquilo que nos apetece, se e quando nos apetece – mesmo que não apeteça a eles.

Quando não ligamos aos outros, não podemos legitimamente esperar que liguem a nós.

Esta indiferença faz com que, cada vez mais, experimentemos o medo, o pânico próprios de um ser frágil e dependente como o humano, muito especialmente quando, por ignorarmos os outros, acabamos por nos sentir cada vez mais... sós.