"Admirar não é, nem mais, nem menos do que
prestar
atenção.
Uma forma sublimada de prestar atenção
Vitorino Nemésio*)
>(Se bem Me Lembro)
Cabe, a propósito, refletir um pouco sobre aquilo que, nos dias que correm,
mais tendemos a admirar; ou a dedicar uma sublimada forma de atenção.
A resposta é, evidentemente, impossível de dar, uma vez que não somos um único
ser, antes largos milhões de seres, a cada unidade desses milhões
correspondendo um universo muito próprio e irreplicável de focos de interesse
e atenção.
Nisto reside uma das maiores maravilhas dos seres: a individualidade.
Pensada, por quem nos terá criado, talvez para ser o veículo daquela diferença
que impulsiona a evolução da Humanidade, a individualidade perdeu, nas poucas
mas intensas décadas mais recentes, praticamente toda a substância.
Impulsionada por uma rede mediática mercenária, voraz e descontrolada, a
globalização amalgamou-nos em rebanhos de seres que, como as ovelhas, tendem a
seguir os semelhantes que lhes parecem mais sábios, mais sabedores ou, mais
propriamente, que lhes parecem mais pujantes, mais proativos, como
agora dizem, independentemente das asneiras empreendidas em nome dessa
proatividade.
Admiramos, também, os que nos parecem mais belos, apesar da distorção de que o
conceito de beleza inferna já. Acima de tudo admiramos, todavia, os mais
ricos, que nos deixam ora embasbacados, ora deslumbrados, ora simplesmente
invejosos perante o glamoroso sucesso, como gostamos de chamar
àquilo que nos aparece como fausto, fartura, tempos livres sem limite,
piscinas, iates, relógios de um milhão de euros, viagens, automóveis, aviões,
sei lá.
Como o tempo não dá para tudo, deixámos, em contrapartida, de o ter para
contemplar e admirar a verdadeira sabedoria, a verdadeira sapiência; com
estas, deixámos, de um modo geral, de admirar as outras antigas virtudes, hoje
consideradas fora de moda, cenas de velhos, chatices a
evitar.
De mentes vazias e espíritos anestesiados, paralisados, lá se vão estes
magotes de boa mas mal educada gente queixando de tudo e mais alguma coisa,
sobretudo quando vem do Estado, esquecendo-se de que, afinal, somos governados
por pessoas como nós, que admiram o mesmo que nós e das quais, por isso mesmo,
jamais será de esperar grande coisa. Como de nós.
Não sabemos quem somos, nem queremos saber. Não sabemos para que nascemos, nem
queremos saber. Não sabemos para onde vamos, nem queremos saber.
Acreditamos, piamente, que um qualquer criador inconsequente, alucinado,
tresloucado cá nos pôs com o propósito exclusivo de nos
fazer curtir, aproveitar o máximo da vida, cair que nem uns patos
nas esparrelas de anunciantes que diariamente nos espevitam a necessidade de
criar dependências, de consumir, de comprar; e muito bem, já que, da maneira
como a sociedade acabou por se organizar, se o consumo pára, ficamos todos na
miséria.
(Repararam? A inversão de valores já é tal, que até o outrora tão condenado
consumismo se transformou, assim, num ato de... altruísmo!)
Para que todas estas maravilhas possam acontecer - mesmo em tempos de
pandemias ou desta coisa aborrecida da guerra, que não há de ser nada, se Deus
quiser... -, o que importa é seguir o rebanho que, por sua vez, segue o
pastor.
Mas não aquele pastor pobre e de feições desfiguradas pelas intempéries de uma
vida desgraçada à doentia chuva e ao sol implacável. Esse, desprezamo-lo pela
sua falta de sucesso.
Os pastores de hoje são os ídolos, os craques, aqueles que se exibem na
montra mediática como se de peças de museu se tratasse. Como se tivessem
abdicado da sua condição de seres humanos, de pessoas, para já não passar de
objetos numa imensa vitrina que apenas existem para regalar os olhos
embrutecidos de quem passa.
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Haverá ambiente mais favorável do que este ao ressurgimento da extrema-direita
e de novas e implacáveis ditaduras? Claro que não!
Depois, sim. Lá vamos cair em nós. Lá vão as cabeças recomeçar a funcionar, a
olhar para trás, com olhos de ver. Lá vamos horrorizar-nos, retrospetivamente,
com a vacuidade daqueles que tínhamos escolhido admirar. Lá vamos, aflitos,
começar a pensar em como recuperar a tão querida mas desperdiçada liberdade
que, por culpa nossa, outros nos conseguiram tirar.
Mas será que o ser humano não entende, mesmo, a responsabilidade imensa
que implica viver em liberdade? Por que continuamos a confundir laxismo
e anarquia com liberdade? Riqueza com felicidade?
Será assim tão difícil parar um pouco para pensar?
(leia aqui a sequência deste
assunto)