sábado, 1 de maio de 2021


Os Factos e os Seus Atos

"Para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado,
facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo,por este andar,
de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário,
desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender"


   1. O Descrédito Crescente dos Dicionários
   2. Polissemia que Degenera em Confusão
   3. Confusão no Tribunal
   4. Notas Finais


1. Descrédito Crescente dos Dicionários

O que é um dicionário?

As pessoas da minha não muito ínclita geração, habituaram-se a venerar estes anafados volumes em papel como uma espécie de cardápio de todas as palavras que compõem um idioma - excluindo, naturalmente, as conjugadas e declinadas, bem como o mais pesado palavrão -, e a eles sempre recorriam ao deparar com um vocábulo novo e, para elas, desconhecido, ou quando uma dúvida emergia relativamente a determinado significado ou ortografia.

Dicionários – sempre em papel, já que o digital ainda não era, sequer, uma quimera -, havia diversos, uns mais conhecidos e tidos como fiáveis do que outros, mas todos credores do maior respeito e tidos por fiáveis e rigorosos.

Isto, era dantes.

No século XXI, o significado de dicionário parece ter-se alterado substancialmente, por vezes mais não parecendo agora muitos deles do que róis de palavras seguidas da indicação, não apenas de significados reais, como, muito além da há muito estabelecida polissemia, também daqueles que, quase a esmo, vão elas vendo ser-lhes arbitrariamente acrescentados a um ritmo que os formatos digitais tornam cada vez mais alucinante, assim bem evidenciando o crescente primado da quantidade sobre a qualidade, como se o melhor dicionário fosse aquele que atinge uma maior média na quantidade de significados propostos por palavra. Não tardará que alguém invente um critério objetivo, uma norma europeia, para os classificar como, talvez, uma MSPP, com isto significando média de significados possíveis por palavra, independentemente do rigor, da objetividade e da fiabilidade da enumeração.

O mais triste é que nada disto verdadeiramente espanta, se tivermos presentes as adaptações e concessões que simultânea e constantemente vão desvirtuando até as próprias regras gramaticais, hoje em dia eivadas de explicações no mínimo criativas - embora, muitas delas, de espantosa ilogicidade -, cada um palrando como muito bem lhe apetece, indiferente à teoria e à forma desde que, melhor ou pior, lhe pareça que se faz entender.


2. Polissemia que Degenera em Confusão

A título de exemplo, uma breve pesquisa nos dicionários em linha na Internet, mostra-nos, para a palavra facto e entre muitos outros, o significado de “coisa realizada, ato, feito”, ou de “ação, resultado acabado ou que está em vias de execução”, “ação de fazer alguma coisa; processo”.

Para ato, encontramos, por sua vez, “ação considerada na sua essência ou resultado.  [Por extensão] Feito, facto”, “Funcionamento da habilidade de atuar ou agir, ou referente àquilo que dessa ação resulta; (Por extensão) Ocorrência ou facto”.

Quer isto dizer que, para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado, e facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo, por este andar, de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário, desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender.

Aplicando a esta fantasiosa cartilha a propriedade transitiva "se é verdade que, se A é igual a B e B é igual a C então A é igual a C", teremos que facto e ato são a mesmíssima coisa, o que cedo se apresentará como um rematado dislate a qualquer pessoa que se disponha a dispensar uma porção mínima dos seus neurónios a refletir sobre a matéria.

Já aos outros, que querem lá saber, que propalam a anomia linguística ou se limitam a, de forma mais ou menos subserviente, continuar a confiar cegamente no que dizem dicionários de pouco crédito - para os quais, não obstante, olham com os mesmos maravilhados olhos com que mirávamos os rechonchudos e valiosos dicionários em papel do meu tempo de escola - bastará neles lerem que “Tanto faz! uma coisa como outra para não hesitarem em, por sua vez, atirar para o ar ou para o papel a primeira que lhes vier à cabeça, ou a que lhes parecer mais bonita, ou mais rebuscada – para parecer bem –, ou seja qual for e por que for.

Note-se que não estamos, sequer, em presença de um caso de ambiguidade ou vagueza, uma vez que entre uma ação (ato) e o correspondente acontecimento (facto) não existe confusão possível: o segundo é, sempre, resultado do primeiro, ainda que este nasça de um ato da Natureza - ou como lhe quisermos chamar -, com isto se entendendo qualquer coisa desde um movimento tectónico até ao ataque por um lobo em busca da sua vianda diária, passando por tudo o resto que não decorra de um ato humano explícito, identificável e atribuível a um sujeito, sem prejuízo, naturalmente, da eventual responsabilidade de seres humanos em outras ações ou omissões identificadas como causas, ainda que indiretas, desses naturais acontecimentos.

Um incêndio é um facto, e não passa de um facto. Pode é dar-se que a causa direta desse facto tenha sido um ato, doloso (fogo posto) ou negligente (um fósforo em brasa atirado, impensadamente, ao ar), que o tenha determinado.

Um facto, ou é espontâneo, ou é gerado mediante a prática, por alguém, do ato que o origina.

Não se pratica uma cadeira: constrói-se uma cadeira, dá-se-lhe existência (facto) através da prática dos atos necessários à obtenção do resultado pretendido: serra-se a madeira, prega-se os pregos e por aí fora, todos eles atos visando a conssecução do resultado final idealizado: uma cadeira.

Para que ocorra o facto de a cadeira passar a existir, é necessária a prática de uma série de atos na sequência definida no procedimento técnico adotado pelo marceneiro. Da mesma forma, jamais uma pessoa poderá praticar um facto, apenas lhe sendo possível dar-lhe existência, torná-lo real, como resultado mediato ou imediato do ato ou dos atos que praticar.

- x -

Qual é, então, a função de um dicionário?

Elucidar quanto aos significados que o costume sedimentado e enriquecido pela obra de consagrados autores gradualmente foi associando a cada termo ou, obedientemente, aos primeiros ir aditando todas as semelhanças, por muito ténues, que o falador mais ignorante resolver começar a associar-lhe, por ignorância, arrogância ou parola gabarolice?

Não tarda irá aparecer por aí um autodenominado dicionário que nos dirá que, além da vintena de significados que já lhe atribuem, rasgar significa também arrasar, dar cabo de, como agora é uso dizer-se nas redes supostamente sociais.  Será, então, caso de rasgar mas é o dito dicionário – ou melhor, de o deletar, como alguns gostam de dizer, já que bytes ainda ninguém descobriu como rasgar.

Ao gosto pela elegância na escrita sucedeu o mau gosto pela agressividade. Por este andar, a falta de exigência, de um mínimo de rigor, levará a que, um destes dias, rasgar signifique também… oferecer uma flor.


3. Confusão no Tribunal

Do que antecede haverá, naturalmente, que ressalvar termos como escrita, em que substantivos homónimos significam quer o ato de escrever, quer o seu resultado; e até o correspondente adjetivo qualificativo, para complicar. No plano global, porém, a proliferação vocabular não apenas traz consigo inevitável prejuízo para o rigor e para a fiabilidade dos significados inscritos nestes gigantescos índices de palavras, como facilmente conduz a evidentes erros lógicos, por vezes com repercussões lamentáveis, nomeadamente em áreas particularmente sensíveis do conhecimento e, dentro destas, a profissões cuja dignidade imprescindível ao funcionamento do Estado nos levaria, com toda a legitimidade, a esperar que cuidassem os seus agentes de falar e escrever de forma estruturada, até elegante e, sobretudo, clara.

Um caso evidente é o da magistratura, com especial acuidade no que se refere ao rigor e clareza da redação das decisões judiciais e de outras peças jurídicas, elaboradas por técnicos dos quais, em prol da fiabilidade das decisões prolatadas, seria de esperar que, em todas as situações, soubessem demonstrar especial capacidade para interiorizar, com precisão e critério, os conceitos e as respetivas e evidentes diferenças, em lugar de ceder a este novo facilitismo lexical que se apresenta, não apenas absolutamente injustificado e inútil, como contraproducente, apenas servindo para descredibilizar o desempenho de quem a ele adere e para, nos espíritos menos esclarecidos, a dúvida e a confusão fomentar.

O léxico comum, mesmo corrompido pelo facilitismo e pela indiferença, distingue-se de forma inconfundível do léxico jurídico, por maioria de razão quando se trata de conceitos técnicos muito específicos e frequentemente nomeados.  Sobretudo, não pode esse léxico comum inquinar ou desvirtuar conceitos que a teoria jurídica consagra e, até há algum tempo, a prática cuidava de aplicar.

Voltando aos atos e aos factos, e salvo melhor opinião, facto jurídico é qualquer ocorrência suscetível de gerar ou extinguir um direito, podendo também servir para manter ou alterar um direito previamente existente.  Já por ato jurídico entende-se, não um acontecimento, mas uma ação humana que, se for censurável, poderá corresponder a um comportamento deliberado ou meramente culposo.

Para o Direito, um facto é, assim, o efeito da causa que, quando originada num ser humano, se designa por ato, legítimo ou não. Trata-se, pois, de duas realidades distintas, de duas definições inconfundíveis. 

Consequentemente, ninguém pode ser responsabilizado pela mera ocorrência de um facto, mas,  unicamente, pela eventual autoria de um ato que, direta ou indiretamente, o haja provocado: pratica-se atos, comete-se crimes ou contravenções, enquanto os factos ocorrem, espontâneos ou provocados.

Como admitir, então, que em peças jurídicas, designadamente em acórdãos de altos tribunais e, até, de tribunais superiores, tantas vezes se leia que o arguido “cometeu os factos”, “praticou os factos pelos quais vem acusado”? (Para ver que não exagero, experimente o Leitor procurar no Google estas expressões…)

Como entender e aceitar que, durante a leitura do resumo do despacho instrutório*) relativo ao mais mediático megaprocesso da democracia portuguesa tenha o juiz hesitado visivelmente ao referir os “factos cometidos” por um dos arguidos? Como acatar uma decisão vinda de quem não reflete sobre alguns conceitos fundamentais que a ela subjazem?

Como, enfim, admirar e respeitar o legislador de um Código Penal Português que dispõe, repetidamente, sobre a "prática do facto"?

Salvo o devido respeito, como poderemos, com as devidas confiança e deferência, submeter-nos um dia ao julgamento de um magistrado, por muito graduado e considerado que seja, que reiteradamente demonstre nem algo tão elementar como a diferença entre os conceitos de facto jurídico e ato jurídico haver interiorizado, referindo-se a um e a outro como da mesmíssima coisa se tratasse? Como poderemos, em tais circunstâncias, confiar que a decisão do Areópago*) é sábia, segura e, sobretudo, rigorosa, características que lhe são legitimamente exigidas por quem à sua justiça se submete?

Isto, para não falar das trocas e das omissões de preposições, com as quais já ninguém muito parece ralar-se, como há dias encontrei num aresto em “pugna que sejam dados como não provados os factos” e outras maravilhas da produção de pessoas para quem a gramática não passa, porventura, de uma ligeira contrariedade para quem não tem, com ela, tempo a perder.

No entanto, “uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete” *).

Falar e escrever corretamente é um exigente, constante e contínuo exercício de inteligência e de lógica, executado sobre um suporte teórico que desde os primeiros anos da instrução primária nos é transmitido; é uma permanente demonstração do cuidado dispensado às coisas sobre as quais temos de nos interessar – como o modo de nos exprimirmos, ainda que ao nível mais rudimentar -, bem como da maior ou menor competência para, em tempo real, decidir quanto à mais correta utilização da palavra, no escrupuloso respeito pelas regras gramaticais.

Ora, se mesmo na fala a responsabilidade é tamanha, dado o mais dilatado tempo disponível, muito maior na escrita ela é, por maioria de razão.

Como acontece com a generalidade das peças jurídicas, a decisão judicial apenas é credível – logo, respeitável - se arrimada na análise rigorosa dos atos e dos factos, bem como, naturalmente, do direito a que eles possam ser subsumidos. Esta fundamentação precisa e objetiva é essencial e incompatível com qualquer tipo de indiferença ou de facilitismo, designadamente o lexical, assim não se afigurando possível olhar como boa uma decisão baseada em conceitos que, na mente do julgador, são, patentemente, vagos e confusos: como poderá levar a cabo uma judiciosa análise da prova – dos factos e dos atos na respetiva origem - e decidir qual o Direito aplicável, alguém que até uma distinção tão elementar como a que existe entre facto e ato demonstra ser incapaz de entender?

- x -

4. Notas Finais

Não é verdade que Tanto Faz! 

A falta de rigor na expressão, particularmente na escrita, inquina fortemente a credibilidade de quem escreve, pondo em causa, muito especialmente no caso da magistratura, o âmago de uma função que é, simultaneamente, uma missão essencial ao assegurar do cumprimento de leis pensadas e elaboradas para a manutenção da ordem e da paz social, só nestas encontrando legitimação.

Podemos, até, ser os juízes mais sérios, mais sábios e tecnicamente mais sabedores que alguma vez prolataram uma decisão: ninguém alguma vez reconhecerá nos nossos escritos uma ciência que exprimimos com as palavras erradas; ainda que, quanto à substância, possamos ter, do nosso lado, a mais ampla razão.

Não basta saber:  é preciso saber dizer.

* *

Caso bem recente e nascido, ao que tudo parece indicar, da ânsia de, através de uma suposta mas falsa originalidade, aparentar sabedoria que se não tem, é o da substituição de resistência por resiliência.

Ora, tratando-se, como se trata, de conceitos bem distintos, a utilização à toa dos correspondentes vocábulos apenas conduzirá a uma enorme confusão.

sábado, 24 de abril de 2021


Não Basta Querer: É Preciso Saber!

"Inexistindo tal identidade  [de competências], a suposta igualdade de oportunidades
sempre resultará em claro e inconstitucional abuso de ilegitimamente invocados direitos,
já que não apenas implicará um efetivo logro das legítimas expetativas do eleitorado,
como privará do não menos legítimo direito a ocupar o cargo
aqueles entre os quais possam manifestar-se tais competências e aptidões"


   1. Qualquer Um é Candidato?
   2. Desiguais Competências Geram Ilusória Igualdade
   3. Requisitos Mínimos de Instrução
   4. Da Dignidade do Alto Cargo de Presidente da República Portuguesa
   5. Comparação com Outros Órgãos de Soberania
   6. Mofa Despudorada
   7. Limitação Abusiva
   8. Propostas


1. Qualquer Um É Candidato?

Uma breve mirada a certas candidaturas à eleição para Presidente da República Portuguesa, quase nos leva a crer que a importante questão da capacidade eleitoral passiva parece, cada vez mais, unicamente ligada à maior ou menor facilidade em recolher assinaturas de proponentes do que, como cumpriria, à aptidão para o exercício do alto cargo que cada candidato se propõe desempenhar.

Tal ideia fica, substancialmente, reforçada quando, questionado quanto à sua efetiva capacidade para o eficaz cumprimento do mandato, um candidato - admitamos que com desadequada ingenuidade - responde, sem hesitar, que isso da competência não tem qualquer importância, uma vez que nas altas funções sempre se faria assessorar.  Nem se apercebe, pelos vistos, tão lustrada pessoa de que, se o assessor é que é competente, deverá ser este, e não aquela, o candidato, nenhuma falta assim fazendo no alto magistério, à República, o autor de tão brilhante conclusão.

Talvez seja verdade que, como há algum tempo ouvi no cinema, “às vezes são as pessoas de quem nada se espera, que fazem as coisas que ninguém consegue imaginar”; mas não, certamente, pessoas tão impreparadas como quem tão corajosa e brilhante posição se não coíbe de sustentar.

A dignidade do cargo de Presidente da República exige que seja ocupado por alguém cuja superioridade de espírito seja inquestionável e cuja postura assegure a manutenção e, até, a elevação da dignidade do posto: não pode ser aviltada por candidaturas de qualquer comediante involuntário ou acidental, amador ou profissional, mas sem habilitações literárias mínimas ou, porventura, até com patente insuficiência intelectual;  tampouco por candidaturas de indivíduos sem qualquer convicção política além da permanente exaltação da própria imagem, seja por mera prosápia, seja com inconfessáveis fins de valorização económica da mesma; e isto é transversal a qualquer profissão, e desde cidadãos que mal aprenderam a ler até letrados e intelectualoides sem estrutura moral ou política, passando pela aspiração à Presidência por parte de espalhafatosos e deseinteressantes apresentadores de programas pimba na televisão*)histriónicos e principescamente pagos, que não hesitam em, como se de rascunhos se tratasse, desonrar, rasgar contratos que valem milhões. Isto, para não falar daqueles que, um pouco por todo o Mundo, sem qualquer mérito ou aptidão, acabam por ser eleitos apenas pelo alarido partidário, pelo marketing, pela falta de alternativa credível ou para operar em função de quem lá em casa lhes dá as instruções.

Tais candidaturas de pessoas manifestamente mal preparadas, seja do ponto de vista intelectual, seja do cultural ou do educacional, insultam o trabalho e o esforço de quantos – por vezes oriundos de meios bem desfavorecidos – durante toda uma vida se prepararam para uma ação política sustentável e consistente e se vêm, agora, igualados ou, mesmo, ultrapassados por desenfreados arrivistas, ansiosos pela exaltação do ego de um à custa da paciência e do património de todos.


2. Desiguais Competências Geram Ilusória Igualdade

A igualdade de oportunidades é um ativo inestimável da democracia quando aplicada a cidadãos identicamente competentes para o desempenho de uma mesma função e, sob todos os aspetos, identicamente aptos ao mesmo.  Todavia, inexistindo tal identidade, a suposta igualdade de oportunidades sempre resultará em claro e inconstitucional abuso de ilegitimamente invocados direitos, já que não apenas implicará um efetivo logro das legítimas expetativas do eleitorado, como privará do não menos legítimo direito a ocupar o cargo aqueles entre os quais possam manifestar-se tais competências e aptidões.

Quem ainda não tem trinta e cinco anos, espera uns anitos e há de vir a tê-los; quem não tem habilitações, estuda uns anitos e há de vir a tê-las - a menos que lhe falte, mesmo, aquilo que a qualquer um é necessário para as obter e cuja falta impossibilita, objetiva e inevitavelmente, num Estado de Direito a ascensão a tão alto e exigente cargo.

Assim, a peregrina ideia de pugnar pela eliminação do limite mínimo de idade de trinta e cinco anos para que um cidadão português possa candidatar-se à Presidência da República*) – passando a poder fazê-lo ao completar os dezoito anitos que o tiram do colo dos papás ou dos avós - só pode vir da cabeça de quem não faz a mais pequena ideia do que diz, numa clara demonstração de inadequabilidade do próprio para o desempenho do cargo;  ou por parte de quem, temendo que algum outro critério que lhe seja desfavorável ou impeditivo venha a ser introduzido na Lei Fundamental, se antecipe propondo a eliminação do único filtro de índole pessoal que, atualmente, nela diferencia o candidato a Presidente da República dos candidatos a outros cargos públicos.

O mesmo acontece, necessariamente, no que diz respeito à ideia de pretender que jovens integrem o Conselho de Estado*)  os jovens existem, não para dar conselhos, mas para os tomar, para a sua vida futura, de quem já há mais tempo por ela passa. Jovens no órgão consultivo do Presidente da República poderiam, é certo, trazer à política contributos criativos e ideias inovadoras, mas podem muito bem fazer isso mesmo nas juventudes partidárias*), que para isso mesmo existem: para divulgar as primícias dos que, quiçá, um dia nos hão de governar.

O Presidente necessita de conselhos, e não de ideias. Alguém que não saiba a diferença entre uns e outras, precisará, talvez, de a própria educação empenhadamente aprimorar.


3. Requisitos Mínimos de Instrução

Quem tantas e tão interessantes alterações propõe, mais não faz, como deve ser evidente, do que contribuir para a completa desvalorização do ideal de serviço público. Ninguém deve servir seja onde for porque, supostamente, de tal tem o direito ou a vontade - ou acha que sim e por que não? -, mas por entender que está entre os mais aptos a prestar esse serviço, a desempenhar essa função. Se um ou outro infeliz o não entende, a Constituição que lho diga, já que os eleitores devem ter, do Estado, uma razoável mas expressiva garantia de competência por parte de quem se candidata ao alto lugar, como, aliás, a qualquer lugar de qualquer organização, e ao de Presidente da República por maioria de razão.

Em democracia, “o povo é quem mais ordena*), sim; mas ordena no voto, e importa, sobremaneira que, sobretudo na eleição presidencial, esse voto incida, inevitavelmente, em pessoa que detenha as necessárias qualificações e aptidões - tanto quanto, objetivamente, seja possível apurar.

Ao fixar a idade mínima em trinta e cinco anos, a própria Constituição está a criar o precedente da exigência de qualificações diferenciadas, ao estabelecer que, antes de mais sob o ponto de vista da maturidade desejavelmente associável à idade, nem todos os indivíduos são igualmente competentes para a função. Ora, parece recomendar o mais elementar bom senso que, além do limite de idade,  se fixe balizas complementares suficientemente objetivas, como, por exemplo requerer, no mínimo o ensino secundário completo ou, até, o primeiro grau do ensino superior para que alguém possa candidatar-se à eleição.

O facto de alguém não ter podido estudar por deficiência económica – e de, mais tarde, mesmo tendo tido essa possibilidade, ter, porventura, decidido não a aproveitar – de modo nenhum afasta a conclusão pela incapacidade objetiva para o desempenho do cargo; e, não a afastando, torna fortemente abusiva a invocação do princípio da igualdade, seja com que fundamento for.

Ninguém merece ser Presidente da República só porque lhe dá na gana:  ou se está habilitado a exercer o cargo, ou não.

Pela minha parte, também gostaria de poder tratar doentes, mas, para tal não me tendo formado ou preparado, ninguém me deixaria - e muito bem! - pôr-lhes a mão.


4. Da Dignidade do Alto Cargo de Presidente da República Portuguesa

Questão não menos essencial é a da idoneidade, designadamente por parte de prospetivos candidatos apontados, por um magistrado como tendo vendido a própria personalidade ou mercadejado com um alto cargo anteriormente desempenhado - independentemente do rigor técnico-jurídico da decisão.

Sem prejuízo do princípio sagrado da presunção de inocência, há que dizer que, atenta a especificidade do cargo de Presidente da República, o eventual benefício em mandatar – ou deixar candidatar-se - pessoa eventualmente competente, mas sobre a qual impendam fundadas suspeitas de prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, seria largamente subjugado pelo provável dano irreparável que, ainda que por uma mera questão de imagem, a ascensão ao mais alto cargo da República não deixaria de causar a esta, assim comprometendo a proporcionalidade e o equilíbrio de forma evidente até ao mais desinformado dos cidadãos.

Que partidos políticos aparentemente mais atrativos para indivíduos com tal perfil ou intenções se ralem pouco com os danos que a atuação criminosa deles possa causar-lhes, não será de estranhar, mormente quando tais pessoas representem um capital de votos considerável; mas, no caso da República, há que introduzir na Constituição norma que limite a capacidade eleitoral passiva de anunciados ou esperados candidatos entretanto arguidos por suspeitas da prática de crime grave ou de crime cometido no exercício de funções públicas.

Considerar, sequer, a possibilidade de eleição de gente nestas condições, mais não será do que achincalhar o Estado que todos somos, apenas por se não haver travado a tempo uma catástrofe que, há muito, poderá estar a anunciar-se com crescente, porquanto encapotado, vigor.


5. Comparação com Outros Órgãos de Soberania

Pode, sem dúvida, argumentar-se que também para que alguém possa candidatar-se ou ser nomeado para outros cargos políticos deveriam ser exigidas idênticas qualificações.

Em boa verdade, não faz, de facto, grande sentido que no Parlamento – o local onde, por excelência, se fala, se parla – tantos deputados haja que, ou não falam, ou não sabem fazê-lo sem ler as palavras de quem lhes escreve aqueles paupérrimos, intermináveis e sensaborões aranzéis (havendo, até, muito quem nem numa comissão de inquérito seja incapaz de falar sem ler).  Não fará, também, sentido que para lá sejam eleitas pessoas que não conseguem assegurar à fala a indispensável entoação e fluidez, acabando por barbaramente torturar os seus pares e quantos pela televisão seguem os trabalhos, com balbucios quantas vezes impossíveis de descodificar.

Não obstante - e discursos à parte - no que se refere à responsabilidade, o deputado eleito não passa de um elemento de um coletivo que decide por maioria, assim ficando bastante diluídos e controlados os eventuais efeitos nefastos da eventual incompetência ou irresponsabilidade individual. O mesmo podendo dizer-se de um Primeiro Ministro, cuja atividade é influenciável e, de alguma forma, sindicável pelo Conselho de Ministros, para já não falar do exercício de algum controlo por outros órgãos de soberania.

Também no desempenho de funções autárquicas a questão da capacidade individual não é tão premente - exceto, porventura, no que se refere às maiores câmaras municipais -, uma vez que a quantidade de governados é bem menor, a autonomia mais restrita e supostamente mais controlada, além do que, no caso das mais pequenas juntas de freguesia, quase basta eleger quem consiga governar as coisas do clube lá da terra ou, até, a economia do lar.  Isto, mesmo não havendo muitos capazes de o fazer bem ou que, sendo-o, estejam interessados em fazê-lo ou estejam nas boas graças deste partido ou daquele – já que, ao que parece, as candidaturas espontâneas são cada vez mais malquistas neste nosso torrão natal. Isto, apesar de não deixar de ser preocupante que, em entrevista recente a um programa humorístico, um dos principais candidatos ter afirmado que "quero muito ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa", o que permitirá, facilmente, questionarmo-nos quanto à ténue fronteira entre o espírito de missão e o querer, a ambição individual.

Caso bem diferente, e apesar da natureza semipresidencialista do regime, é o do Presidente da República, o único português que, simultaneamente, “garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”.

Não nos esqueçamos de que a intensidade do risco tende a variar no sentido inverso da quantidade de decisores - apenas um, no caso que aqui nos ocupa - donde a enormidade do risco de um mandato conferido a um cidadão notoriamente inadequado, risco tremendo que a Constituição deveria, sensatamente, anular, para, evitar que mais tarde e como recentemente aconteceu lá mais a Oeste e na outra margem do Atlântico, ninguém tenha a mais pálida ideia de como a situação resolver.


6. Mofa Despudorada

Ficaria este texto incompleto sem uma breve referência àquelas pessoas que, sabendo de antemão que o respetivo processo de candidatura não preenche, nem de perto, nem de longe, os requisitos formais mínimos para que possa ser aprovado*), mesmo assim o entregam no Tribunal Constitucional, gravemente e em simultâneo insultando o alto cargo, o douto Tribunal e, de um modo geral, toda a população.

Se um qualquer palerma que recolha menos de uma dúzia assinaturas – das quais, ainda por cima, apenas metade delas válidas – puder, impunemente, propor-se desempenhar as funções de Presidente da República Portuguesa, teremos o cargo banalizado e a secretaria do Tribunal atulhada com a rápida e incontrolável proliferação de candidaturas sem qualquer sustentação política ou base social.  Isto, para não falar do belo maço de folhas agrafadas que, para cada um lá poder ter a carantonha impressa, acabaria por ter cada boletim eleitoral*).

Pegando a moda, podem estas candidaturas chegar, até, aos largos milhares, só porque alguém acha giro mostrar aos amigos ou aos netos que também é ou foi candidato; ou considera in ter o retrato impresso num boletim eleitoral; ou porque algum canal de televisão ávido de maior receita publicitária decidiu explorar, através da produção de mais um concurso popularucho, o filão de desafiar os telespetadores a ver quem consegue reunir mais assinaturas para se candidatar.

Não será tempo de travar a falta de vergonha de um ou outro despudorado narcisista entretido a gozar com a cara de cada um dos restantes portugueses?

Não confundamos a eleição presidencial com o campeonato da Primeira Liga, com a Taça de Portugal ou com um daqueles concursos em que os concorrentes, mais a família toda e mais a gente da terra vão mostrar-se na televisão.

Impõe-se haver mecanismos constitucionais e legais que cortem cerces as investidas de quem mais não pretende do que brincar com estas muito sérias coisas da eleição.


7. Limitação Abusiva

Se o eleitorado decidiu reconduzi-lo no cargo, em tais circunstâncias qualquer limitação de poderes, além de potencialmente contraproducente, nenhum sentido me parece fazer, pelo que entendo que o tema merecerá, pelo menos, aprofundada reflexão.


8. Propostas

Constitui obrigação do legislador e de todos os cidadãos preservar, dentro do que é objetivamente possível, a dignidade do mais alto magistrado de uma nação.

Assim, pelo que antecede e pelo que possa valer, aqui deixo as seguintes propostas de alteração à legislação:

 

Código Penal (artigo novo)

1.    Todo aquele que apresentar, às instâncias competentes, processo de candidatura ao cargo de Presidente da República contendo uma quantidade de assinaturas inferior em, pelo menos, vinte e cinco por cento ao mínimo exigido por lei é punido com pena de prisão de um a oito anos.

2.    Na mesma pena incorrerá quem se candidatar ao mesmo cargo com recurso a assinaturas inválidas ou não autenticáveis em quantidade superior a vinte e cinco por cento do total constante do processo no momento da apresentação.

3.    À pena de prisão acresce a de multa igual a um por cento do salário mínimo nacional por cada assinatura em falta ou irregular fora do limite mínimo estabelecido nos números anteriores, não podendo a pena de multa ser suspensa na sua execução.

 

Constituição da República Portuguesa

Artigo 122º - São elegíveis os cidadãos eleitores, portugueses de origem, maiores de 35 anos e detentores de habilitação académica mínima igual ou equivalente ao primeiro grau do ensino superior e que, na data da apresentação da candidatura, se não encontrem na situação de arguido por suspeitas da prática de crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos ou de crimes cometidos no exercício de funções públicas.

Artigo 172º, n.º 4 (novo) - O disposto no número 1. não se aplica ao Presidente da República reeleito, a partir do dia seguinte ao da publicação dos resultados eleitorais.

 

A exigência de habilitações no proposto artigo 122º, destina-se, além do que já foi dito, a evitar que acabem certos candidatos por ter de, um dia, ao amigo dom Beltrão e ao aio Afonso Mendes*), abrir o coração em desolada admissão, por haverem causado dano irreparável à generalidade da população.

Entram-se todos e se acaba a farsa.

sábado, 17 de abril de 2021


As Portuguesas e os Portugueses

"A gramática destina-se a fazer com que cada um entenda o que o outro está a querer dizer-lhe;
e o que diz a linguagem pseudo-inclusiva - mas, na verdade, divisionista - é que
existem dois tipos bem distintos de seres humanos, e não um único e indiviso,
ao qual uma regra manda referir, no plural, como  portugueses,
como a consulta da mais elementar gramática rapidamente esclarecerá"


   1. Perdeu-se a Noção do Ridículo
   2. Partidos Mendicantes Apoiam a Violação das Normas Constitucionais por Desnorteados Radicais
   3. A Gramática como Instrumento de Manipulação Política


1. Perdeu-se a Noção do Ridículo

...ou, para observar a regra da cortesia, “os portugueses e as portuguesas”, se for uma senhora a falar.

Quem se dedica à causa das animaizinhas e dos animaizinhos, não deverá, também, esquecer-se de dizer “as gatas e os gatos”, “as cadelas e os cães” e por aí fora, não vão as fêmeas dessas espécies achar que nos esquecemos delas; ou as donas e os donos das ditas fêmeas assim pensar;  e quando temos um aquário cheio de peixas e de peixes… o corretor ortográfico queixa-se com um impiedoso sublinhado encarnado.

Como, decididamente, nada disto vem de uma generalizada ignorância da gramática – designadamente por parte da Exmª Linguista que coordena um dos partidos que mais insistem nesta coisa -, todas estas alusões específicas aos elementos femininos não passam, desde a primeira que escrevi, de uma redundância patetoide e deliberada, apenas explicável como tentativa de manipulação comunicacional dos ânimos com o fim exclusivo e popularucho de angariar, quando muito, mais um punhado de votos junto de ingénuas apaixonadas e de ingénuos apaixonados por causas que não chegam a sê-lo, ou de almas hipersensíveis ao politicamente correto a ponto de se embevecerem com coisas destas.

A linguagem neutra em português não é arrimada na gramática, que sustenta, como bem se sabe, que o plural de um conjunto – ainda que parcialmente enumerado – se forma no masculino sempre que, pelo menos, um elemento deste género o integre.  Isto não é discriminação, não é sexismo, não é política: é gramática pura e dura*); e não é a política, mas a gramática, que deve determinar a nossa forma de escrever e de falar.

Não deixa, outrossim, de ser disparatado que esta forma rebuscada e bacoca de gastar mais tinta com descabidas redundâncias provenha, se a memória me não trai, da metade esquerda da bancada parlamentar, na qual tem assento, entre outros, o partido que teve, como destacado militante, o iluminado ser que promoveu e fez aprovar a patetice ortográfica vigente*), cuja única virtualidade parece ser, paradoxalmente, a de economizar uns quantos caracteres de tinta – boa parte dos quais indispensável à boa leitura e à compreensão do que se lê - que, aqui e ali, por artificiosa síncope, se foi tratando de amputar, diligência essa que a manipulada e estafada verborreia feminista de agora, obrigando-nos a gastar mais tinta, vem contrariar.

Como sou exagerado, dei comigo a pensar por que razão não teria o Hino Nacional*)sido, ainda, alterado em consonância com a nova moda: “Heroínas e heróis do mar” e por aí fora, assim irremediavelmente arruinando a métrica - e obrigando, mesmo, a escolher outra música, já que o Autor*) da atual não está entre nós para a poder alterar.  Heroínas e heróis”, “as tuas egrégias avós e os teus egrégios avôs”, quando fosse cantado por elementos masculinos; o inverso quando fosse cantado por elementos femininos e, num coro… a confusão generalizada. 

Lá acabei por concluir que a ideia era parva, quanto mais não fosse porque as egrégias avós não andavam embarcadas em cascas de noz*), privilégio esse então reservado às também egrégias – e heróicas - caras metades.

Convenhamos que, além de gramaticalmente incorreto, “portuguesas e portugueses” se apresenta excessivo na leitura.  No entanto, na linguagem falada de umas quantas políticas e de uns quantos políticos que não se importem de alardear chã ignorância a troco de um poucochinho de popularidade acrescida junto de setores mais permeáveis ao discurso demagógico…  por que não?  Até se faz, por aí, figuras bem piores, como aquela pirosice do Cartão de Cidadania*).  Ou deveria ser Cartona de Cidadã e Cartão de Cidadão?  Ou talvez a solução esteja na gíria das redes sociais*):  Cart@o de Cidad@o?  Sim, o @ não admite – ainda – o til.  É pena…

Já agora: como se lê est@ cois@?

Vendo bem, “Portuguesas e portugueses” poderá não ser, gramaticalmente, um pecado capital.  Mas onde, em qualquer ortografia do Mundo – mesmo naquela idiotice do acordo ortográfico – encontramos portugues@s, a não ser na linguagem abstrusa daquela cena das redes sociais?  Que tal, então, a ideia também abstrusa de substituir Direitos do Homem por Direitos Humanos?  O que muda, neste caso, se a raiz homo da nova palavra é a mesma da anterior?  Talvez Direitos Mulieranos e Humanos, então?

Se anthropos, em grego, significa homem, que nome irão dar, a partir de agora, à antropologia?

Mas anda tudo doido, afinal?

A propósito: já alguém ouviu um desses defensores desta desgraçada coisa dirigir-se-nos de viva vós dizendo "Cares Portugueses"? Ou espera-se que o ridículo seja só para nós?


2. Partidos Mendicantes Apoiam a Violação das Normas Constitucionais por Desnorteados Radicais

À míngua de resultados eleitorais dignos desse nome por parte da amálgama de movimentos radicais de esquerda, talvez toda esta antigramatical trapalhada acabe por captar mais uma meia dúzia de votos junto de quem mobiliza boa parte dos neurónios que lhe restam a magicar o que irá tirar da despensa para, ao magro salário, poder surripiar aqueles preciosos dez por cento indispensavelmente destinados à rotina quinzenal de nail art*)- em inglês, para sermos chic como gostam.

O problema com as radicais e com os radicais é serem obrigadas e obrigados a defender até ao fim determinada construção intelectual erigida em torno de um certo ideal ao qual sacrificaram toda a sua energia e, por vezes, toda a vida.  Não podem ceder um milímetro que seja, pois, fazer perigar essa construção, questionar esse ideal, seria, para elas e para eles, o mesmo que questionar a utilidade da sua própria existência; e há quem pense que não há maiores radicais do que as idealistas e os idealistas, principalmente as e os que defendem as minorias contra as maiorias.

Ocorre, porém, que as mulheres não são uma minoria*).  Bem pelo contrário:  são, em Portugal, uma – embora ligeira – maioria; e acontece, também, que os indivíduos de um sexo dizerem mal dos do outro é prática habitual desde tempos imemoriais, por mera picardia e sem que algum prejuízo sério seja conhecido como decorrente dessa prática.  Ademais, sendo este maldizer próprio, quer das mulheres, quer dos homens, ao não se intrometer está o Estado Português simplesmente a dar cumprimento à alínea h) do artigo 9º da Constituição*), que o obriga a “promover a igualdade entre homens e mulheres”.

Entre parênteses, direi que, como tantas outras, esta disposição constitucional corre sério risco de ser considerada, em si mesma, discriminatória, uma vez que refere primeiro os homens e só depois as mulheres.  Haverá, assim, que rever e substituir este discriminatório preceito machista por “promover a igualdade entre @s portugues@s de ambos os sexos” - fazemos figura de parvos em tantas coisas que, mais uma, menos uma, a ninguém fará grande impressão.

Fechando os parênteses, e com o devido respeito, aquilo que diz a Constituição japonesa interessa-me tão pouco como o que diz a Constituição portuguesa poderá interessar ao japonês médio.  Mas já me interessa, e muito, que algumas portuguesas e alguns portugueses achem muito bem que, semanas atrás, o Presidente do Comité Olímpico Japonês tenha sido forçado a demitir-se*), nada mais, nada menos, do que por ter dito mal das mulheres – por, na sua opinião, tenderem a retardar o andamento dos trabalhos ao falar bastante mais do que os colegas homens, nas reuniões.

Por alguma razão que desconheço, é verdade que a Constituição da República Portuguesa não reconhece, expressamente, a liberdade de expressão individual, a qual parece ser prerrogativa exclusiva da comunicação. Não obstante, o seu artigo 16º é bem claro ao dispor que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, e que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem*).

Por força do mesmo artigo 16º é, assim, aplicável o que diz o artigo 19º da Declaração Universal: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

O n.º 2 do artigo 13º da Constituição portuguesa impõe que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão (…) do sexo (…)”.  Conjugado com quanto antecede, quer isto dizer que nem as mulheres podem ser impedidas de dizer mal dos homens, nem os homens podem ser impedidos de dizer mal das mulheres.

Pretender que não se pode opinar livremente acerca das mulheres é desmerecer a nobre motivação e a corajosa atuação dos movimentos feministas*), nascidos para promover a igualdade de direitos entre os sexos e para pôr cobro aos maus-tratos de que eram vítimas as mulheres; não, decididamente, para fomentar a coscuvilhice e o diz que disse, e muito menos para coartar o direito de expressão dos masculinos.

O Mundo foi criado por um homem ou por uma mulher?  Criador masculino ou Criadora feminina?  Embora, com esta parvoíce linguística supostamente feminista, passem o tempo a discutir o sexo dos anjos, uma tal sandice parece que ainda ninguém se lembrou de suscitar…


3. A Gramática como Instrumento de Manipulação Política

A gramática destina-se a fazer com que cada um entenda o que o outro está a querer dizer-lhe; e o que diz a linguagem pseudo-inclusiva - mas, na verdade, divisionista*)- é que existem dois tipos bem distintos de seres humanos, e não um único e indiviso, ao qual uma regra manda referir, no plural, como  portugueses, como a consulta da mais elementar gramática rapidamente esclarecerá.

Os excessos só levam a afastar cada vez mais as pessoas umas das outras: a que olhem umas para as outras como um incómodo, ou como alguém de menor capacidade que se tem de, como se de crianças se tratasse, olhar com carinho e proteger. A vitimização desrazoável e descabida equivale a um autêntico atestado de menoridade passado, paradoxalmente, por quem pugna por se libertar – ou, mais propriamente, por se evidenciar – com a preciosa ajuda das revistas que, para fomentar a igualdade e o equilíbrio, publicam artigos sob o título “As 100 Mulheres Mais Poderosas do País*).

Mas não tem, mesmo, esta gente coisas mais interessantes com que se entreter, coisas verdadeiramente importantes a tratar?  Têm, mesmo, de perder tempo a assassinar a sangue-frio a língua que falamos, numa terra onde tanto se fala e, havendo tanto para fazer, tão pouco se faz?

Só não discriminando garantimos que os outros se não sintam discriminados: não, mediante a utilização de uma assim chamada linguagem inclusiva,  cujo primeiro e imediato efeito é, paradoxal e inevitavelmente, nada mais, nada menos do que lembrar constantemente ao discriminado que, efetivamente o é, que contra ele existe discriminação.  Não passa, assim, de tremendo e oportunista disparate, esta linguagem inclusiva, esta politiquice primária, parola e... contraproducente.

Agora, muito à séria (que horror!) e muito a sério…

Escreveu um filósofo suíço do século XVIII que “no que têm de comum, ambos os sexos são iguais; no que têm de diferente, não são comparáveis*).

Ora, além de ser manifesto erro tratar como igual o que é tão diferente como as Portuguesas e os Portugueses, perante tão flagrante ausência de argumentação válida querer mudar, através da forma de nos exprimirmos - a assim chamada linguagem inclusiva -, o que vai nas cabeças das eleitoras e dos eleitores afigura-se caminho bem pobre, muito redutor, de duvidosa eficácia, quase subversivo, até;  sobretudo na cabeça das eleitoras prospetivas e dos eleitores prospetivos, assim se deseducando a juventude na direção pretendida por umas quantas e por uns quantos… poucas e poucos, esperemos.

Nada disto passa, evidentemente, de uma forma sinuosa mas despudorada de manipulação dos espíritos, mediante a inversão da tendência natural e saudável para ser a língua a acompanhar, a par e passo, a evolução da cultura e das mentes, como quase sempre aconteceu e penso que, no respeito pelos princípios e pelas regras gramaticais, deveria continuar a acontecer.

Ou será que, perante a generalizada resistência à mudança, não passará toda esta fantochada do canto do cisne, do grito de desespero de quem cada vez encontra menos eco para a sua deriva para os temas fraturantes, num derradeiro e patético atirar de poeira aos olhos das menos esclarecidas e dos menos esclarecidos, das menos sensatas e dos menos sensatos, impondo-lhes expressões inventadas à revelia da gramática e que, com a realidade, pouca ou nenhuma correspondência acabam por ter?

Mudar o Mundo é difícil, mas mais difícil ainda sempre será tirar a derradeira tábua de salvação da mão de um político prestes a afundar-se.  Ou de uma política.

Convém, não entanto, que as políticas desesperadas e os políticos desesperados não esqueçam aquilo que, apesar de tudo, boa parte dos seres humanos ainda sabe: que uma mulher que se comporta como um homem tem, para um homem, tanto interesse quanto para uma mulher tem interesse… um homem que se comporta como uma mulher.

Portuguesas e portuguesas significa que existem mulheres e homens; e que não são iguais.

sábado, 10 de abril de 2021


Sexo É do Género Masculino

"Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu,
não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto,
preferindo-lhe o tão ambíguo termo 
género na expressão que diz que os direitos
e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais"


   1. Pressupostos
   2. Primeira Apropriação Lexical
   3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação
   4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)
   5. Resumindo…


1. Pressupostos

Não valeria a pena investigar se a investigação científica não conduzisse à descoberta de novas realidades e de conhecimento retificado ou acrescentado quanto àquelas que julgamos conhecer; tampouco se, convidando o registo dessa evolução à introdução, na linguagem falada e escrita, de novos conceitos, escolhêssemos não os adotar.

Nesta adoção de neologismos ou adição de significados a termos existentes sempre se haverá, porém, de assegurar que o léxico próprio de uma área do conhecimento não irá, por erro, incúria, indiferença ou outro vício do processo, afetar o rigor vocabular de outra área - ou de todas as outras.

Quando falamos ou escrevemos, importa sermos precisos e inequívocos na aplicação dos conceitos; importa saber não só o que queremos dizer, mas o que estamos, efetivamente, a dizer.  Há, pois, que usar da maior precaução, sempre que, em lugar de investir na formação de novas palavras, uma área do conhecimento optar pela apropriação de termos já utilizados por outras ou, mesmo, pela linguagem do quotidiano, muito especialmente se se tratar de palavras já de si inquinadas de vasta ambiguidade, seja ela inerente ao caráter genérico do conceito único que exprimem, seja à multiplicidade de significados que lhes possa ser atribuída.

Em tais condições, agravar a polissemia, acrescentando significados ou utilizações possíveis a termos deles sobrecarregados, mais longe não levará do que ao incremento da dúvida nociva e a uma crescente degradação da clareza, a ponto de nos arriscarmos a cair na situação ridícula de, ao tentar, fechada sobre si, enriquecer próprio o léxico, determinada área do conhecimento acabar por adotar vocábulos de significado já tão difuso que, além de nada de bom acabarem por acrescentar à clareza do discurso científico, inexoravelmente acabarão, antes, por fortemente a prejudicar.

Assim parece ter acontecido, no caso que aqui me traz, com a Política e com as Ciências Sociais.

 

2. Primeira Apropriação Lexical

Quando, num formulário, existe um campo “Sexo:”, ninguém espera que o preenchamos designando o órgão reprodutor com que nascemos, ou com que, mais tarde, tivermos escolhido ficar:  o que se espera é que, mediante feminino ou masculino, indiquemos qual o conjunto a que pertencemos atendendo às diversas variáveis primárias e secundárias que, sexualmente, nos caracterizam.

Mas, sexo, é uma coisa; outra, o comportamento sexual *). Quanto a este, não há extremos ou opostos, nada é preto ou branco, ou expresso em zeros e uns:  há que considerar infinitos tons de cinzento e números decimais nos quais cada um de nós se situa, pois, tal como não há gente cem por cento boa ou cem por cento má, também não há absolutos na caracterização da identidade sexual de cada um e, muito especialmente, do seu comportamento.

Assim, conscientes de que, ao nível do comportamento e a despeito do que é fisicamente aparente, as coisas são tudo menos simples, parecem as Ciências Sociais ter, num dado momento, sentido a necessidade de introduzir, no seu léxico específico e em benefício exclusivo do mesmo, um novo conceito destinado a caracterizar, já não os dois possíveis conjuntos de caraterísticas sexuais biológicas propriamente ditas, mas algo que poderemos, em síntese, definir como o que, inerente à sexualidade, se passa no plano dos sentimentos e das emoções do ser humano;  e também, a necessidade de incluir cada indivíduo numa classificação quanto à forma como, em virtude dessas emoções e desses sentimentos, se irá comportar.

De forma porventura ligeira e pouco refletida, ter-se-á, então, decidido acrescentar aos significados do termo género estas combinações de sentimentos, emoções e comportamentos de raiz sexual que visam, a jusante, o desenho de modelos sociais e culturais baseados nos múltiplos decimais e tons de cinzento que poderão assumir, designadamente na intensidade e na forma como cada pessoa se identifica com um ou outro padrão comummente associado a indivíduos de um ou do outro sexo biológico, intensidade e forma essas que, como um todo, por identidade de género *) as Ciências Sociais terão decidido designar.

Tal escolha aconteceu, porém, em claro detrimento do rigor dos léxicos da Biologia*) e da Linguística*), que, como veremos, não se terão as Ciências Sociais coibido de prejudicar.


3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação

O prejuízo para o léxico da Biologia aconteceu porque há muito que o animal humano está, como qualquer outro ser vivo, sujeito à classificação biológica*), a qual pode, de forma simplificada, ser hierarquicamente enunciada como domínio, reino, filo, classe, ordem, família, género e espécie – que são, no caso dos humanos, respetivamente Eukariota, Animalia, Chordata, Mammalia, PrimateHominidae, Homo e Homo sapiens.

Só depois, na base da pirâmide, podem os indivíduos da maior parte das espécies ser, complementarmente, classificados de acordo com o sexo biológico que apresentam, feminino ou masculino.

Daqui se extrai, quanto ao ser humano, evidentes conclusões:

1.    de que a sua classificação biológica quanto ao género é única (Homo), e não dupla (feminino e masculino);

2.   de que a divisão em feminino ou masculino se refere, exclusivamente, ao sexo biológico, e é meramente complementar.

Existe, porém, outra área do conhecimento diretamente lesada pela apropriação feita pelas Ciências Sociais: a Linguística, para a qual Género *) é, inquestionavelmente, uma das variáveis utilizadas para classificar, não só os nomes, como as palavras declináveis que a eles se associam, classificação essa efetuada segundo critérios que, embora numa quantidade significativa de casos se encontrem intimamente ligados às aspetos sexuais biológicos dos seres que alguns substantivos designam, são, na sua maior parte, espontâneas, nascem dos usos, e não de qualquer caracterização biológica de propriedades das quais, amiúde, nenhuma, apresentam.

A palavra árvore, entre tantos outros exemplos, é do género feminino, apesar de haver árvores do sexo feminino, masculino e hermafroditas.  Tampouco se conhece sexo a armário, mesa ou cadeira; e, crianças, há-as dos dois.

4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)

Embora, na linguagem do quotidiano, a confusão deste novo género social com o género biológico Homo seja muito improvável dada a raridade da referência a este, o mesmo se não pode sustentar quanto à confusão com o género das palavras, e isto desde os mais elementares níveis da escolaridade.

Muito mais séria, porém, resulta, inevitavelmente, a confusão crescente entre, por um lado, os géneros biológico e gramatical e, por outro, o género da igualdade de género *), que por sua vez, a Política tem vindo, ao que parece, a colar ao de identidade de género das Ciências Sociais.

Aqui, os objetos da defendida igualdade são as mulheres e os homens – e, naturalmente, os indivíduos de sexualidade mista, por assim dizer -, e a igualdade que se almeja é, ao que dizem, absoluta, embora se trate de uma pretensão cuja simples formulação bastará para que a consideremos um objetivo de validade e, sobretudo, exequibilidade duvidosas. Entre outras razões, que aqui não cabe desenvolver, desde logo porque, sendo os indivíduos dos sexos feminino e masculino dotados de características biologicamente diferentes, pretender dispensar-lhes igual tratamento, a todos os níveis de todas as vertentes da vida, seria permanentemente violentar uns e outros; ou seja, precisamente o contrário daquilo se diz defender.  Já muito diferente e premente é, naturalmente, a questão da igualdade de direitos e de deveres entre todos os indivíduos, independentemente da sexualidade - do sexo das pessoas, e não do género das palavras -, imperativo estruturante de qual sociedade dita civilizada e há muito plasmado na Constituição da República *).

Falta, evidentemente e em muitos casos, transpor para a prática tal desígnio.  Mas isso apenas poderá ser conseguido mediante a evolução das mentalidades, para cuja educação não parece necessária ou, minimamente, eficaz a prévia degeneração do significado de género em prol de algo – o sexo – que tem, desde tempos imemoriais, uma precisa e inequívoca correspondência vocabular.

Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu, não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto, preferindo-lhe o tão ambíguo termo género na expressão que diz que os direitos - e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais.

Apenas conheço o género humano. Género feminino e género masculino não passam, para mim, de impropriedades vocabulares.

5. Resumindo…

Ø  Sexo é uma variável de classificação biológica dos seres vivos.

Ø  Género, aplicado a seres vivos, é uma unidade taxonómica que, no caso dos seres humanos, corresponde, unicamente, a Homo.

Ø  Para a gramática, sexo é do género masculino, e o género de um nome serve para, com este, outros termos declinar.

Ø  Em lugar de deitar achas na fogueira do facilitismo e da confusão generalizada, bem fariam as Ciências Sociais em investir algum tempo na procura, para identidade de género, de um novo conceito, de uma alternativa clara e sem efeitos colaterais.

Ø  Quanto à igualdade prosseguida pelos políticos, não necessita de neologismos:  sexo diz muito bem aquilo que querem significar.

Porque não é verdade que… “Tanto faz!.

- x - x -

A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará