A tortura é abominável seja qual for o tempo, o local, o quadro, a
pretensa explicação, a impossível justificação. Inegável e grave ofensa à
integridade e à dignidade da pessoa humana, é punível criminalmente,
independentemente da identidade e da qualidade da vítima e do agressor.
Tudo isto é pacífico, inevitável e estruturante de qualquer sistema jurídico
de qualquer sociedade que se preze de o ser. Das outras, por certas forças políticas defendidas muito além do limite do
absurdo*), nem vale a pena falar, já que não passam de aberrações, de produtos da
ganância individual, da por vezes ingénua credulidade ou de timorata
subserviência de um punhado de sequazes que mantem a população subjugada pela
ação obediente das forças militares e militarizadas.
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O que dizer, então, quando, num país supostamente civilizado e à beira-mar
plantado, que se diz evoluído e atento aos direitos humanos e aos das
minorias, que exporta talentos, que promete segurança a imigrantes e a magotes
de turistas vitais para a sobrevivência da economia, são agentes das próprias
forças militarizadas ou de segurança que, impiedosamente, sadicamente,
psicológica e fisicamente torturam quem esse país demanda em busca de
condições minimamente dignas para viver?
Às mãos de agentes da autoridade, nesse país alguns migrantes sofrem
humilhações, bofetadas, murros na cabeça, ameaças de espingarda encostada ao
rosto, sequestro, reguadas nas mãos, inalação de gás pimenta e negação do
desesperado pedido de socorro.
Uma acusação com trinta e três crimes*) praticados perante gargalhadas de outros operacionais, nenhum dos quais terá
mexido uma palha para pôr cobro a tais desmandos, três vezes repetidos ao
longo de seis meses - e, se não fossem os agressores desmascarados, sabe-se lá
durante quantos mais meses e por quantas vezes mais.
Como admitir que apenas dois militares suspeitos se encontrem suspensos,
enquanto outros aguardam a conclusão de um moroso inquérito? Quantas mais
vítimas irão estes homens fardados torturar?
Abyssus abyssum invocat *). Tudo isto não passou, na verdade, da repetição, agora talvez com maior
requinte daquilo que, meses antes, se passara no mesmo posto da Guarda
Nacional Republicana (GNR), em Odemira, e
culminou na condenação dos autores a penas de prisão*).
Duas vezes no mesmo posto? Que controlo e que autoridade disciplinar tem,
então, a GNR sobre os seus homens? Como garantir então, desta vez, que, num
futuro mais ou menos próximo, outras bestas fardadas tais atos não praticarão?
Qual, também, o nível de arbitrariedade de bestialidade, de boçalidade
daqueles que, não se contentando com o sofrimento infligido,
se deleitaram a filmar*), para perverso gozo próprio e de espetadores a eles em tudo
equiparáveis, cenas escabrosas de atropelo dos direitos humanos dos mesmos
cidadãos? Cenas que, afinal, mais não exprimem do que o que de mais lamentável
e degradante em si tem quem apenas se sente superior, realizado,
importante ao subjugar e espezinhar quem, com o coração cheio de
esperança,
já vem fugido ao jugo de outro alguém*)? Gente que morre antes de começar a viver, e que nunca sabe onde o dia
seguinte irá passar.
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Esquece-se, até, a estúpida e patega gentinha que os usa e agride de que as
gravações e a respetiva partilha, voluntária ou não, se têm revelado bastante
eficazes na investigação de crimes e posterior detenção dos criminosos.
Esquece-se disto, apesar de, dada a função que desempenha na manutenção da
ordem, melhor do que ninguém o devesse saber. Ou não se esquecerá, antes
cedendo à prosápia da ignomínia, à inconsciência da maldade, ao que de mais
baixo um ser humano em si traz, indiferente à vergonha e ao sofrimento a que a
própria família estará a condenar?
Ao caso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e da morte de Ihor
Homeniuk seguiu-se a decisão,
agora adiada*), de extinguir o SEF - não, pasme-se, sem antes o condecorar*). Ao caso de que aqui falo, da GNR de Vila Nova de Milfontes e dos imigrantes
de Odemira, o que se seguirá? A extinção da Guarda... não sem antes o Estado
Português a condecorar?
Dir-se-á que as corporações são muito maiores do que a meia dúzia de
energúmenos que avilta o seu bom nome e contamina a imagem e a confiança nos
restantes elementos.
Talvez. Mas não pode deixar de nos ocorrer ao espírito a velha ideia da ponta
do iceberg. Nem da ínfima percentagem de condutores apanhada nas malhas
dos radares, face às largas dezenas de milhar que, diariamente, excedem a
velocidade máxima permitida. Entre aqueles, quem aqui escreve e, aqui e ali,
até o prezado Leitor.
Quantos não detetados operacionais da Guarda, do SEF, seja de que força for se
deliciarão com estes prazeres perversos? Quantos acabará a justiça por
apanhar?
Até lá, quantos mais migrantes recordarão as suas terras ao viver,
em Portugal, a reedição do horror?
* *
Todos sabemos, porém, que, a par dos dramas humanos intensos relacionados com imigrantes e, sobretudo, com refugiados, nos chegam histórias bem diferentes de refugiados algo... diferentes, também.
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