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sexta-feira, 29 de março de 2024


Tripolarização

Tal como sucede com muitos supostos neologismos que não passam, em boa verdade, de mais ou menos graves degenerações da língua portuguesa, aqui o erro é crasso e evidente, embora ninguém pareça preocupar-se muito com o assunto.

"Polo" é cada uma das duas (únicas!) extremidades, necessariamente opostas, do eixo imaginário da Terra.

"Polo" pode também ser, extensivamente, cada uma das duas extremidades opostas de um magnete, ou, em sentido figurado, qualquer dos elementos de um conjunto de duas realidades opostas entre si.

Claro que "polo" também pode ser - vá-se lá saber porquê... - cada um dos terminais de um acumulador elétrico, um desporto, uma peça de vestuário ou um modelo de uma popular marca de automóveis: mas não no sentido em que os supostos criadores da "tripolarização" o entendem, que é o único que interessa aqui.

Do que antecede, extrai-se, antes de mais, que os polos são, sempre, dois, o que conduz a também duas conclusões:

  • primeira: o amplamente dicionarizado termo "bipolarização" contém evidente redundância, pois, sendo os polos sempre dois, bastaria falar de "polarização" para qua a dualidade ficasse perfeitamente estabelecida, assim se mostrando, no contexto, o prefixo "bi" absolutamente inoperante e, como tal, indesejável;
  • segunda: a felizmente ainda não dicionarizada "tripolarização", em sentido próprio, que aqui nos traz - ou seja, a existência de três extremos, supostamente opostos entre si - não passa de uma impossibilidade material inopinadamente introduzida pelo prefixo "tri".

Há que mencionar, no entanto, a existência do termo "tripolar", também impropriamente utilizado, por exemplo, em física ou em psicologia, referindo-se, não a uma verdadeira polaridade, mas à mera diversidade, à margem da ideia de oposição, o que tampouco é admissível.

-x-

Esta infeliz ideia da "tripolarização" política teve origem no ganho de preponderância de um pequeno partido quando da eleição legislativa portuguesa de Março de 2024, a qual lhe deu algum peso efetivo na contabilidade parlamentar. Terá, desta forma, deixado de existir, como até então acontecia, um quadro com dois partidos dominantes, para, ainda que forçando um pouco as coisas, se passar a poder falar de um trio.

Todavia, nem no anterior cenário parlamentar português a utilização do termo "polarização" - ou "bipolarização", se insistirem na redundância - faria qualquer sentido, dado que os tais dois maiores partidos se posicionavam no centro do espetro político, e não nas extremidades, como é pressuposto de uma polarização.

Ponhamos, assim, um freio à criatividade destemperada, absurda, geradora de neologismos chabouqueiros que a mais não levam do que à inapropriada "evolução" do português, e fiquemo-nos pelo "bipartidarismo", ou pelo "tripartidarismo". Ou, até, pelo "tetrapartidarismo" e por aí fora, que, dominantes ou não, sempre poderá haver tantos partidos quantos quisermos em democracia.

Polos, extremos opostos, é que não.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


Das Galinhas Colocadeiras


A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que "
colocar" não é,
de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular "pôr".

Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso,
pior fica, ainda, quando apimentado com a presunção.


Simplicidade, está a tornar-se, cada vez mais, um conceito incompatível com a noção de sucesso no funcionamento do elevador social. O que é simples não exalta, não conta, não tem valor.

Vivemos no mundo dos influencers e seus obedientes escravos seguidores, dos criadores de moda – da moda, que deveria ser o resultado de uma tendência simples e natural -, de gentes que abrem empresas na Internet em frações de segundo, apenas para se dizerem "empresários", e pouco depois as encerram por manifesta falta interesse ou de viabilidade; no mundo daqueles que querem sobressair pela forma, como única via supostamente eficaz para escamotear a endémica falta de substância, de conhecimento, de cultura.

Não espantará, assim, que alguns vejam os arrebiques da linguagem como uma forma fácil de sobressair socialmente, sem se darem conta da figura ridícula que fazem ao proferir palavras que pouco ou nada têm a ver com a suposta verdade que pretendem transmitir. Palavras que, de despropositadas, tornam o discurso rebuscado, barroco, inesperado; palavras que, em lugar de servir para comunicar, interrompem o fluxo das ideias, com evidente prejuízo para a ampla apreensão e para a plena compreensão.

Pior ainda, é que os embasbacados com a “cultura” demonstrada por quem assim tão “bem” fala adiram à nova “moda linguística", sob o olhar complacente, se não aprovador, daqueles a quem competiria zelar pela pureza do idioma, mas que, ao invés, contemplam, embevecidos o que consideram evolução da língua, e não passa, afinal, de simples mudança degenerativa. Ou seja: para pior!

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Vem este arrazoado a propósito da mais ou menos recente condenação à morte da palavra “pôr”. Lembra-se o Leitor de quando, mais recentemente, ouviu na televisão uma ou outra forma deste verbo? E na boca de quem?

Pois não. É que as pessoas já não põem: colocam!

Colocam vidas em risco, dinheiro a prazo, fogo no armazém, palavras na minha boca, uma pedra no assunto; colocam pessoas em causa, em posição delicada ou sob vigilância; colocam imóveis no mercado, colocam os piscas antes de virar o carro, a vida coloca-lhes obstáculos e desafios, os treinadores colocam jogadores no “onze”; colocam alguém ao nível de outrem, e até colocam o Windows 11 no PC.

Esquecem-se - ou jamais souberam - de que o verbo colocar está associado a uma ideia de cuidado, de precisão na colocação ou instalação física de algo.

Ora, isto é bem diferente daquilo que sucede com o verbo pôr, destinado a apenas significar, genericamente, levar a determinado lugar - material ou imaterial -, ou lá deixar ou largar algo, sem especial preocupação quanto às circunstâncias em que é levada a cabo a ação.

Serve, também, o verbo pôr para significar, em linguagem popular, vestir, incluir, acrescentar, expor, atribuir, ficar, chegar, começar e tantas outras ações.

Admitamos que será, porventura, este caráter popular associado ao verbo pôr que leva muitos falantes do português - e, sobretudo, do brasileiro que para cá as telenovelas vão trazendo - a considerar que colocar é, dele, uma forma mais elaborada. Menos simples, mais... sofisticada, pensam eles.

Ora, isto não é verdade. Nem pode ser, já que o próprio verbo pôr, enquanto forma popular, é em si mesmo uma substituição genérica, abrangente, mais cómoda, das diversas formas mais específicas, menos cómodas, mais difíceis; ou mais eruditas, se assim quiserem chamar-lhes. Aquelas de que nem sempre a gente se lembra a tempo e, por isso... coloca, que é mais fácil e dá para tudo. Para cada vez mais.

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A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que colocar não é, de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular pôr. Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso, pior fica, ainda, quando lhe é apimentado com a presunção.

Colocar corresponde a um conceito bem mais definido do que o simples pôr, o qual deve ser, preferencialmente, utilizado em linguagem coloquial, sempre que a ideia de rigor na localização estiver afastada da proposição. Em contrapartida, e com todo o cuidado e precisão, coloca-se um prato sobre a mesa, a loiça no armário, a primeira pedra no terreno de uma construção.

Formula-se ou apresenta-se uma dúvida, mas não se colocaPôr uma camisola é a forma popular de vestir uma camisola, pelo que a alternativa a este pôr não será colocar uma camisola, mas sim vesti-la

Põe-se os piscas do carro, ou liga-se, mas não se coloca os piscas, a não ser durante a montagem do automóvel. Nesse processo, sim: coloca-se os piscas em lugares físicos bem precisos e determinados da carroçaria, de acordo com o projeto.

Como vimos, e contrariando o que sustentam alguns dicionários, colocar não é sinónimo de pôr, mas sim uma especialização do termo, destinada a tornar a ideia mais específica: são palavras de significado relacionado, mas não igual.

A esta conclusão conduz, também, o facto de, para pôr, apresentarem esses e outros dicionários cerca de quatro dezenas de significados, enquanto, para colocar, mais não propõem do que, quando muito, uma escassa dúzia. A serem, de facto, sinónimos, para um e para outro a quantidade de significados seria, presumivelmente, igual ou, pelo menos, razoavelmente equivalente, como é bom de ver.

Não é, porém, o verbo pôr a única vítima desta moda das colocações.

Colocam-nos perguntas, em lugar de as formular ou fazer; colocam artigos na lista, em lugar de incluir; colocam textos em inglês, em lugar de os retroverter; colocam questões, em lugar de as formular – embora até já haja quem faça, questões, sabe-se lá por que estranho processo de fabricação.

Em lugar de apresentar, atribuir, fornecer, dar, fixar, colocam divergências, responsabilidades, garantias, situações, objetivos e tantas coisas mais. Até já há quem coloque baixas médicas - pergunto-me onde! -, em lugar de as apresentar; ou meter, na forma popularmente.

- x -

Tudo isto não passa, naturalmente, de uma reflexão, de uma visão pessoal da problemática enunciada, procurando explicá-la mediante um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, visão essa destinada a ser, por quem com ela não concorde, contestada de forma fundamentada em conhecimento científico - ou, pelo menos, mais válido do que outras meras opiniões.

Certo, certo, parece ser que o esfumar do verbo pôr e dos outros que,  a esmo, com esforço mínimo e a seu bel-prazer, cada qual substitui por colocar irá continuar imparável, paralelamente à ânsia galopante de aparentar saber-se o que se não sabe e de parecer o que se não é.

Continuará, e um dia ouviremos falar de galinhas colocadeiras, as tais que, em vez de, simplesmente, pôr os ovos, de os largar algures no ninho, os colocam num local selecionado.

Com todo o cuidado e precisão.


- x - x -

A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022


O Rio de Nós

Vemos os outros como quem olha o rio.

Contemplamos, letárgicos, o vago tremular uniforme das águas e os lampejos do Sol que elas refletem, como gentes que se movem sem se mexer e nos atiram à cara a diferença que julgam ter.

Excitamo-nos quando, fugaz, um peixe salta a espreitar o Mundo que lhe tira a vida, deleitamo-nos com os círculos efémeros que deixa no espelho tranquilo e se esbatem até ao infinito. Vibramos com novas chocantes, mas logo esquecidas, que nos dizem do podre de nós que mora nos outros, da dor da morte, da pungente desgraça, de coisas de arrepiar. De espíritos esmagados pela torrente de notícias sem novidade, pasmamos ante as lágrimas choradas por quem a desdita fere, ao longo de uma vida para si ou para os seus jamais sonhada, imaginada, sequer.

Arrepiamo-nos quando a pedra atirada ao rio nos salpica; mas não quando a atiramos nós e arrepia outros como nós, que nem vimos que por ali também andavam como nós. 

Afinal, quem os mandou lá estar?

- x -

O rio é lindo; é calmo, e pacífico. Pelo menos, é lindo, calmo e pacífico o que dele vemos .

Mas o que vemos do rio não passa de uma ridícula porção dele.

O rio não é superfície: é massa. Uma gigantesca mole de líquido que a gravidade impele, prenhe de vivos e de mortos, de peixes que nadam e daqueles que iremos almoçar, dos que não foram pescados e apodrecem na lama do leito do rio que corre para o mar, com os ramos, os escolhos e os despojos que para lá não paramos de atirar.

O rio é lindo, mas brutal. É corrente que, à passagem, tudo amassa, moi, tritura, mata, destrói, sem, ao menos, parar para pensar.

A molécula de água é fonte da vida. O rio, é fonte da morte. Também nós, fonte de vida, unidos para ser firmes na defesa, acabamos fonte de morte, sempre a atacar; ou, bem pior, a ignorar.

A riqueza que gostamos de acreditar que em nós habita, dilui-se, fenece à vista de alheias virtudes. Ao fatal anonimato, resistimos tolamente num infindável e frenético vai-vem de imagens e frases que pespegamos na montra social para sobressair, quantas vezes pisando outros para, humilhando-os, o  nosso protagonismo assegurar.

- x -.

Somos lindos, desde que não olhemos o espelho de nós nas águas calmas. Nas do lago que nos é próximo, ou nas do imenso rio que passa e continuará a passar.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022


O Princípio da Incerteza


"Não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro,
mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado?
Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários
com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações? 
"

"Como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da corrupção e a dependência do compadrio
gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública
é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos? 
"

"A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início da incerteza, mas a própria essência da mesma "

O Princípio da Incerteza
Terá a morfologia facial evoluído no sentido de permitir aos hipoteticamente superiores espíritos humanos comunicar entre si ou, inversamente, terão os ditos espíritos começado a comunicar verbalmente num aproveitamento da dita evolução?

Qualquer que seja a resposta, parece certo que a razão de ser e o objetivo da fala é a comunicação entre os humanos, tal como já sucedia com a expressão corporal e viria a acontecer com a  bem mais recentemente inventada escrita.

Sabemos também, à saciedade, que só quando prosseguida de forma rigorosa e contemplando a possível perfeição será qualquer atividade animal razoavelmente conseguida no seu propósito. A falta de caso, a preguiça, o facilitismo e vícios similares comprometem, seriamente, a eficácia e a eficiência da ação, a ponto de, em casos extremos, tornar contraproducente o resultado final.

Se, na infinidade de sinais a que poderia recorrer, a mera linguagem corporal era, inevitavelmente, pouco rigorosa, imprecisa, a linguagem verbal viria, decisivamente, complementá-la como uma forma eficaz de limitar a dispersa e caótica sinalética, assim tornando potencialmente muito mais precisa a correspondência entre a ideia e a mensagem que a veicula entre os espíritos.

Através da combinação, em palavras, de fonemas de correspondência sonora relativamente constante dentro de um mesmo idioma, apurou-se, pois, a transmissão e a captação da ideia contida na mensagem, drasticamente reduzindo a ambiguidade e a indefinição.

Na senda do mesmo objetivo, a evolução inteligente da utilização da palavra deveria, então, ser a da constante afinação e da cada vez mais rigorosa utilização do idioma: nunca a da sua deterioração, seja por via da desenfreada polissemia, seja pela do desprezo que cada vez mais vamos notando para com as mais elementares regras gramaticais.

Esta inversão de sentido, esta desvalorização da função elementar da linguagem verbal encontra-se, porém, de tal forma enraizada no tendencialmente permissivo espírito humano que qualquer norma é prontamente revogada à primeira violação pela pena de um escritor, como se, ao subverter, supostamente em benefício da manifestação artística, o edifício gramatical e a precisão vocabular, qualquer romance fosse, por natureza, um código, uma cartilha pela qual todos nós a língua portuguesa devêssemos estudar.

Bem pelo contrário, e como já aqui opinei, "um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar".

Daqui decorre que, seja quem for que, por indiferença ou em nome da criatividade, sistematicamente utilize de forma inadequada o vocabulário e viole as regras da gramática jamais poderá ser confundível com um teórico da língua.

Apenas patenteia, em tal matéria, inaceitável ignorância larvar.

- x -

O princípio da incerteza, de Werner Heisenberg, sustenta que, observando uma determinada partícula de matéria, não é possível, com exatidão, determinar a posição e, simultaneamente, medir a velocidade daquela - algo que, cingindo-nos aos conhecimentos e aos métodos da física clássica, deveria ser possível fazer-se.

Segundo a física quântica, apresenta-se, assim, o dito princípio como mais uma forma de demonstrar que o Universo age mais misteriosamente do que aquilo que nos têm feito crer - embora a conclusão pela impossibilidade de apurar os valores com absoluta certeza se deva ao facto de serem utilizados, à falta de outros disponíveis, métodos invasivos para efetuar as medições.

Ora, instruídos que foram todos os atuais comentadores do programa da assim chamada CNN Portugal "O Princípio da Incerteza" na conjunto de áreas do conhecimento conhecida pela designação genérica de humanidades, será que foi o postulado de Heisenberg o inspirador do título adotado? Dificilmente, ou estaríamos perante uma provável demonstração de despudorada presunção, ou de  desmesurada cosmética mediática.

Será, então, que, no título do programa, princípio exprime a ideia de início, e não de lei geral da física, de parte da sua informação fundamental?

Mas, a assim ser, também aqui se manifesta insanável dúvida. Pois não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro, mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado? Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações?

Falar do início da incerteza seria, pois, refletir sobre as origens do Universo, ou seja, algo muito distante da linha editorial do programa televisivo de cujo título aqui se trata.

Considerada esta, poder-se-á, naturalmente, considerar a possibilidade de se tratar do início, não da incerteza absoluta, primária, mas, por exemplo, da incerteza ou insegurança na gestão política do Estado. Mas como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da corrupção e a dependência do compadrio gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos?

Até que alguém que saiba a esclareça, a dúvida subsistirá, assim, quanto ao sentido em que, na escolha do título, o termo princípio foi selecionado: lei fundamental, ou início de algo? Neste caso, início de quê?

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Preferir, na circunstância, a utilização do termo início - ou começo - eliminaria qualquer dúvida quanto a ideia a transmitir: início exprime, sempre, o primeiro estágio, o lançamento. Isto, apesar de poder discutir-se a correção de atribuir-lhe, como alguns fazem, o significado de preliminar ou preambular, já que não parece seguro que pre não signifique que antecede o início da ação propriamente dita, a qual se destinaria a preparar ou enquadrar.

Em qualquer caso, o que importa reter é que a ambiguidade vocabular sempre será de evitar, sem prejuízo, naturalmente, da saudável criatividade, da originalidade que, desejavelmente, se procurará imprimir às manifestações do espírito, sob pena de, assim não sendo, tudo se resumir ao sensaborão, ao acinzentado de uma vida em que, praticamente, nos limitaríamos a respirar.

A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início da incerteza, mas a própria essência da mesma, a par com o facilitismo gramatical que, em boa parte por via da importação de vocábulos e estruturas próprias de variantes do idioma desenvolvidas noutras partes do Mundo, mina, não apenas a clareza da ideia, o rigor da mensagem, a destreza do raciocínio, mas, com elas, a qualidade da interação do ser humano com os seus pares.

A riqueza vocabular reside na diversidade da utilização de termos com significados semelhantes, próximos, sem deixar de respeitar a particularidade de cada um deles: não no empanturrar das palavras com significados, levando a que, um dia, qualquer coisa querer dizer uma coisa qualquer, e deixemos de conseguir captar a ideia precisa ou, sequer, uma aproximada da que pretende exprimir quem escreveu ou está a falar.

Generalizada muito para além da mais ampla razoabilidade e longe de corresponder ao enriquecimento da língua, antes à degradação da sua beleza e da sua utilidade, a desenfreada polissemia apenas torna mais difícil a já de si difícil arte de comunicar.

A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica, e não pela utilização
mais ou menos própria que, aqui ou ali, um ou outro escritor dela fará.

A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de definir como devemos exprimir-nos,
a gramática se limitar a observar como vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada hipercorreção
qualquer tentativa de resistência à degeneração.

terça-feira, 14 de junho de 2022


Tribunal Constitucional: A Polémica nas Nomeações

 

"Compete ao Tribunal Constitucional discernir o que estava no espírito dos Constituintes, da mesma forma que, a estes,
competiu plasmar no articulado a vontade dos eleitores de então. Aos tribunais de justiça incumbe, num plano não confundível,
interpretar a intenção do legislador
"

"Um conselheiro do tribunal constitucional é, por natureza, um agente político, assim devendo ser, antes de mais,as suas escolhas políticas a condicionar, positiva ou negativamente, a nomeação"

Despolitizar o chamado Tribunal Constitucional, atribuindo a responsabilidade pela escolha a alguém constitucionalmente mais isento ou fazendo depender de cooptação uma maior percentagem dos seus membros,
seria esvaziá-lo do cariz político que é, afinal, a razão de ser da sua manutenção

 

   1. Da Natureza Política das Leis Fundamentais
   2. Da Função Eminentemente Política dos Tribunais Constitucionais
   3. Da Ameaça à Sobrevivência do Tribunal Constitucional


1. Da Natureza Política das Leis Fundamentais

Natureza das Leis Fundamentais
Vem este pequeno a propósito da discussão recentemente lançada a partir da polémica rejeição, pela ala considerada esquerda do Tribunal Constitucional, de um candidato proposto pela ala considerada direita*). A recusa da cooptação terá sido motivada por posições outrora assumidas pelo próprio, uma delas contrária à legalização da interrupção voluntária da gravidez*) e outra favorável à investigação e perseguição dos jornalistas culpados de violações do segredo de justiça.*)

Significa isto que, mesmo após sucessivas votações do conclave, o reconhecidamente ilustre Jurista não foi excluído por incompetência, mas sim, segundo alguns, por delito de opinião, figura absolutamente inadmissível e aberrante em qualquer democracia, antiga ou moderna, genuína ou encenada, tímida ou plena.

Opinam, pois, os mais escandalizados detratores do atual modelo de nomeação dos membros do Tribunal que deveria ser a competência no âmbito da técnica jurídica a prevalecer, e não o posicionamento político - genérico ou relativo a temas específicos - do jurista proposto para o lugar*).

Com o devido respeito, será de recordar, a quem assim entende, que a lei fundamental, constituinte, de qualquer estado exibe cariz eminentemente político, e não jurídico, operando esta vertente unicamente enquanto garante do rigor técnico, lógico, estrutural do diploma: não cabe, nem é possível, a qualquer jurista apreciar a legalidade substantiva do articulado, uma vez que a Constituição a todas as leis se sobrepõe, e todas elas condiciona.

Quanto ao caráter político, se dúvidas houver, atente-se nas designações*): Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1822 e Constituição Política da República Portuguesa em 1838, 1911 e 1933. O adjetivo política foi omitido, unicamente, na Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa, de 1826, e… na Constituição da República Portuguesa, de 1976.

Ora, não basta a anfibológica opção pela supressão, da designação, de um adjetivo essencial para dela eviscerar a característica a ele correspondente. O caso das constituições é, aliás, paradigmático quanto a este aspeto, uma vez que, independentemente os malabarismos oportunistas sofridos pelas respetivas designações, sempre se tratará de acervos articulados de normas essenciais à estruturação política dos estados; ou seja, em democracia, da mais ou menos cristalina expressão da vontade popular, do cardápio das normas essenciais pelas quais irão reger-se a governação e o funcionamento daquele.

Compreende-se, naturalmente, que a intensidade do debate político nos dois anos imediatamente subsequentes à Revolução de 1974 haja recomendando aos padrinhos da Constituição a supressão do adjetivo política, quiçá com o intuito de não lançar mais combustível numa fogueira então já de si bastante difícil de controlar. Mas mais difícil será entender quem, agora, parece negar que deve ser eminentemente político o posicionamento do órgão judiciário que sucedeu ao incontestavelmente político e, por muitos, malquisto Conselho da Revolução.*)

A assim não ser, qual o sentido de, em lugar de essa competência ficar nos tribunais supremos, que a exerceriam com pendor necessariamente apolítico, criar um tribunal autónomo para a exercer? 


2. Da Função Eminentemente Política dos Tribunais Constitucionais

Sendo as constituições, como vimos, diplomas essencialmente políticos e tendo qualquer tribunal constitucional ou equivalente a missão de exercer fiscalização*), preventiva ou sucessiva, material ou formal, abstrata ou concreta, do cumprimento dos preceitos constitucionais, torna-se difícil aceitar que devam os respetivos conselheiros ser escolhidos, antes de mais, pela competência técnica, e não pela conformidade ideológica com a orientação política do texto que irá determinar toda a atividade profissional por eles desenvolvida na vigência do mandato.

Por outras palavras, num país, como Portugal, cuja Constituição foi elaborada por uma maioria de esquerda - que, de forma porventura indelével e a despeito das revisões entretanto ocorridas, nela gravou o seu cunho -, só de forma muito forçada poderá considerar-se delito de opinião o facto de alguém não ser admitido como membro do Tribunal que a fiscaliza como inevitável consequência das posições políticas que defende: o Tribunal Constitucional não é o garante da – possível - legalidade objetiva das decisões dos restantes tribunais e, a montante, da produção do legislador: é, exclusivamente, o garante da conformidade das mesmas com a vontade política expressa pelos constituintes democraticamente eleitos.

Compete-lhe, pois, discernir o que estava no espírito dos Constituintes, da mesma forma que, a estes, competiu plasmar no articulado a vontade dos eleitores de então. Aos tribunais de justiça incumbe, por sua vez e num plano não confundível, interpretar a intenção do legislador.

Se, em qualquer momento eleitoral, os votantes  vierem a pretender uma Constituição de direita, nada mais terão a fazer do que neste quadrante político votar expressivamente, a ponto de possibilitar uma revisão profunda a partir da qual deverá, então sim, passar o Texto Fundamental a ser fiscalizado por uma maioria de direita, nessas circunstâncias mais apta a interpretá-lo, da mesma forma que, atualmente, uma maioria fiscalizadora de esquerda potencialmente o fará bem melhor.

Não deixa, evidentemente, de ser verdade que sempre deverá condenar-se, veementemente, qualquer campanha mediática lançada, seja por que motivo for, contra a personalidade de um candidato a conselheiro do Tribunal Constitucional, tal como o é qualquer outra ação que, independentemente do objetivo, a este não hesite em sacrificar o direito de qualquer cidadão a uma imagem isenta de calúnias e de mais ou menos torpes insinuações.

Não deixa, por outro lado, de causar perplexidade que eminentes juristas venham, publicamente, indignar-se pelo agora sucedido na cooptação de um elemento por pares cuja função é a de supervisionar a atuação política dos agentes do Estado: opinam aqueles juristas como se de uma discriminação por delito de opinião se tratasse numa candidatura a qualquer outro lugar, em qualquer organização, numa empresa indiferenciada ou, por maioria de razão, num órgão de comunicação social.

Mas não é disso que se trata: um conselheiro do Tribunal Constitucional é, por natureza, um agente político, assim devendo ser, antes de mais, as suas escolhas políticas a condicionar, positiva ou negativamente, uma eventual nomeação

 

3. Da Ameaça à Sobrevivência do Tribunal Constitucional

Mesmo sem proceder a um rigoroso inventário, a nível mundial, dos tribunais constitucionais existentes – ou de órgãos com exclusiva missão equivalente -, não será arriscado dizer que são muito poucos os países que optaram por separar, do poder judicial, a fiscalização da constitucionalidade, claramente pretendendo eles, com a medida, dotar de um cunho político muito próprio a fiscalização do cumprimento das respetivas constituições, políticas que todas elas são.

Nos restantes países, a fiscalização integra, num plano predominantemente técnico, as atribuições exclusivas dos tribunais, designadamente dos tribunais superiores, que, por cá, apenas exercem a fiscalização concreta da constitucionalidade. Escusado será dizer, que, neste caso, sim: seria um gravíssimo e preocupante atentado à independência dos tribunais de justiça que fossem admitidos ou recusados, em função das suas opiniões, os seus indispensavelmente isentos e imparciais magistrados.

Tratando-se, no entanto, de um órgão estruturalmente político e cuja missão é, exclusivamente, política, resulta, de facto, difícil de entender a menos nítida concetualização presente no espírito de quem entende que a autonomia do poder judicial fica comprometida pelo facto de os conselheiros do Tribunal Constitucional serem escolhidos por políticos militantes, como o são os parlamentares.

Este Tribunal não aplica a justiça, tampouco integra a hierarquia do sistema judiciário. Corresponde, antes, a um órgão paralelo, com atribuições, competências e jurisdição bem definidas e bem distintas das dos tribunais de justiça, aos quais – a esses, sim – compete aplicar a justiça e zelar pela legalidade das decisões, designadamente administrativas.

O equívoco latente dever-se-á, possivelmente, a uma escolha menos feliz do substantivo tribunal para designar o órgão. Mais claro e evidente teria ficado o seu importante papel caso se tivesse adotado, para o órgão que sucedeu ao Conselho da Revolução, a designação Conselho Constitucional, como acontece em França*), alteração que, desde já, aqui se propõe. Teria, assim, ficado claramente definida a evidente e inegável diferença de objetivos e de funções entre este Conselho por cá chamado Tribunal e aqueles que, tribunais, verdadeiramente são; e, embora sem vestir a beca, teriam os venerandos membros conservado o direito a assento no mesmo sólio e a ser chamados conselheiros, como acontece com os membros do de qualquer conselho, de Estado*) ou não.

A distinção nos objetivos é, aliás, fundamental à sobrevivência do órgão, independentemente da designação que se lhe dê: despolitizar o chamado Tribunal Constitucional, atribuir a responsabilidade pela escolha de quem o integra a alguém constitucionalmente mais isento como, por exemplo, o Presidente da República, ou fazendo depender da cooptação uma maior percentagem dos seus membros seria esvaziá-lo do cariz político que é, afinal, a razão de ser da sua manutenção.

Tal opção apenas faria algum sentido no caso de se pretender atenuar o pendor político da fiscalização. Em tal caso, porém, seria bem mais avisado suprimir, de uma vez, o órgão e integrar nos independentes e isentos supremos tribunais as suas competências e atribuições.

No caso contrário, melhor será deixar as coisas como estão…


Lembra-se do saudoso Contra-Informação?

NÃO PERCA a hilariante carta que "Acabado Silva"
escreveu aos seus pais vinte e cinco anos atrás!


Veja AQUI, no Mosaicos em Português



"As saudades que eu tenho do poder
Já são tantas que até me fazem mal
"
"Acabado Silva", Junho de 1997    

domingo, 5 de junho de 2022


Sentido de Estado

"No momento em que é eleito para o importante cargo de presidente da República,
um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente,
do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional
e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos
"

"Num mundo civilizado, será, assim, impensável que um outrora presidente da República venha, do nada,
desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado
"

"Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico,
menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar
"

Sentido de Estado
Se o significado de sentido de estado é tão evidente como qualquer outro, não menos certo é que a definição de sentido de estado é tão difícil como qualquer outra. Se não quanto à substância, pelo menos quanto ao grau, ou seja, à fronteira além da qual, do ponto de vista da legalidade, da decência, da probidade, da mais elementar educação, cada um considera que seria ilegítimo comportar-se no desempenho das funções públicas que lhe foram confiadas.

Resta, naturalmente, o caso daquelas figuras públicas que, sem reserva ou pudor, desvalorizam o dever de se comportar de forma responsável e cívica, reféns que estão do próprio umbigo, do incomensurável ego que terá determinado, desde a génese, a decisão de enveredar por uma carreira política orientada, não para o serviço da coisa pública, mas do engrandecimento e glorificação de coisa própria, mormente património, imagem ou poder.

Ora, casos de manifesta falta de sentido de estado não têm faltado.

Quem não se lembra das trapalhadas do Ministério da Justiça no processo de nomeação de um procurador europeu?*) Ou do Presidente da Assembleia da República que, em plena crise pandémica, convidou todos os portugueses a deslocar-se a Sevilha para assistir a uma partida de futebol?*)

Por mais que estejamos cientes de que por aí anda muita gente mal formada, pouco educada, insensata, insensível, quase todos os dias os mais diversos canais informativos nos confrontam com demonstrações de boçalidade pessoal e política, de inabilidade social, que em nada beneficiam, cá dentro como lá fora, a imagem de Portugal.

O que dizer do ministro da economia - hoje arguido num processo-crime - que, em plena sessão parlamentar, dirigiu, a um deputado da oposição, o conhecido gesto representativo de um par de chifres?*) Ou do secretário de estado que entendeu que, a nível internacional, Portugal saiu beneficiado com a pandemia?*) Ou do outro que apodou de estrume e de coisa asquerosa um programa televisivo de informação?*) Mesmo assim, mantém-se no poder, embora em pasta diferente, o que bem diz do sentido de estado de quem, não obstante, o convidou...

A par da deficiente formação e educação, a incompetência endémica que grassa, descontrolada, pela cena política nacional leva certos indivíduos a personalizar o impessoal, a esquecer-se de que, em prol da inviolabilidade da missão que desempenha, devem ser tratadas na esfera privada e pessoal as disputas privadas e pessoais do titular de um cargo institucional.

Tampouco poderemos esquecer-nos das indecorosas declarações de uma bastonária*) – agora também a contas com a justiça por alegada falsificação de contas – segundo a qual “(…) a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho!”; ou que chama esterco a um jornalista*) e envia cumprimentos ao respetivo pai, já falecido.

Ser frontal e, até, polémico é um direito; mas esse exercício elementar da liberdade não pode ser, em instância alguma, confundido com vulgaridade, com ordinarice, com baixeza.

Só ataca o autor quem não tem como atacar a ideia.  Significa isto que, ou o atacante é incompetente, ou o autor tem razão. Seja qual for o caso, a forma ordinária do discurso sempre acabará por ofuscar o brilho do conteúdo, por muito que o autor possa estar com a razão.

Perdurarão na memória coletiva a frieza do escandaloso e degradante desempenho de um certo ministro da administração interna em diversos momentos do seu mandato, e a despudorada exoneração de um chefe do estado-maior da armada em benefício de um popular herói da vacinação. As trampolinices com graus académicos não são novidade, e os recorrentes episódios de excessos de velocidade ao volante de viaturas oficiais sem justificação plausível e aceitável tendem a ser olhados com naturalidade, se não com respeitosa admiração.

O mesmo acontece com a apresentação e promoção, por parte dos diversos partidos políticos, de candidatos autárquicos elementares, manifestamente inaptos para a função, ineptos, até; incapazes de alinhavar duas frases e de articular duas ideias, exemplares emergências do país profundo cuja existência, invocando as estatísticas da frequência escolar que zelosamente alimentam, os poderes instituídos insistem em negar.

Tudo isto é feio, tudo isto é triste, tudo isto é fado, a fatalidade quotidiana e comezinha da política nacional, que, de tão degradada que está, já não consegue recrutar pessoas de qualidade pessoal e técnica para nos dirigir ou governar.

- x –

Constitucionalmente situado num patamar muito acima de qualquer outro cidadão e, supostamente, ao serviço de todos eles, eleva-se, desejavelmente intocável, a imagem dos sucessivos Presidentes da República Portuguesa, supremos magistrados da Nação, garantes da estabilidade, da liberdade e da igualdade, para os quais todos quereremos poder olhar com respeito e admiração.

No momento em que é eleito para tão importante cargo, um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente, do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos.

Este dever de salvaguarda não resulta, longe disso, de propósitos de engrandecimento ou exaltação pessoais, antes da necessidade de preservação da dignidade do cargo, independentemente de quem, em cada momento, o ocupar, preservação essa essencial ao exercício, quer da magistratura de influência, quer dos poderes efetivos de supervisão da atividade governativa de que estará investido e lhe competirá exercer.

O momento em que assumir tão altas funções deverá, por tudo isto, ofuscar, quase apagar, quaisquer reminiscências do passado em funções hierarquicamente inferiores que, ao longo da carreira política, o novo titular possa ter desempenhado.

Jamais deverá, assim, o próprio vir a campo defender, sobretudo a despropósito ou com motivação forçada e sem provocação, o seu anterior desempenho no governo, ou desafiar a fazer melhor quem, imediatamente ou não, o tiver sucedido no mesmo cargo. Fazê-lo, seria, não apenas ridicularizar-se, mostrar de si uma essência eticamente pouco estruturada e uma forma indizivelmente elementar, como minimizar o estatuto de tão alto magistério, dessa forma comprometendo, ingloriamente, o desempenho dos que nele lhe viessem a suceder: a imagem do cargo oscilaria no pedestal que, à eficácia no desempenho, é tão essencial.

Já de si, e em quaisquer circunstâncias, o combate político vazio de ideias, comezinho, rasteiro é, a todos os títulos, um espetáculo degradante. Que a tal nível pudesse, alguma vez, descer um outrora presidente da República seria uma inequívoca demonstração, não apenas da incapacidade genérica e inata para o desempenho do cargo, como do erro histórico em má hora cometido pelos votantes quando da eleição.

Num mundo civilizado, será, pois, impensável que um outrora presidente da República alguma vez venha, do nada, desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado. Será impensável que, numa espécie de carta aberta eivada de pronomes pessoais e possessivos na primeira pessoa do singular, publique um monótono e entediante cardápio dos seus feitos no exercício de um pretérito poder executivo, numa aparente tentativa egocêntrica de atrair para si a atenção de uma comunicação social que já pouco ou nada lhe ligue por, sobre ele, já pouco ou nada de interesse haver a noticiar.

Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico, menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar.

- x -

Os Presidentes da República que já não estão entre nós sempre assim o entenderam e agiram em conformidade. O primeiro Presidente da República eleito no atual regime, também.

O atual Presidente da República tem manifestado igual entendimento.

O elevado sentido de estado de todos estes sempre, respeitosamente, poderemos louvar.

* *

Como o exemplo vem de cima - seja lá, no presente caso, este cima o que for... -, não admira que diversos atores políticos continuem a fazer figuras tristes, supostamente em defesa de... de quê?

(continua aqui)

domingo, 22 de maio de 2022


Signos do Zodíaco: Embuste ou Enigma?


"Não será a influência dos astros sobre o próprio que, algum dia, permitirá, a ele ou a outrem, prever o seu Futuro, mas, quando muito,
a influência cósmica sobre a Natureza ou sobre terceiros que, por sua vez, irão determinar aspetos importantes
do que mais proximamente lhe irá acontecer
"

"Sejam quais forem os objetivos servidos pela Criação, até que ponto fará algum sentido que a Humanidade seja gerida por signos,
em duodécimos?
"

"Que razoável contrapartida terá o serviço do astrólogo a oferecer ao expressivo desembolso económico de quem o vai procurar?"

1. Anátema
2. O Joio e o Trigo
3. A Importância dos Astros sobre a Vida
4. Os Outros e Eu
5. Da Viabilidade Estatística
6. A Mão de Deus?
7. Conclusão

1. Anátema

O espetro de pandemias, guerras e outras calamidades paira, permanentemente, sobre nós. No entanto, impotentes que somos para contra elas eficazmente nos precavermos, preferimos, em tempos de relativa paz - e talvez, sabiamente... -, olhar para o lado e continuar a deambular, tranquilamente por aí, optando por nos preocuparmos apenas quando as coisas acontecem e já pouco ou nada podemos fazer para minimizar o inevitável impacto negativo sobre as nossas vidas e sobre as daqueles com quem interagimos.

A previsão de tão infaustas ocorrências não constitui, porém, o propósito principal das visitas com que alguns insistem em continuar a honrar videntes, astrólogos, quiromantes e outros que, como eles, se dizem adivinhadores do Futuro - acreditem eles próprios nisso ou não.

Lá bem no fundo de quem a tais consultas recorre existe uma mais ou menos secreta esperança de voltar com boas notícias, acerca da família, dos amigos, dos colegas, mas, sobretudo, sobre si próprio: se vai morrer já ou não, como vai, até lá, andar de saúde, e se vai pingar ou não o rico dinheirinho que tanta falta lhe faz. Existe, ainda, a crença de quem entende que, por conhecer, de antemão, os infortúnios que lhe irão cair em cima, melhor se poderá preparar para os suportar.

Este hábito, bem típico e sintomático da insegurança endémica que grassa pelo território português, de ir à bruxa, de recorrer a adivinhos como forma de reduzir a ansiedade gerada pelo medo do desconhecido que aí vem ou está, movimenta, na economia paralela, verdadeiras fortunas despendidas no pagamento de serviços que, na maior parte dos casos, para nada servem. As mais das vezes consistem, de facto, em meros e fantasiosos palpites ou intuições de profetas, de feiticeiros e de outros iluminados, palpites esses sem qualquer substrato lógico ou suporte científico, devendo-se a eficácia média das ditas previsões a uma astuta e, de alguma forma, experiente interpretação da comunicação não-verbal e da história de vida posta a nu pelos consulentes, cuja conversa é, magistralmente, manipulada para o assegurar.

Comunicação não-verbal e história de vida constituem, de facto, excelentes bases para a formulação de hipóteses de evolução do destino a curto prazo, o único em que, afinal, importa acertar, tendo em conta que, no médio e no longo, já a lembrança do que foi dito pelo adivinho há muito estará esquecido - ou que, pelo menos, das palavras exatas já o cliente, entretanto, se esqueceu.

Seja como for, na visão fortemente subjetiva do incauto, o adivinho raramente falha, ainda que os factos futuros contradigam a previsão. É que, sendo o bruxo a última esperança dos desesperados, a simples ideia do falhanço corresponde à extinção da última centelha de algo que os faça continuar a acreditar, a viver.

Destas artes mais ou menos trapaceiras, mais ou menos folclóricas, escarnece, compreensivelmente, quem se acha mais esclarecido. Escarnece ou ignora, despreza, banindo-as sumariamente do discurso e da cogitação. Sujeita-se, assim, a que, por um lado, os que insistem na possibilidade de prever o futuro lhe apontem o mesmo vício de falta de fundamentação que inquina a mera adivinhação oportunista; por outro, a que, liminar e impensadamente, esteja a abdicar do que de válido que nestas coisas ditas esotéricas possa existir.

A verdade é que, seja por nada de verdadeiramente substancial a crescente panóplia de áreas e de técnicas de adivinhação em si ter, seja pela impossibilidade de, verdadeiramente, se conhecer algo que, desgarrado da ciência, nenhuma teoria objetiva e validada alguma vez poderá produzir, a crendice de uns grassa incólume a par da ganância de outros cujas fortunas continuam a engordar.

Vivemos, entretanto, à sombra do implacável e cego anátema sobre o tema lançando por uma sociedade que se tem por esclarecida e evoluída, mas que, paradoxalmente, continua alérgica a qualquer afloramento de discussão séria sobre uma matéria que considera indigna de ser levada em conta por gente que se tem por sábia, sensata, educada; e, sobretudo, politicamente correta.


2. O Joio e o Trigo*)

A despeito das considerações que antecedem, nada nos impede de, com a objetividade possível, aqui refletir um pouco sobre o tema.

Comecemos, para tal, por separar o que não passa, claramente, de mera fantasia, daquilo que poderá, apesar de tudo, relacionar-se com factores naturais suscetíveis de, em maior ou menor grau, influenciar os indivíduos num Futuro relativamente próximo. Isto, admitindo que, se  sobre os seus comportamentos operarem de forma regular e consistente tais factores, a observação e subsequente análise dos comportamentos por eles influenciados poderão permitir, com um certo grau de confiança, alguma coisa prever.

Ao primeiro conjunto - o da mera crendice, da mera fantasia - pertencem, necessariamente, coisas tão aleatórias e ocas como a predição de acontecimentos com base na disposição de folhas de chá ou de borras de café coladas à chávena, no estado de entranhas de animais mortos para o efeito, ou, ainda, a técnicas mais elaboradas, como o recurso à cartomancia, ou mais folclóricas, como a utilização de uma bola de cristal.

Tão fiáveis e exatos como o são os vaticínios para ganhar a lotaria, todos estes processos não passam, evidentemente, da montra utilizada pelo dito vidente, que para elas distrai a atenção dos incautos que o procuram, enquanto aproveita a conversa para os avaliar segundo o que de si e dos outros vão contando e o modo como o fazem, assim fornecendo dados preciosos a uma previsão para a qual, como já se disse, são essenciais a história do cliente e a leitura da componente não-verbal da comunicação.

Não é fácil errar quando se diz, a quem é pobre, que em breve acabará por receber algum dinheiro sem referir quanto, ou uma fortuna, sem referir quando; ou que - se a conversa o indiciar... -, mesmo continuando pobre, será feliz porque as suas escassas poupanças saberá administrar. Ou, a quem tem filhos, que eles lhe irão dar alegrias e problemas; ou que irá ter alguma doença quem todos os dias respira este infetado ar. Ou que a alguém lançou mau olhado uma vizinha com a qual jamais se conseguiu relacionar.

Como estes, cada vez mais meios de absolutamente enganosa adivinhação existem, já que a criatividade de embusteiros e oportunistas que enriquecem à custa da ignorância e da credulidade alheias não pára de inventar.

Poderia, é verdade, no limite do absurdo estudar-se e medir-se relações de causa-efeito com base em informação estatística. Afigura-se, no entanto, que a recolha da amostra sempre resultaria do processamento de dados fornecidos por inquiridos tão incapazes de os facultar com um mínimo de objetividade como o é, seguramente, quem em tais patetices insiste em acreditar.

Já no segundo conjunto, o que aqui interessa, serão de incluir processos que, sem prejuízo de dificilmente serem suscetíveis de fornecer um retorno válido quanto à confirmação, ou não, dos prognósticos do adivinho, acabam por se apresentar como menos aleatórios, uma vez que partem da observação de factos concretos relacionados, quer com sinais do corpo humano, quer com fenómenos naturais confirmados por evidência científica.

Tal é o caso, quanto aos primeiros, da quiromancia e, quanto aos segundos, da astrologia: a primeira, baseada no indesmentível facto de, por razões que inteiramente desconhecemos, termos linhas na palma da mão; a segunda, pela cientificamente comprovada existência também dos fenómenos astronómicos a cuja observação a astrologia se tem vindo a dedicar.



3. A Importância dos Astros sobre a Vida

Tendência para nos desculparmos
Não obstante a proverbial tendência para nos desculparmos, sacudindo para a envolvente natural e humana as causas dos erros que cometemos e a responsabilidade pelo mal que nos acontece, há que reconhecer que, nem a Natureza, nem os outros humanos são, na maior parte dos casos, os principais culpados do nosso por vezes lastimável e danoso desempenho.

Muito mais do que uma ou os outros, somos nós mesmos, esta nossa personalidade edificada sobre inúmeros pilares de entre os quais se destacam a genética e a educação, quem origina, quem provoca os acontecimentos que protagonizamos ou em que participamos e, inevitavelmente, as inerentes consequências. Somos, pois, os causadores da maior parte do mal ou do bem que nos acontece, também o sendo os outros no respeito que lhes diz.

Assim sendo - ou seja, se, não descurando a vital importância dos impactos naturais, a nossa vida é, maioritariamente, influenciada pelo desempenho de outros animais, humanos ou não -, como poderá alguém não considerar a simples possibilidade de prever comportamentos alheios algo de sumamente atraente, interessante, relevante? Importante, até?

Prever, sim, mas apenas se for possível fazê-lo com fundamentos sólidos, preferencialmente científicos.

Sem com isto se pretender, naturalmente, significar que a Ciência permite predizer com exatidão seja o que for, almeje-se, pelo menos, uma antevisão com a probabilidade possível, sempre preferível ao pouco sério recurso à leitura das folhas de chá e a outras tontices que, a velocidades astronómicas, se vão disseminando aqui e ali.

Como vimos, quer a quiromancia, quer a astrologia, se apresentam como suscetíveis de tratamento estatístico, mediante a observação da ocorrência de factos relativamente aos quais poderá existir correlação válida com aspetos da personalidade; e, por via dela, do comportamento de cada ser humano enquanto influenciador do bem-estar ou do mal-estar de um mais ou menos significativo conjunto de terceiros.

A tal correlação existir, estaríamos, na verdade, perante uma provável ação direta - mas não fatal ou de efeitos inevitáveis - da movimentação e consequente disposição dos corpos celestes sobre o comportamento dos humanos; o que, à partida, não se mostra estranho ou, muito menos, choca, se nos lembrarmos da relação bem real entre as fases da Lua e as marés, ou da forma como as estações do ano operam, por exemplo, no desenvolvimento das plantas e na vida sexual das espécies animais.

Duvidar destas relações conhecidas entre os astros e o vai-vem dos mares ou o quotidiano das espécies seria negar o conhecimento obtido de dados empíricos conhecidos desde tempos imemoriais, e de informação entretanto validada deles extraída.

De outra forma dito, negar o papel, firmemente estabelecido, que os astros desempenham sobre alguns aspetos da vida terrena seria lançar no caos toda a teoria científica. 

Por outro lado, admitir esse papel, reconhecê-lo, para alguns aspetos da vida, impede-nos de, objetiva e fundamentadamente, simplesmente o negar cegamente no que se refere a outros.

Resta, pois, dizer que, embora não disponhamos de informação credível que permita confirmar tal hipótese, a possibilidade e, até, a probabilidade de os astros influenciarem múltiplos aspetos do comportamento humano é bem real e, como tal, não deve ser descurada, menosprezada e, muito menos, desprezada, como alguns tendem a fazer.


4. Os Outros e Eu

Desta nebulosa de dúvida, uma quase certeza emerge, porém: a de que, a existir influência cósmica sobre alguma vertente do Futuro, apenas se afigura possível que ela incida, seja, diretamente, sobre o comportamento dos indivíduos, seja sobre eventos da Natureza determinantes do mesmo, como acontece, no primeiro caso, com as ações e reações de outros animais e, no segundo, com as estações do ano. O que, por absoluta inexistência de substrato lógico ou científico, não pode, de modo algum, se tido por credível, é que, arrimando-se no que quer que seja ou se esforce por inventar, alguém venha, algum dia, a prever os números que irão sair no loto do clube da aldeia, no Euromilhões ou na lotaria das variáveis que, sob tantos aspetos, influenciam a vida de cada um de nós.

Continuará, não obstante, ao alcance do vidente prever, com razoável probabilidade, que alguém irá receber uma herança, desde que, na conversa com o cliente, se inteire da existência de um abastado, idoso e doente ascendente, e a integre, depois, numa combinação astral ou imaginariamente maléfica para a saúde do dito infeliz.

Estaremos, no entanto, neste caso em presença, não de uma previsão específica de que se irão encher de ouro os bolsos do descendente, mas de uma previsão de que a vida do autor da herança em breve irá terminar, assim não se relacionando o recebimento da herança com uma previsão diretamente feita ao Futuro do cliente do adivinho - vinda do nada ou de inspiração cósmica ou divina -, mas feita à provável evolução do estado do enfermo, que qualquer um de bom senso poderia fazer.

Se determinada combinação astral for propícia termos hoje um dia chuvoso e tristonho, mais provável se torna que tomemos decisões menos empenhadas, menos lúcidas, logo, menos eficazes, e que, como consequência delas, a nossa vida se complique. Num dia tépido e ensolarado, pelo contrário, tudo parece bem menos complicado, e a vida corre melhor. Mas, isto nada tem a ver com combinações astrais, antes com o privilégio de poder contar com um dia de Sol.

Da mesma forma, se outra combinação astral favorecer a vida e a disposição da pessoa a quem mais dedicamos a nossa atenção e carinho, bastará ao adivinho conhecer o respetivo signo para nos dar a boa nova de que seremos "felizes no amor": não porque o nosso signo o diga, mas pelo que, relativamente a outros aspetos da vida, disser o signo da pessoa amada - caso isto dos signos nos afete de alguma maneira.

O que dizer, então, do que nos espera sempre que, supostamente, os astros não forem propícios à disposição de um funcionário de cujo poder discricionário depende a emissão de licença ou autorização do Estado para qualquer ação que queiramos empreender ou obra que pretendamos realizar? Ou de um juiz que os nossos atos ou interesses irá julgar?

Todas estas e outras decisões se fundamentam, idealmente, na estrita aplicação do direito; mas, sendo materialmente impossível que a lei preveja todas as combinações e variantes possíveis para idênticas situações, sempre haverá o decisor de recorrer à hermenêutica e, segundo o seu melhor critério - inevitavelmente influenciável pela disposição no momento... -, colmatar lacunas e os preceitos interpretar.

Eis, pois, a mais importante distinção a reter: não será a influência direta dos astros sobre o próprio que, algum dia, permitirá, a ele ou a outrem, prever o próprio Futuro, mas, quando muito, a influência cósmica sobre a Natureza e sobre a vida dos terceiros que, por sua vez, irão operar em aspetos importantes do que mais proximamente lhe irá acontecer.

5. Da Viabilidade Estatística

Pelo menos dois obstáculos de monta se opõem a um tratamento estatístico minimamente fiável da astrologia: por um lado a impossibilidade prática de classificar, de forma significativa e abrangente, todas as vertentes da vivência humana; por outro, o facto de não haver como, objetivamente, validar os dados recolhidos e a informação colhida do respetivo processamento.

A qualidade desta validação não passaria do nível básico atribuível à de artigos científicos que por aí andam acerca da personalidade de cada um, baseando-se em traços fisionómicos, estruturas corporais ou aspetos comportamentais. Buscam os estudos que redundam em tais artigos extrair conclusões supostamente firmes de respostas naturalmente subjetivas fornecidas por familiares, amigos e conhecidos do objeto do inquérito; e, em certos casos, até de respostas dadas pelo próprio. Pergunta-se a alguém que tem o nariz com este ou aquele formato "Considera-se uma pessoa honesta?", ele responde "Sim" - todos responderão "Sim"... -, e conclui-se que quem tem um nariz de assim ou assado é honesto; e, como ninguém irá admitir que não é honesto, o mesmo acontecendo, necessariamente, com quem tiver qualquer outro tipo de nariz.

No campo da astrologia, as questões seriam, talvez, do género "Nestes últimos dias, tem tido sorte aos amores?" e, se a maioria dos nascidos sob o signo do Carneiro responder "Não", concluir-se-á que, estando a Lua e Vénus em conjugação com isto ou daquilo, os ditos indivíduos terão propensão para ser infelizes no amor... fazendo tábua rasa de coisas tão simples como factos de natureza política, social, ou económica que poderão estar a afetar toda a gente, independentemente do signo em que tiver nascido. Já para não falar, obviamente, dos diferentes e eminentemente subjetivos graus de exigência quanto à felicidade de cada um, da própria noção de felicidade e de um não mais acabar de subjetividades que inviabilizariam qualquer validação científica, por muito rigorosa que a seleção de inquéritos pudesse ser.

A despeito de alguma correlação efetiva que, de facto, possa existir entre os astros e algum aspeto da nossa vida, o facto de ela jamais poder vir a ser conhecida com uma, ainda que mínima, base científica desaconselha que continuemos a falar de astrologia assentes, unicamente, na intuição ou na observação de amostras ínfimas extraídas meramente do conhecimento direto e da experiência de vida de adivinhos de agora ou de tempos há muito idos.

Neste contexto de validação impossível, que razoável contrapartida terá o serviço do astrólogo a oferecer ao expressivo desembolso económico de quem o vai procurar?


6. A Mão de Deus?

Independentemente da possibilidade ou impossibilidade de validação, o exercício da influência dos astros, direta ou indiretamente, sobre os humanos suscitará, inevitavelmente, questões quanto à forma como a Razão Criadora de tudo e de todos, gere o Universo. Isto, claro está, partindo do princípio de que esse Criador ainda existe; e de que, a existir, continua a interferir na evolução da Sua obra, designadamente nos destinos da Humanidade.

De facto, sejam quais forem os objetivos na génese do Mundo - seja ele o que for... -, até que ponto fará algum sentido que seja a nossa vida gerida ou influenciada por signos, em duodécimos, em doze fatias de dimensão presumivelmente idêntica, correspondentes aos nascidos em cada um dos signos do Zodíaco? Ou não passarão os signos de uma fantasia e, no que diz respeito ao que possa ser determinado pelo Cosmos, haverá outras formas de classificar mais consentâneas com a realidade?

Certo é que, enquanto a quiromancia, por exemplo, se foca, inteiramente, no caso específico do indivíduo que detém esta ou aquela combinação - única - de linhas nas palmas das mãos, enquanto a fisiognomonia se centra no conjunto - único - de traços fisionómicos de um indivíduo -, a astrologia parte do pressuposto do exercício da ação benéfica ou maléfica de corpos celestes sobre conjuntos imensos de pessoas formados por um duodécimo da Humanidade, se não determinando o respetivo destino em lotes, pelo menos assim o tornando mais provável em detrimento da individualidade, da originalidade e, consequentemente, da riqueza da evolução das espécies.

A esta afirmação opõem-se os que dizem que a revelação do desconhecido relativo a determinado indivíduo apenas é possível mediante recurso a um mapa astral, o que gera, para o respetivo autor, chorudos proventos e um acréscimo de credibilidade para aquilo que afirma, já que, além da proverbial ingenuidade cultivada na crendice popular, os mais simples tendem a acreditar e a confiar em tudo aquilo que vê como complicado e, sobretudo... caro, que só alguns podem pagar.

Como pode, porém, dar-se alguma credibilidade a mapas astrais baseados, simplesmente, no posicionamento relativo de uma ínfima quantidade de corpos celestes no momento do nascimento de um indivíduo, ignorando, completamente, variáveis tão importantes como a genética, a geografia e a inserção social?

Sempre poderá, é verdade, argumentar-se que, tal como cada um de nós foi plantado em diferentes circunstâncias de tempo, de meio e de lugar - cabendo-lhe, independentemente delas e em benefício dos semelhantes, desenvolver as próprias qualidades e combater os inevitáveis defeitos -, também o facto de a data do nascimento se situar neste ou naquele signo implicará uma disparidade dos desafios que, por influência astral, cada qual terá de enfrentar.

No entanto, a assim ser, a questão essencial do propósito da Criação apenas se tornará mais confusa, tudo se complicando à medida que novos parâmetros e critérios cientistas e adivinhos forem sendo capazes de imaginar; e, seja qual for o vaticínio resultante da aplicação dessa complicada teia de influências, sempre a individualidade acabará prejudicada, uma vez que, por pequenas que se tornem as fatias da população abrangida, sempre haverá mais do que uma nascida à mesma hora, do mesmo dia do mesmo ano, e no mesmo lugar.

7. Conclusão

Ao contemplar a imensidão do Cosmos face à ridícula pequenez do planeta que habitamos, não poderemos deixar de nos questionar até que ponto será legítimo e aceitável enunciar a mera hipótese de tudo aquilo nada mais servir do que o exercício de manipulação ou, pelo menos, de influência por parte de quem tudo possa ter criado, por qualquer razão que nos não é dado descortinar.

Assim não sendo, como explicar a existência de um Espaço virtualmente infinito onde, além da que encontramos na Terra, de nenhuma outra vida inteligente sabermos ainda, a não ser as que povoam o nosso imaginário e algumas obras de ficção?

Como poderemos conhecer a razão de ser do Universo, se desconhecemos até a da nossa Criação?

Validar cientificamente uma teoria astrológica, ou similar poderia ser um importante contributo para uma melhor compreensão da vida e da função que nela se espera que desempenhemos. Parecem, no entanto, inultrapassáveis até os mais próximos e elementares obstáculos a tal validação.

Resta assim, aos mais crédulos, na sua desenfreada busca da felicidade que não sabem o que é continuar a ir à bruxa, e a esbanjar rios de dinheiro a procurar debelar a angústia e os mais ou menos dramáticos estados de aflição...

(continua aqui)