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sábado, 24 de julho de 2021


Coisas que Se Nos Colam à Pele

As viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do Ambiente
e do Primeiro-Ministro andam para aí
a abrir que nem loucas nas autoestradas,
descarregando alguns dos mui ilustres transportados, a culpa para cima de motoristas que,
agindo na melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para ao
patrão agradar


    1. Dos Vícios Tolerados e Seus Efeitos Expressamente Condenados
    2. “Não Me Comprometa
    3. O Hábito que o Português Partilha com a Avestruz
    4. A Cultura da Indiferença

  

Toxicodependência Droga
1. Dos Vícios Tolerados e Seus Efeitos Expressamente Condenados

Quando um bem conhecido norte-americano escreveu que “uma vez adquirido um hábito, ninguém deve lançá-lo pela janela, mas ampará-lo na descida, degrau a degrau *)” referia-se, por certo, àquelas coisas a que o nosso cérebro ou o nosso organismo se habituam a consumir sem qualquer benefício conhecido para eles.

Acontece com o álcool, com o tabaco e com uma infinidade de outros mais ou menos nocivos estupefacientes, causando aos ditos cérebro e organismo danos por vezes irreparáveis em proveito exclusivo de quantos fazem transbordar as respetivas bolsas graças à exploração do trabalho mal pago de largos milhares de desgraçados que dependem, para sobreviver, dos proventos de um trabalho quase escravo a que se sujeitam sabendo, embora, quão nocivo o resultado será para o chamado consumidor final daquilo que colhem, destilam ou refinam para sobreviver.

Não se referia, seguramente, o tal norte-americano a hábitos socialmente bem mais perniciosos, daqueles que não apenas prejudicam quem os adquire e uma ou outra vítima inocente do fumo do tabaco, de uma criminosa agressão que, por muito grave e condenável, nem por isso deixa de ser pontual ou, pelo menos, limitada no alvo e nos eventuais lesados por arrastamento ou proximidade. Isto, sabendo, como bem se sabe, que a proliferação de certos comportamentos ocasionais agressivos e de consequências inenarráveis, acabam por se tornar chagas sociais que cumpre e urge erradicar, sob pena de acabar completamente subvertida a ordem social.

Todos estes hábitos que são causa direta ou indireta de tão nefastos efeitos não deixam de gerar na comunidade a descontraída sensação – ou, pelo menos, a ilusão – de que sempre haverá como os desencorajar, como os controlar ou como os seus efeitos mitigar a ponto de o coletivo se não sentir ameaçado a menos que conheça um caso próximo ou lhe tenha sofrido os efeitos na pele.

Fora isso, não apenas são tais vícios tolerados, como até há quem tudo faça para tornar alguns deles socialmente naturais ou, no mínimo, considerados como devidos a doenças ditas comportamentais - embora nascidas de comportamentos censuráveis e evitáveis desde a génese -, por este processo meramente cosmético passando a ter a dignidade de patologias e tornando-se, pelo facto, os seus ditos portadores a merecer epítetos próprios de quem padece de verdadeiras e inevitáveis enfermidades, genéticas ou contraídas.

Passou, desta forma, a louvar-se o que é objetivamente condenável; e a promover-se, também.

 

2. “Não Me Comprometa

PIDE/DGS Existe, no entanto, algo bem mais grave que não tem raízes nos genes, ou na vontade de experimentar sentida por um adolescente desacompanhado, num inultrapassável desgosto de amor, no desespero de alguém que pensa que apenas lhe resta “dar de beber à dor”.

São coisas que se nos colam à pele, que estão culturalmente enraizadas e disseminadas por toda uma população habituada, durante décadas a fio, a ser governada e gerida por incompetentes e corruptos caciques numa ditadura plenamente assumida pelos seus protagonistas num pensamento lapidar: “Aqueles que concordarem com o programa da Ditadura praticam ato patriótico colaborando; os que não concordam são livres de proclamar a sua discordância mas, no que respeita a atuação política efetiva, evitaremos que nos incomodem demasiadamente”.

Colam-se à pele dessa população que, banida a ditadura, se foi, também há décadas a fio, habituando a ser governada e gerida, entre outros, por alguns incompetentes e corruptos caciques que só agora, graças à coragem e ousadia de uns quantos e a um agora mais apurado sentido de oportunidade política de outros, vão sendo desmascarados e, até, aqui e ali, efetivamente, confinados atrás de grades que nada têm a ver com as de uma pandemia.

A dependência do caciquismo labrego e bacoco dos tempos da famigerada PIDE/DGS continua, não obstante, a correr pelos caminhos portugueses, a correr da pena dos portugueses, a correr nas artérias e veias dos portugueses.

A miúfa endémica - eufemisticamente chamada temor ou respeito - por uma hierarquia superior que jamais o soube ser, continua a condicionar, a ditar a forma como os portugueses pensam, decidem, agem ou omitem, tentam alijar responsabilidades na crença que esperam não seja vã de que nada lhes aconteça e ninguém, pelo seu silêncio, os arrelie.

Um conhecido programa de humor de um País irmão incluía uma personagem que passava o tempo a dizer “Eu não fiz nada, meu Amigo, não sei nada, se disser que eu fiz eu nego, ene, é, gê, ô, n-e-g-oooo. Não me comprometa! *)”. Retratava esta convicção de que, não agindo, não nos manifestando, não tomando partido, não denunciando condutas que a lei proíbe, podemos levar, tranquilos, a nossa vidinha e há-dem continuar a tratar de nós e a zelar por nós aqueles que são eleitos e pagos para isso; e que nada fazer não faz mal, porque quem se tramou foi sempre quem fez alguma coisa.

Como, sabe-se lá porquê, nesta nossa terrinha o indispensável Direito não é ensinado nos níveis escolares mais básicos nem nos assim-assim, a maior parte das gentes continua convencida de que o que dá cadeia é fazer o que não se pode, não lhes passando pela cabeça que quem não faz o que pode por quem se encontra em estado de necessidade é igualmente punível ou, na linguagem que melhor entendem, pode ir dentro.

 

SEF Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
3. O Hábito que o Português Partilha com a Avestruz

Um emigrante ucraniano encontrou a morte em circunstâncias nada humilhantes para ele, mas que o são profundamente para cada um de nós.

Havia indícios quase insofismáveis de que, naquele dia no Aeroporto Humberto Delgado, vários cidadãos alistados nas fileiras do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou ao serviço de entidades externas por ele contratadas tinham estado em situação de ter intervindo ou, pelo menos, de ter pedido ajuda para aquilo que, pelos gritos do infeliz, era impossível não desconfiar que estaria a acontecer.

Pois, apesar disso e vá lá saber-se porquê – talvez por estarem os seus funcionários ainda imbuídos do tal temor do caciquismo que inquina quer ditaduras, quer supostas democracias como a nossa -, optou o Ministério Público por não acusar esses portugueses pelo menos por omissão de auxílio, crime punível com pena de prisão até um ano nos termos do n.º 1 do art.200º do Código Penal Português, já para não falar de eventuais cumplicidades ou conluios, passíveis de bem mais pesada sanção.

Teve, assim, de ser o tribunal que, em primeira instância, julgou e condenou os agressores diretos e por ele condenados de deixar claro que "há um conjunto de pessoas cuja atuação não fica isenta de reparos *)" e determinado a extração das correspondentes certidões e subsequente remessa ao Ministério Público para que contra elas os cabíveis inquéritos-crime instaurasse.

Vem, então, agora a imprensa anunciar, com fanfarra e bandeira, que “o Ministério Público (MP) está a dar passos no sentido de vir a sentar no banco dos réus mais pessoas pela morte de Ihor Homenyuk no Aeroporto de Lisboa *)”, como se o Órgão Judiciário o houvesse feito espontaneamente, adequadamente, como lhe competia, sem esperar, do tribunal, o implícito e nada elogioso reparo.

Que razões estarão na base daquilo que poderá não ter passado de uma tentativa de resolver rapidamente e com o menor prejuízo para um certo e já desacreditado governante a questão?

 

4. A Cultura da Indiferença

Ihor Homenyuk Se o problema for encarado de um ponto de vista meramente casuístico, o Tribunal fez, do ponto de vista técnico-jurídico, o que lhe competia fazer, ao determinar a extração de certidões.

Poderemos, porém, acalentar alguma esperança de que episódios pontuais e isolados como este contribuam, ainda que só um pouco, para uma mudança de mentalidades cada vez mais indispensável num país desgovernado por desgovernados autoproclamados governantes que, magistralmente aproveitando a velhinha cultura social herdada da ditadura, continuam a permitir que coisas com esta aconteçam, que a cultura da indiferença se sobreponha, quase sempre, à cultura humanista pela qual que o Partido Socialista diz pugnar e que, se a memória me não falha, noutros tempos, era apanágio de quantos nele escolhiam militar?

Que chegou ao Partido, ao Governo, ao Parlamento a indiferença pelas pessoas, por tudo quanto não seja ganhar a próxima eleição já todos sabemos. Disso tivemos, uma vez mais, a confirmação quando, num curto espaço de tempo, soubemos que as viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do Ambiente e do Primeiro-Ministro andam para aí a abrir que nem loucas nas autoestradas – só? – em situações que a lei está longe de contemplar, descarregando alguns dos mui ilustres transportados, quando apertados pelos jornalistas, a culpa para cima de motoristas que, agindo na melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para ao patrão agradar, para manter o lugar: tal como alguns inspetores e seguranças do SEF ficaram calados ao ouvir o grito de morte de Ihor Homenyuk para aos superiores não desagradar, para o emprego não arriscar.

Quando a impunidade e a indiferença servem que nem uma luva a quem governa e delas não parece ter capacidade ou vontade para se livrar, quanto à tal indispensável e urgente mudança de mentalidades, o que podemos, efetivamente, esperar?

Mas como estas penas se ouvem tantas vezes e nunca se veem,
são tão mal cridas, como nós estamos experimentando

* *

Tudo isto radica, naturalmente, na clamorosa falta de sentido de estado de que enferma boa parte da chamada classe política portuguesa.

(continua aqui)

sábado, 3 de abril de 2021


Quero Ser Feliz!

(Introdução à Secção ‘Sociedade’)

"O que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade
consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe,
realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém,
por nossa causa, acabar por perder"

Recebi há dias, na caixa de correio eletrónico, uma mensagem a informar de que vinha a caminho “a encomenda da sua felicidade”, assim se designando, pelos vistos, uma coisa qualquer indiferenciada e sem importância que, por força do dever geral de recolhimento, me vi na contingência de ter de encomendar em vez de, como habitualmente, ir à loja buscar.

Mas, a quem tem de estar fechado em casa, que espécie de felicidade é que uma banalidade daquelas poderia trazer?  Por que razão há de um fornecedor entender que qualquer coisa que venda, mesmo meia dúzia de esferográficas, é suscetível de causar felicidade?  O que é, para estas pessoas, essa tão ambicionada felicidade?

O conceito de felicidade é dos mais difíceis de definir claramente:  para uns, um momento; para outros, uma época; para outros ainda uma quimera, uma mera ilusão.  Para uns, esfusiante alegria; para outros, simples bem-estar; para outros, apenas que a saúde e a mesa não causem preocupação.

Nos tempos que correm, porém, os mais fiéis sinónimos de felicidade parecem ser riqueza, prazer e ostentação, tudo isto orientado, de forma mais ou menos evidente, para o eterno eu, centro do Universo, e sem o qual todos os outros – os infelizes que não sabem ser felizes como eu – passarão a vida inteira de monco caído por não poder admirar e idolatrar alguém como… eu.

Eu sou assim”, estou “muito bem resolvido” e, como consigo irradiar toda essa felicidade, todos me amam, pelo que “estou muito orgulhoso de mim”; e, como tanto faço pelos outros, tudo quanto tenho “eu mereço”.

Balelas!

Tudo isto, herdado, porventura, do bem conhecido e mais subversivo dislate publicitário que os meus olhos e ouvidos alguma vez captaram e, provavelmente, captarão: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” - do qual me não lembro de que as tão sensíveis consciências cívicas que por aí andam alguma vez se tenham queixado; e, como o anúncio continuava a dar na televisão, provavelmente até o  cosmético embevecida e obedientemente  utilizavam e eram, até, capazes de elogiar.

Todavia, dizer que, se eu não gostar de mim, mais ninguém gostará não passa da defesa abjeta do cada um por si, do completo afastamento daquela entreajuda elementar que até os mais ferozes bichos sabem o que é, da absoluta negação de tudo quanto é social e, como tal, vital à manutenção da vida como por cá a conhecemos e, embora com bem necessárias melhorias, gostaríamos de continuar a conhecer.

Seja qual for a capacidade económica, muita desta gente que pensa unicamente em si - e, pateticamente, se leva muito a sério - não se limita à congratulação íntima e ao recatado usufruto daquilo que a carteira lhe permite adquirir: obriga, antes, o egocentrismo desmesurado a que os assim chamados sucessos sejam deliberada e pormenorizadamente esfregados na cara daquilo que, aos seus olhos embaciados por uma espécie de glamour parolo, não passa de uma mole de adeptos tão medíocres que jamais conseguirão imaginar quão pequena fração o pouco que têm representa do suculento bolo que os bem sucedidos empanturra - por não terem sido ensinados a digeri-lo.

Ao adquirir o bem não visam um prazer de uso ou qualquer outro tipo de vantagem que dele possam extrair: compram, simplesmente, a ideia de riqueza que subjaz à posse.

Por não saberem quanto a própria imagem é desoladora, estas autênticas marionetas animadas pelas mãos da vaidade cultivam-na obsessivamente, continuamente impondo, àqueles que não podem deixar de o ver, o desfile patético daquilo com que, raras vezes o dinheiro, muitas o crédito, algumas a troca de favores lhes permite obter, como as acessíveis e inevitáveis unhas de gel, o já não tão acessível conjunto da última moda que viram na revista da cabeleireira, a carripana das mais caras que o dinheiro pode comprar, um iate, um aviãozinho, a leiloada camisola transpirada pela prática desportiva de um notável qualquer.

Talvez inspirados por slogans irresponsáveis como "A Criar Excêntricos Todas as Semanas"*), da desbragada ostentação se não coíbem estes magníficos, estes narcisistas porventura indiferentes ao sofrimento alheio - porque não basta dizer que temos muita peninha... -,mesmo numa altura em que o Mundo inteiro sofre como poucas vezes terá sofrido, em que a miséria grassa, os hospitais transbordam por falta de meios, o medo espreita.  Não obstante, alguma legitimidade há que lhes reconhecer para pensar como pensam, já que nem em tão desoladora conjuntura deixam de ser idolatrados por adeptos com paupérrimas mentes e depauperadas algibeiras, integrados em famílias desesperadas que, para povoar o imaginário das suas vidas sem graça, continuam a depender da alheia e impressa ou televisionada ostentação.

Enfim, sendo a inconsciência o lar da verdadeira felicidade, a alguma dela sempre acharão estes tacanhos e desamparados amigos e seguidores que, embasbacando-se perante tamanha vulgaridade, lá acabaram por aceder - ignorando ou preferindo ignorar que, para aqueles que, com tanta luz, lhes queimam os olhos, cada um destes confrangedores basbaques não passa de “uma pinta num melão verde”.

- x -

Inesgotável manancial para um caricaturista, esta casta de salientes habita os mais diversos lugares - e vive em todos os estratos económicos e sociais -, mais não representando, todavia, do que o papel da sua própria personagem, numa carência de substância total ou quase total.  Apesar do efeito que sabem provocar nas suas plateias, domésticas ou universais, estas estranhas e superficiais pessoas não passam de aprendizes de ilusionistas, de desengraçados comediantes papagueando um mal-amanhado texto e esquecendo-se de que, como acontece com tudo na vida, chamar a atenção para nós mesmos, só é saudável até ao ponto preciso em que deixa de o ser.

A desmedida soberba ainda seria tolerável se, juntamente com a tralha que exibem, nos não impusessem aos olhos a desagradável imagem das suas personalidades e, pior ainda, aos ouvidos as palavras ocas e atiradas ao calhas que já nem pachorra temos para tentar entender.  Agora, e para cúmulo, alguns dos mais abastados até se deixam convencer de que sabem escrever, assim dando razão a quem diz que “com dinheiro no bolso somos sábios, elegantes e até sabemos cantar” - não se ralando minimamente com o facto de não saberem estar.

Trata-se, afinal, de pessoas que são aquilo que não mostram e mostram aquilo que não são, que não são aquilo que mostram e não mostram aquilo que são.  Mas, pelo menos, não macem, não se imponham, nem sequer apareçam: quem vive só para si mesmo, só consigo mesmo deve viver.

Isto, sejam os ditos poderosos políticos, funcionários corruptos, aldrabões profissionais, milionários feitos à pressa, medalhados da treta ou apresentadores arvorados em acionistas de canais de televisão sem particular apetência pelo cumprimento das suas contratuais obrigações, todos eles talvez nem sempre animados das mais nobres intenções e valendo-se da facilidade com que, fazendo-se servir dos mais modernos artifícios comunicacionais, mesmo à distância conseguem ir ganhando injustificada afeição, mormente junto das camadas menos instruídas e educadas da população.

Ou poderá tratar-se daqueles multimilionários que aprenderam a dar uns toques na bola, alguns deles de couro pouco cabeludo mas cheio de pinceladas surrealistas; daqueles que têm, ganham e não cessam de exibir centenas de milhões, evitam, por desconhecimento, as obrigações fiscais, e vêm de longe a longe, alardear na imprensa donativos de parcas centenas de milhar a uns bombeiros, a um hospital ou a um lar.  Não é por terem tido sucesso e conseguido molhar o pão na sopa que, uns ou outros, passaram a fazer parte dela, da mesma forma que uma mosca que aterra numa sopa de legumes não passa a ser um legume: continua a ser uma ridícula e indesejável mosca no meio da gamela.

Lá se vão, pois, esgadanhando uns aos outros esses infelizes na disputa do protagonismo essencial à manutenção dos fluxos monetários que abundantemente jorram da inesgotável fonte da publicidade ou dos fartos seios da República, e dos quais dependem para alimentar os monstros de vaidade em que, sem remédio, se vão transformando, já que “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros*) – coisa que toda a gente sabe mas custa muitos votos dizer.

Fariam bem os teóricos e os politicamente corretos em ter em conta, nos seus comentários, recomendações e decisões, que há muita gente assim; e que muitos deles querem ser felizes, à maneira deles, comprando, ostentando, fazendo mal, ora ourados com a glória assegurada pela simples posse, ora transidos de medo de que lhes reduzam o agasalho ou lhes penhorem os brinquedos que tanto gostam de assoalhar.

Toda esta oca palermice de acenar com muitos bens, com muito eu, aos muitos fans – em inglês, que é mais chic -, aos muitos amigos das armadilhas (perdão: redes!) sociais, não passa da eterna busca pela felicidade; mas é uma busca enviesada e vã, já que os que mais se esforçam por mostrar o quanto são amados, são, quase sempre, os mais infelizes, também: apesar da aura de infuencers, de orientadores espirituais da gulodice dos outros, estes lastimáveis seres, ao mesmo tempo que explodem em simulada alegria, muitas vezes implodem em profunda dor no mais íntimo dos seus corações.

- x -

Mal ou bem, ensinaram-me que ser respeitável não é ter direito ao respeito dos outros, mas sim merecê-lo - coisa que em certos espíritos parece ter grande dificuldade em entrar, já que, seja qual for o nível de vida ou a dimensão da bolha de empréstimos, toda a atividade do cérebro empobrecido de quem se maravilha com a sua pessoa parece focar-se na incontrolável necessidade de causar inveja junto dos atentos e obrigados veneradores que se esgorjam por mostrar que conhecem todos os seus importantes segredos para, pressurosamente, depois os bichanar ao ouvido do vizinho.

Boa, ‘Miga, vão morrer de inveja!” parece ser a frase preferida desta trupe cada vez mais preponderante num país que, a acreditar nos Censos, é maioritariamente cristão e no qual, paradoxalmente, tanta gente parece empenhar-se em fomentar nos outros a prática do um pecado mortal da inveja.

Quando a montanha de notas não tem cume, não deixam estes alpinistas de ter alguma razão, na medida em que estão mesmo a pedi-las aqueles que, tão longe da realidade dos seus ídolos, nem inveja deles e das coisas deles conseguem sentir, já que não é possível invejar algo de nós tão distante que nem logramos vislumbrar sua real dimensão.

Já quando, pelo contrário, as poucas notas que há em casa pertencem todas ao banco ou nem dão para aconchegar a carteira, as canseiras a que os mais pequenos se dão para imitar os poderosos apenas os fazem parecer ainda mais pequeninos, pobretes, mais ridículas, e desproporcionadas as suas pretensões.

Para estes e para aqueles que, apesar de afortunados, são menos dados a essas coisas da inveja e da ostentação, a felicidade não passa da animalesca maximização do usufruto dos bens efémeros a que conseguem aceder, muitos dos quais acabam por ficar na posse de quem, para eles os poderem comprar, caiu na asneira de o dinheiro emprestar.  Também há, é claro, as cirurgias plásticas sem fim, as dependências do mesmo género, os casos dramáticos, as histórias que acabam mal, que toda a gente conhece e de que, por isso mesmo, nem vale a pena aqui falar.

Sempre haverá gente que, mesmo quando se acha feliz, continuará a ambicionar sê-lo ainda mais, em lugar de pensar em passar a dedicar-se à felicidade dos outros.  Gente que sempre confundirá felicidade com facilidade em todos os momentos da vida, e cada vez mais.  Trata-se da abissal diferença entre o ser relativamente feliz e o procurar, ao menos, por uns breves momentos, sentir-se feliz, contentando-se com isso, que já não é nada mau (sei que, a pensar assim, não vou longe, mas apontem à vontade o dedo à minha falta de ambição, a qual prefiro, de longe, a ser adjetivado de algumas outras formas).

"Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas; então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade do dever cumprido".

No entanto, o que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe, realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém, por nossa causa, acabar por perder: perdem os que não ganham, os que são roubados, os enganados, os que pasmam embevecidos ou embasbacados, os que passam a vida infelizes, à espera de acabar.

Nestes conturbados tempos, alguém mais exposto ou vulnerável também perde quando outro alguém fica feliz por ter conseguido uma não planeada picadela de seringa, e alguns inocentes perdem quando outro alguém consegue trazer, como sobra de uma jantarada fora com amigos ou de um bacanal, um microscópico bicharoco cheio de perninhas, da família dos Covid Portugal, seus primos brasileiros, africanos ou ingleses, que, generosamente, esse inocente irá partilhar com quem ao caminho se lhe cruzar, durante ou depois do tal jantar.

- x -

A felicidade está, ou não está, em nós próprios:  é insano contar que no-la deem outros que a querem para eles. O segredo para sermos felizes é saber voar com os pés no chão, desejar, apenas, aquilo que, naturalmente, podemos alcançar ou ter sem, para tanto, coisas bem mais importantes termos de sacrificar.

Não vale, também, a pena tentar compensar com o dinheiro e com o corpo a debilidade do espírito: só é especial quem o é para os outros, quem busca a felicidade procurando fazer do mundo que o rodeia uma feliz cidade.

Ser especial para si mesmo é nada.  Ser especial é darmo-nos; e darmo-nos não é fazer pelos outros aquilo que nos apetece, se e quando nos apetece – mesmo que não apeteça a eles.

Quando não ligamos aos outros, não podemos legitimamente esperar que liguem a nós.

Esta indiferença faz com que, cada vez mais, experimentemos o medo, o pânico próprios de um ser frágil e dependente como o humano, muito especialmente quando, por ignorarmos os outros, acabamos por nos sentir cada vez mais... sós.

sábado, 6 de março de 2021


O Menino das Rãs (conto infantil para adultos)


"Quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;
quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;
e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar"


Era uma vez um menino que nasceu numa aldeia por onde corria uma ribeira que tinha rãs.

Os pais tinham pouco dinheiro e o menino não ia à escola.

Como ele, muitos outros meninos do povo não podiam ir à escola;  mas, ao contrário dele, alguns outros meninos esforçaram-se, mesmo assim, por aprender fora da escola e chegaram, até, a dirigentes do Clube dos Meninos da Aldeia.

O nosso menino, no entanto, não era só pobre: era, também, pouco inteligente, embora se julgasse esperto como, também, alguns dos demais.

Ora, como acontece com meninos pouco inteligentes que procuram, com a esperteza, compensar o que da outra lhes falta, tratou o menino de pensar na melhor maneira de se salientar, de sobressair, de se exibir.

Pensou, pensou… e, de tanto pensar, pensou que era filósofo, como acabava por acontecer com boa parte de outros meninos que também passavam o tempo a pensar.

Vai daí, arranjou uma folha de papel, muito grande, muito grande, onde ia escrevendo as suas ideias, que lhe pareciam cada vez mais brilhantes, e das quais ele achava que era uma pena que todos os outros meninos não tomassem conhecimento para, assim, viverem mais felizes por aprenderem com ele, que pouco ou nada sabia.

Depois de escrever cada pérola de sabedoria, dobrava a folha e punha-a num bolso do casaco, contente com a sua habilidade.

- x -

De tanto pensar, um dia, pensou, até, que, quando subia o passeio do lado direito da sua rua, os carros estacionados desse lado ficavam à sua esquerda, e que, quando descia a rua, os mesmos carros que, quando a subia, ficavam à sua esquerda, continuavam, ao descer, à esquerda também.

Animado com tão espantosa descoberta, e porque se tratava de esquerda e de direita, achou-se predestinado à Política.

Lá arranjou, então, meia dúzia de amiguinhos também do povo a que dizia pertencer, e com eles fez um grupinho de apoio que conseguiu as assinaturas necessárias a que o menino pudesse candidatar-se a Presidente do Clube dos Meninos da Aldeia. É que ele achava que, se os outros que lá estavam e, dentro ou fora da escola, tinham estudado para se preparar para o desempenho do alto cargo, ele, embora fosse burrinho e nem competência tivesse para mandar nos seus poucos brinquedos, também tinha o direito de lá estar.

Tinha direito, apenas porque sim, e porque a campanha eleitoral seria a melhor maneira de mostrar que era o que não era, uma oportunidade única para se pavonear, e não porque estivesse minimamente preparado para ocupar o lugar ou preocupado com o serviço que, aos outros meninos, poderia esperar-se que viesse a prestar.

- x -

Ora, para a presidência do Clube, havia, além do presidente atual, outros meninos candidatos, os tais que tinham estudado e que seria mais provável estarem à altura do que a função lhes exigia do que o menino armado em filósofo que mal duas frases seguidas sem chavões – ou pérolas tiradas do papel que sempre trazia no bolso - conseguia articular.

Tinha, por essa altura, a rádio local organizado conversas dos outros meninos candidatos, dois a dois, sobre as propostas que as respetivas candidaturas tinham a apresentar. Mas, como o menino da nossa história não dava duas para a caixa e já ninguém estava para o aturar, a rádio lá conseguiu desenterrar um qualquer critério jornalístico pacífico e plausível para, sem parecer muito mal, o menino não ser convidado a participar.

Isso, sim!! O menino tanto se queixou, tanto se lastimou, que a rádio lá arranjou uns minutos para, numa frequência menos ouvida, pôr o menino a, um a um, abusar da paciência dos outros meninos candidatos, sempre com aquele ar de ingenuidade bacoca e deslumbrada com o papel que estava a representar.

Todo contente, lá levou no bolso a grande folha de papel dobrado que, orgulhosamente, até mostrou ao atual presidente do Clube e recandidato, o qual que só lhe faltou tratar por tu; e lá despejou, para indisfarçável embaraço e tédio de cada um dos outros meninos e dos senhores da rádio que os entrevistavam, a habitual e infindável série de lugares comuns e de brocardos tirados da sua cabecinha pobre, respondendo, qual verdadeiro político e por falta de ideias das quais conseguisse falar trinta segundos seguidos, sempre ao lado daquilo que ainda lhe conseguiam perguntar.

Bom, nem sempre respondia ao lado:  quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;  quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;  e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar.

- x -

Claro está que o menino não foi eleito, e até teve menos votos do que da outra vez em que tinha obrigado os outros a ouvi-lo falar, porque, ao contrário do que dizia esperar, foram muito poucos os meninos parvos que caíram na asneira de sair de casa para nele votar.

Claro está, também, que valeu a pena candidatar-se – se valeu ! -, já que tal lhe permitiu, não só massajar vigorosamente o ego, como ganhar estatuto junto dos poucos meninos vaidosos, egoístas e espertalhões da tal aldeia onde havia rãs e de outras terras por ali perto.  Tudo isto, à custa do tempo sem qualquer interesse que fez perder à rádio local, do sacrifício da paciência dos que o ouviram – ou leram no jornal do Clube – e do dinheirão que, pelo duvidoso privilégio de ouvir as suas pérolas, a todos indiretamente fez pagar.

Afinal, para aqueles dias serem tão bons para o menino, por que não haviam todos os outros meninos de colaborar ?  Até ia parecer que não gostavam dele.  Mas gostavam, claro:  de tão brilhante menino filósofo, como não gostar ?

- x -

Como já não era a primeira vez que se candidatava, e aquilo até foi giro, o menino não tem, de então para cá, parado de continuar a encher a folha onde escreve as suas ideias mais vazias e disparatadas.

Para quê ?

É que, agora, o grupo de meninos que o apoiou nas eleições já se juntou num partido que até dá vontade de rir, de meninos como ele que querem ajudá-lo a mandar.

E as eleições para as secçõezinhas do Clube não vão tardar…

Uma coisa é certa:  a história do menino que brincava com as rãs não vai aqui acabar e, se não alteram rapidamente os Estatutos do Clube para o travar, ainda todos nós vamos ter muito que lhe aturar.