Mostrar mensagens com a etiqueta Direitos Humanos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Direitos Humanos. Mostrar todas as mensagens

sábado, 24 de julho de 2021


Coisas que Se Nos Colam à Pele

As viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do Ambiente
e do Primeiro-Ministro andam para aí
a abrir que nem loucas nas autoestradas,
descarregando alguns dos mui ilustres transportados, a culpa para cima de motoristas que,
agindo na melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para ao
patrão agradar


    1. Dos Vícios Tolerados e Seus Efeitos Expressamente Condenados
    2. “Não Me Comprometa
    3. O Hábito que o Português Partilha com a Avestruz
    4. A Cultura da Indiferença

  

Toxicodependência Droga
1. Dos Vícios Tolerados e Seus Efeitos Expressamente Condenados

Quando um bem conhecido norte-americano escreveu que “uma vez adquirido um hábito, ninguém deve lançá-lo pela janela, mas ampará-lo na descida, degrau a degrau *)” referia-se, por certo, àquelas coisas a que o nosso cérebro ou o nosso organismo se habituam a consumir sem qualquer benefício conhecido para eles.

Acontece com o álcool, com o tabaco e com uma infinidade de outros mais ou menos nocivos estupefacientes, causando aos ditos cérebro e organismo danos por vezes irreparáveis em proveito exclusivo de quantos fazem transbordar as respetivas bolsas graças à exploração do trabalho mal pago de largos milhares de desgraçados que dependem, para sobreviver, dos proventos de um trabalho quase escravo a que se sujeitam sabendo, embora, quão nocivo o resultado será para o chamado consumidor final daquilo que colhem, destilam ou refinam para sobreviver.

Não se referia, seguramente, o tal norte-americano a hábitos socialmente bem mais perniciosos, daqueles que não apenas prejudicam quem os adquire e uma ou outra vítima inocente do fumo do tabaco, de uma criminosa agressão que, por muito grave e condenável, nem por isso deixa de ser pontual ou, pelo menos, limitada no alvo e nos eventuais lesados por arrastamento ou proximidade. Isto, sabendo, como bem se sabe, que a proliferação de certos comportamentos ocasionais agressivos e de consequências inenarráveis, acabam por se tornar chagas sociais que cumpre e urge erradicar, sob pena de acabar completamente subvertida a ordem social.

Todos estes hábitos que são causa direta ou indireta de tão nefastos efeitos não deixam de gerar na comunidade a descontraída sensação – ou, pelo menos, a ilusão – de que sempre haverá como os desencorajar, como os controlar ou como os seus efeitos mitigar a ponto de o coletivo se não sentir ameaçado a menos que conheça um caso próximo ou lhe tenha sofrido os efeitos na pele.

Fora isso, não apenas são tais vícios tolerados, como até há quem tudo faça para tornar alguns deles socialmente naturais ou, no mínimo, considerados como devidos a doenças ditas comportamentais - embora nascidas de comportamentos censuráveis e evitáveis desde a génese -, por este processo meramente cosmético passando a ter a dignidade de patologias e tornando-se, pelo facto, os seus ditos portadores a merecer epítetos próprios de quem padece de verdadeiras e inevitáveis enfermidades, genéticas ou contraídas.

Passou, desta forma, a louvar-se o que é objetivamente condenável; e a promover-se, também.

 

2. “Não Me Comprometa

PIDE/DGS Existe, no entanto, algo bem mais grave que não tem raízes nos genes, ou na vontade de experimentar sentida por um adolescente desacompanhado, num inultrapassável desgosto de amor, no desespero de alguém que pensa que apenas lhe resta “dar de beber à dor”.

São coisas que se nos colam à pele, que estão culturalmente enraizadas e disseminadas por toda uma população habituada, durante décadas a fio, a ser governada e gerida por incompetentes e corruptos caciques numa ditadura plenamente assumida pelos seus protagonistas num pensamento lapidar: “Aqueles que concordarem com o programa da Ditadura praticam ato patriótico colaborando; os que não concordam são livres de proclamar a sua discordância mas, no que respeita a atuação política efetiva, evitaremos que nos incomodem demasiadamente”.

Colam-se à pele dessa população que, banida a ditadura, se foi, também há décadas a fio, habituando a ser governada e gerida, entre outros, por alguns incompetentes e corruptos caciques que só agora, graças à coragem e ousadia de uns quantos e a um agora mais apurado sentido de oportunidade política de outros, vão sendo desmascarados e, até, aqui e ali, efetivamente, confinados atrás de grades que nada têm a ver com as de uma pandemia.

A dependência do caciquismo labrego e bacoco dos tempos da famigerada PIDE/DGS continua, não obstante, a correr pelos caminhos portugueses, a correr da pena dos portugueses, a correr nas artérias e veias dos portugueses.

A miúfa endémica - eufemisticamente chamada temor ou respeito - por uma hierarquia superior que jamais o soube ser, continua a condicionar, a ditar a forma como os portugueses pensam, decidem, agem ou omitem, tentam alijar responsabilidades na crença que esperam não seja vã de que nada lhes aconteça e ninguém, pelo seu silêncio, os arrelie.

Um conhecido programa de humor de um País irmão incluía uma personagem que passava o tempo a dizer “Eu não fiz nada, meu Amigo, não sei nada, se disser que eu fiz eu nego, ene, é, gê, ô, n-e-g-oooo. Não me comprometa! *)”. Retratava esta convicção de que, não agindo, não nos manifestando, não tomando partido, não denunciando condutas que a lei proíbe, podemos levar, tranquilos, a nossa vidinha e há-dem continuar a tratar de nós e a zelar por nós aqueles que são eleitos e pagos para isso; e que nada fazer não faz mal, porque quem se tramou foi sempre quem fez alguma coisa.

Como, sabe-se lá porquê, nesta nossa terrinha o indispensável Direito não é ensinado nos níveis escolares mais básicos nem nos assim-assim, a maior parte das gentes continua convencida de que o que dá cadeia é fazer o que não se pode, não lhes passando pela cabeça que quem não faz o que pode por quem se encontra em estado de necessidade é igualmente punível ou, na linguagem que melhor entendem, pode ir dentro.

 

SEF Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
3. O Hábito que o Português Partilha com a Avestruz

Um emigrante ucraniano encontrou a morte em circunstâncias nada humilhantes para ele, mas que o são profundamente para cada um de nós.

Havia indícios quase insofismáveis de que, naquele dia no Aeroporto Humberto Delgado, vários cidadãos alistados nas fileiras do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou ao serviço de entidades externas por ele contratadas tinham estado em situação de ter intervindo ou, pelo menos, de ter pedido ajuda para aquilo que, pelos gritos do infeliz, era impossível não desconfiar que estaria a acontecer.

Pois, apesar disso e vá lá saber-se porquê – talvez por estarem os seus funcionários ainda imbuídos do tal temor do caciquismo que inquina quer ditaduras, quer supostas democracias como a nossa -, optou o Ministério Público por não acusar esses portugueses pelo menos por omissão de auxílio, crime punível com pena de prisão até um ano nos termos do n.º 1 do art.200º do Código Penal Português, já para não falar de eventuais cumplicidades ou conluios, passíveis de bem mais pesada sanção.

Teve, assim, de ser o tribunal que, em primeira instância, julgou e condenou os agressores diretos e por ele condenados de deixar claro que "há um conjunto de pessoas cuja atuação não fica isenta de reparos *)" e determinado a extração das correspondentes certidões e subsequente remessa ao Ministério Público para que contra elas os cabíveis inquéritos-crime instaurasse.

Vem, então, agora a imprensa anunciar, com fanfarra e bandeira, que “o Ministério Público (MP) está a dar passos no sentido de vir a sentar no banco dos réus mais pessoas pela morte de Ihor Homenyuk no Aeroporto de Lisboa *)”, como se o Órgão Judiciário o houvesse feito espontaneamente, adequadamente, como lhe competia, sem esperar, do tribunal, o implícito e nada elogioso reparo.

Que razões estarão na base daquilo que poderá não ter passado de uma tentativa de resolver rapidamente e com o menor prejuízo para um certo e já desacreditado governante a questão?

 

4. A Cultura da Indiferença

Ihor Homenyuk Se o problema for encarado de um ponto de vista meramente casuístico, o Tribunal fez, do ponto de vista técnico-jurídico, o que lhe competia fazer, ao determinar a extração de certidões.

Poderemos, porém, acalentar alguma esperança de que episódios pontuais e isolados como este contribuam, ainda que só um pouco, para uma mudança de mentalidades cada vez mais indispensável num país desgovernado por desgovernados autoproclamados governantes que, magistralmente aproveitando a velhinha cultura social herdada da ditadura, continuam a permitir que coisas com esta aconteçam, que a cultura da indiferença se sobreponha, quase sempre, à cultura humanista pela qual que o Partido Socialista diz pugnar e que, se a memória me não falha, noutros tempos, era apanágio de quantos nele escolhiam militar?

Que chegou ao Partido, ao Governo, ao Parlamento a indiferença pelas pessoas, por tudo quanto não seja ganhar a próxima eleição já todos sabemos. Disso tivemos, uma vez mais, a confirmação quando, num curto espaço de tempo, soubemos que as viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do Ambiente e do Primeiro-Ministro andam para aí a abrir que nem loucas nas autoestradas – só? – em situações que a lei está longe de contemplar, descarregando alguns dos mui ilustres transportados, quando apertados pelos jornalistas, a culpa para cima de motoristas que, agindo na melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para ao patrão agradar, para manter o lugar: tal como alguns inspetores e seguranças do SEF ficaram calados ao ouvir o grito de morte de Ihor Homenyuk para aos superiores não desagradar, para o emprego não arriscar.

Quando a impunidade e a indiferença servem que nem uma luva a quem governa e delas não parece ter capacidade ou vontade para se livrar, quanto à tal indispensável e urgente mudança de mentalidades, o que podemos, efetivamente, esperar?

Mas como estas penas se ouvem tantas vezes e nunca se veem,
são tão mal cridas, como nós estamos experimentando

* *

Tudo isto radica, naturalmente, na clamorosa falta de sentido de estado de que enferma boa parte da chamada classe política portuguesa.

(continua aqui)

sábado, 26 de junho de 2021


Racismo: O Homem Cor de Rosa


"Tal como é condenável a rejeição liminar de um ser humano
por outro que dele difere num aspeto ou noutro,
também se não pode, a coberto de uma falsa ideia daquilo que é
ou deixa de ser politicamente correto, fechar os olhos a desmandos e ilicitudes
que a ninguém podem ser permitidos porque, muito simplesmente,
são contrários ao costume e, acima de tudo, à lei que a todos deve obrigar
"


     1. O Ideal Cor-de-Rosa
     2. Causas Remotas do Racismo em Portugal
     3. O Escandaloso e Falso Mito da Inferioridade Intelectual do Negro
     4. Excessos no Ataque ao Racismo e Tiros no Pé
     5. A Aberrante Linguagem Pseudo-Inclusiva
     6. Ambiguidade à Esquerda
     7. O Estafado Chavão das Quotas
     8. Não Há Negros Comunistas? Ou Só Faltam na Polícia?
     9. O Dever Universal de Respeitar o Próximo
   10. Conclusão


O Homem Cor de Rosa

1. O Ideal Cor-de-Rosa

Partilho do ideal da superioridade do branco.

O branco é alvo, puro, superior, calmo, tranquilo, positivo, alegre, desinfetado e dá até aquela ideia de muito limpinho que fica bem em qualquer lado; e é, por isso, a cor quase sempre escolhida para representar os mais puros sentimentos, as mais angélicas criaturas, os mais sofisticados ambientes e lugares.

O branco resulta da junção de todas as cores, reúne em si quanto de alegre, de puro e por aí fora existe na natureza: o branco é, todo ele, seriedade, honestidade, integridade, generosidade, amabilidade.  O homem branco não comete crimes, acode a quem precisa, não se porta mal, é educado, devendo ser por todos seguido, cuidado, acarinhado, protegido, até privilegiado, preferido, idolatrado.

Quando um dia encontrar um homem branco – entenda-se, de alma branca -, não me vou limitar a olhar para ele:  vou segui-lo, vou observá-lo, vou escutá-lo, vou procurar imitá-lo no que puder. Porque uma alma branca, pura é um exemplo para quantos, como todos nós, a têm de outra cor.

- x -

Acontece, porém, que, tal como ocorre com as almas, também na pele não há homens brancos - a não ser, porventura, um herói wagneriano, o palhaço rico ou um daqueles infelizes que ganham a vida a simular estátuas, contendo as comichões e retendo o fôlego a troco da pequena esmola atirada pelos basbaques do costume para uma esfarelada caixinha de cartão*).

Pela minha parte, tendo, no Verão, para o acastanhado e, no Inverno, para algo a puxar para o cor-de-rosa.  Mas não me importaria de ser até verde como os marcianos, porque, quando falamos da cor da pele, o ideal do homem branco é um perfeito disparate, como o é o do homem preto.  A cor da pele não é, nem faz sentido ser, um ideal.

O problema dos racismos, venham de onde vierem, não me parece estar na cor ou no tom da pele, antes residindo na convicção de alguns, mais centrados em si mesmos, de que os seres humanos se dividem, unicamente, em dois mundos: o mais restrito grupo dos que são como nós, e o dos outros, aqueles que não apreciamos, não valorizamos, nos incomodam, nos inquietam e nos desagradam. Não por qualquer razão específica - como o tom da pele, que até pode ser igual ao nosso -, mas, simplesmente, por não serem como gostaríamos que toda a gente fosse: igual a nós.

Lidamos muito mal com a diferença
A verdade é que, embora sejamos todos diferentes, lidamos muito mal com a diferença, a ponto de nos sentirmos ameaçados por ela. Admiramos e invejamos os que consideramos maiores do que nós, e desprezamos os que consideramos menores do que nós; e tememos os que consideramos ao mesmo nível que nós, mas são diferentes de nós e, se nos apanham distraídos, possivelmente irão subir a pulso por cima de nós.

A par do primário instinto de sobrevivência, mostra a experiência que o patético deslumbre pelo próprio umbigo – seja o seu barrigudo proprietário branco, amarelo, encarnado, preto ou às riscas cor de rosa e azuis - pode, com alguma facilidade, evoluir para patologias sociais com raiz na tendência quase generalizada para nos assustarmos com as diferenças que abalam a concha, a redoma a que é agora uso chamar-se zona de conforto.

Não conhecemos, não estamos habituados, não nos interessa, estamos muito bem assim, vão lá para as terras deles antes que isto acabe por dar para o torto porque com esta gente nunca se sabe” parece exprimir o egoísmo dominante, porventura justificado, em parte, pelo temor alimentado pela desenfreada proliferação de formas de conduta censuráveis nas populações de qualquer parte do Mundo.

Esquecemo-nos de que recear alguém ou a sua influência é sentirmo-nos inseguros perante esse alguém – logo, inferiores a ele -, o que à partida anula qualquer veleidade de supremacia de determinado grupo social ou étnico sobre outro ou outros, já que, quem teme algo ou alguém, nunca pode considerar-se-lhe superior; nem é.

Lembremo-nos, também, de que, não só não existem homens pretos ou brancos ou de qualquer outra cor absolutamente definida, como muitas vezes é, na prática, no que toca a negros e brancos quase impossível discernir onde acaba o castanho e começa o cor-de-rosa ; e vice-versa. A despeito da altura, do peso, da cor da pele e do mau feitio ou não tão mau assim, ninguém é o que quer que seja além da própria essência e dos acertos que a vida nela fez.

Penso, assim, que haveria, para uns e outros, uma certa vantagem em procurar esgravatar um pouco as profundezas das causas, das origens de tão tenebrosa problemática, de toda esta estupidez racista - cientes, embora, do eventual dano para a oportunidade única que a sua exploração política oferece a certos partidos que desesperam na demanda de causas que lhes permitam equilibrar-se numa cada vez mais periclitante balança eleitoral.

Causas Remotas do Racismo em Portugal

2. Causas Remotas do Racismo em Portugal

Racismo Não!” é boa ideia, está muito bem; mas, se for dirigido a seres inteligentes, há que explicar por que é que “Racismo Não!”, ou não passaremos do impasse, do preconceito rasteiro, da parvoíce do “ambos temos razão, porque tu dizes que sim e eu digo que não”: os pretos não gostarão dos brancos porque não, os brancos não gostarão dos pretos porque não, tal como um sportinguista não gosta do Benfica e um benfiquista não gosta do Sporting. "Porque não! *)"

Emoções à flor da pele, instintos, palermices. Onde leva isto? Não leva. São, apenas, manifestações tíbias de cérebros em permanente hibernação, que não levam a parte alguma, a não ser à mútua destruição.

No tempo em que os Up WithPeople *) cantavam What Color Is God’s Skin? *), um tuga cor de rosa olhava para um preto e associava-o, imediatamente a um dos mais indiferenciados trabalhadores da construção civil, dotados de menores ou de nenhumas habilitações ou literárias ou profissionais.

Esquecia-se, naturalmente, o mesmo homem cor de rosa de que era, precisamente, assim que o mais comum cidadão de qualquer país desenvolvido e recetor de imigrantes portugueses olhava para ele*), logo o associando aos mesmos baldes de massa e à picareta que ele, por sua vez, ao preto tinha por hábito associar – quando não ia ao ponto de lhos atirar à cara para o humilhar.

Esta eructação de impulsos primários e selváticos que a civilização, supostamente, serviria para anular ou, pelo menos, atenuar nos humanos, não passa, pois, de presunção e água benta, de um complexo de superioridade – ou será o contrário? - que tem muito mais a ver com diferenças económicas, sociais e culturais do que com um mais ou menos pigmentado tom de pele. Ou alguém se lembra de ouvir queixar-se de ser vítima de racismo um daqueles abastados cidadãos de origem africana que para cá vêm fazer grandes vidas e assoalhar a riqueza, fazendo os tugas pelintras babar-se de inveja, e os não tão pelintras bajulá-los na tentativa desesperada de captar-lhes os milhões que, em certos casos, por processos bem portugueses aprenderam a ganhar?

De África – porque o racismo em Portugal tem mais a ver com brancos europeus e pretos africanos -, parece existir a ideia distorcida de que só para cá vêm os muito pobres e ignorantes ou os muito ricos e poderosos, porque só de uns e de outros se fala: uns como matéria-prima de quem tudo faz para se salientar agitando freneticamente a bandeira do racismo, os outros também nem sempre pelas melhores razões.

Up With People
Bem sabemos, porém, que não é assim: residem hoje em Portugal milhares de pessoas que para cá migraram vindas dessas paragens ou que desses primeiros migrantes descendem, e vivem hoje integradas na sociedade e na cultura portuguesas sem que isso implique o esquecer e, muito menos, o renegar das origens que legitimamente cuidam de perpetuar e de divulgar na sua nova terra. Divulgar, mas em plena liberdade, entenda-se, sem impor, já que, tal como não posso ser obrigado a gostar de cachupa*) ou a ouvir com agrado música africana, ninguém é obrigado a gramar o meu Beethoven, ou a deliciar-se com umas sardinhas acabadinhas de assar; e a ninguém assiste o direito de, a pretexto do direito de impingir a sua cultura, uns ou outros incomodar.


3. O Escandaloso e Falso Mito da Inferioridade Intelectual do Negro

Defendem, por aí, certos partidos políticos emergentes a alegada supremacia branca, invocando terem estudos supostamente científicos concluído que, em média, a população negra é dotada de um quociente intelectual inferior ao do homem cor de rosa – ou ariano, expressão porventura suscetível de mais lhes agradar.

Ora, nos anos já não tão recentes, em que tais estudos terão sido levados a cabo, bem assim poderia acontecer, atendendo a que, durante tempos esquecidos, a segunda população alarvemente explorou a primeira e dela abusou, negando-lhe, entre tantas outras coisas, o acesso à educação e à formação, logo, a meios essenciais ao adequado desenvolvimento das capacidades intelectuais latentes.

Não nos esqueçamos de que, tal como acontece com os músculos, o cérebro também só se desenvolve se for estimulado, se trabalhos exigentes lhe forem solicitados, o que não é, seguramente, compatível com a brutalidade da escravatura e, abolida esta, com a exploração do trabalho braçal mal remunerado e apartado de qualquer formação, específica ou não – do qual, atualmente e por razões alheias à cor da pele, podem queixar-se pretosbrancos e de qualquer outra cor, sem distinção.

A serem esses estudos efetivamente científicos, e a ser acertada e validada a respetiva conclusão, esse défice, em média, de capacidade intelectual nada teria, pois, a ver com a raça, com a cor da pele, mas sim com a vida miserável imposta a seres humanos por seres supostamente humanos que, em lugar de pedir desculpa, ainda daqueles o infortúnio vêm mofar.

O Escandaloso e Falso Mito da Inferioridade Intelectual do Negro
Acontece, porém, que, mesmo nos já estereotipados e preconceituosos inícios do século XX, se escrevia que “a raça negra não é certamente das mais mal dotadas da humanidade. O negro tem, geralmente, uma imaginação viva, aprende depressa, é sangüíneo, sensual, não é mau no fundo, é muito impulsivo mas pouco perseverante. Assinala-se o seu gôsto do extravagante e o desordenado das suas ideias; aliás falta-lhe a energia necessária para tirar partido das suas capacidades intelectuais. Os negros não são selvagens: formam estados e têm até grandes cidades. As guerras crueis e o tráfico de escravos perturbam-lhes o estado social1.

Ademais, se é verdade que não foi entre a população negra que, mormente por falta de condições, primeiro singraram a investigação científica e o desenvolvimento industrial, não nos esqueçamos de que tal epifania também não terá acontecido, propriamente, em Portugal... o que não impede que, com o andar do tempo, cada vez mais migrantes africanos e portugueses europeus se tornem proeminentes na ciência, na técnica, na gestão bancária e em altos cargos políticos de projeção universal.

Como os tempos recentes parecem vir, insofismavelmente, demonstrando, a situação inicial de eventual maior capacidade – efetiva, prática, oportunista - da população cor de rosa, acaba, até, por se inverter em presença de negros em situações de igualdade de oportunidades e de circunstâncias, tornando legítimo acreditar que, com a explosão da Internet e com o acesso generalizado à informação que ela proporciona – lida por olhos pretos, castanhos, verdes, azuis e outros -, tudo tenderá a homogeneizar-se; e tenderá, também, a desaparecer a última motivação para a existência dessa coisa insana chamada racismo.

 

4. Excessos no Ataque ao Racismo e Tiros no Pé

A própria necessidade de alguns passarem a vida a dizer que existe racismo sugere que ele cada vez menos é sentido, cada vez mais nos olhamos como iguais, e que, abstraindo da exploração mediática levada a cabo por certos partidos políticos e seus satélites, não é já tão intensa assim a implementação, na sociedade, do abominável estigma.

Existem, no entanto, obstáculos sérios à diluição e, desejavelmente, à erradicação da própria ideia de racismo, até chegar ao ponto de dele passarmos a falar como hoje nos referimos à tuberculose ou a outro mal extinto qualquer. Se, tão cedo, se não extinguir completamente, isso bem poderá ficar a dever-se à exaltação do racismo que acaba por acontecer como reação a excessos no ataque ao racismo, ao permanente radicalismo com que o tema é tratado por aqueles que se ensoberbecem ou politicamente sobrevivem à custa do combate que, de forma mais ou menos arrojada, dizem fazer-lhe.

Excessos no Ataque ao Racismo e Tiros no Pé

Para começar: porquê esta mania de evitar dizer pretos ou negros, preferindo cidadãos de origem africana? Será que quem assim fala também vê filmes de “cowboys e cidadãos de origem americana”?

Eu, que sou cor de rosa, cara-pálida, não fico particularmente feliz quando dizem que sou branco ou, sequer, caucasiano, mas não me sinto por isso discriminado, perseguido. Importa a forma como trato os outros e eles me tratam. O resto, a forma como, sem má intenção, me chamam, não tem qualquer importância.

Dado que, com já disse, não há, entre os humanos, pretos nem brancos, nenhum dos termos tem correspondência na realidade, pelo que incomodarmo-nos com estes pormenores de linguagem não passa de tiros no pé, de atroz e primária patetice, fortemente favorável à causa de quem pretende, da essência do tema, desviar-nos a atenção.

Cidadãos de origem africana é, além de ridículo, fortemente inexato e discriminatório relativamente aos outros negros: não importa, então, o racismo dirigido, por exemplo, a negros timorenses ou jamaicanos? Ou estará, quem utiliza aquela expressão, a referir-se, também, aos brancos africanos? Que importa ser eu um cidadão de origem europeia ou de outro continente qualquer? E que importa chamarem-me brancocaucasiano ou cara-pálida, ou outros serem chamados pretosnegros ou de cor?

Ou vamos ter de adotar designações como a localidade Paço dos Cidadãos de Origem Africana *), a Rua do Poço dos Cidadãos de Origem Africana *)… a Loja do Gato de Origem Africana *)? Ou vamos a Sintra comprar queijadas à Casa do Cidadão de Origem Africana *)? Vamos ter de mudar o nome da nossa Avó Branquinha? Ou da Dona Branca *)? Deverá a personagem de Walt Disney passar a chamar-se Mancha de Origem Africana *)?

O que importa não é o vocábulo utilizado, mas a intenção com que um termo é escrito ou proferido: referirmo-nos a alguém como branco ou como preto ou como qualquer que seja a cor, é um inaceitável ato racista e discriminatório se o fizermos com acinte. Já falar, genericamente, de brancos ou de pretos, ou de um branco ou de um preto pode, em certos casos, não passar de uma incorreção verbal, concetual - e, se quisermos, social -, apenas nessa medida censurável, como tantas outras incorreções.

A expressão “bando de preto safado” não passa de uma demonstração abjeta de racismo primário e virulento; mas punir um desportista apenas porque chamou a um amigo “meu preto querido” é radical tontice*), perseguição intolerável que mais não faz do que desvalorizar a causa nobre do combate à discriminação.


A Aberrante e Contraproducente Linguagem Inclusiva
5. A Aberrante e Contraproducente Linguagem Inclusiva

A propósito, toda esta imbecilidade da aberração gramatical chamada linguagem inclusiva *) dos “amigues”, do ”cartão de cidadania” ou do “Cart@o de Cidad@o” – como já escrevi*)–, e dos “cidadãos de origem africana” não passa de uma invenção destinada a, de forma contraproducente, potenciar uma ação já de si tímida e ineficaz, que se resume a apelos aparentemente desesperados por parte desta nova geração de partidos mendicantes, que não perdem um pretexto para procurar confundir exigência vã com causa verdadeira, assim procurando captar a esmola de mais um precioso voto junto dos seus mais ou menos esgrouviados e aluados simpatizantes.

Nestas coisas, como em tantas outras e sem desvalorizar o rigor da expressão, o que conta é o conteúdo e a intenção com que é expresso, o que se diz, e não tanto a forma como se diz.

A simples ideia de inclusão é, aliás, aberrante e contraproducente, já que, pelo simples facto de existir, ela própria reconhece a existência de diferenças entre pessoas: não é necessário esforçarmo-nos por incluir o já faz parte por ser genuinamente igual. No caso do intolerável racismo, ao falar de cidadãos de origem africana, o que estamos, efetivamente – e impropriamente -, a dizer é: "pessoas que, como nasceram em África e têm a pele escura, não são como nós".

Será que, agora, além de preto dizer negro também é racismo? Que, em vez de chocolate preto ou negro, vou ter de passar a pedir chocolate de origem africanamesmo sabendo que o cacau que maioritariamente o compõe é originário da América do Sul*)?

Ou irão chamar-me racista se não gostar de chocolate negro? E, se não gostar de chocolate branco, também vão? Chocolate negro parece ser a alternativa dita inclusiva a chocolate preto. E a alternativa inclusiva a chocolate branco? Qual é? Chocolate alvoCor de rosa?

O que há de condenável em preto que não há em negro, quando, com qualquer dos termos, queremos significar precisamente a mesma coisa? Ou entre branco e alvo? Ou entre o cidadão de origem europeia e o cidadão de origem africana?


6. O Estafado Chavão das Quotas

Depois, se não se vê assim tantos negros na Polícia, isso deve-se, muito provavelmente, ao facto de, com toda a naturalidade e toda a legitimidade, uma menor quantidade deles se ter interessado por uma profissão que, pelos vistos, mais seduz os cor de rosa como eu, hipótese elementar que, de tão natural, apenas poderá ser afastada da mente do homem médio em presença de prova que demonstre que, às forças de segurança, concorreram muitos cidadãos de origem africana e que foram eles rejeitados sem válida razão.

Ou será que, para ficarem mais garridas as cores das bandeiras de certos movimentos e partidos, todos, independentemente da cor da pele, devemos interessar-nos igualmente por todas as profissões? Vamos começar a impor quotas também para obrigar igual quantidade de negros, amarelos, encarnados, brancos e verdes a dedicar-se a cada ocupação, a isso chamando combate ao racismo estrutural e institucional? Ensandeceram todos?

Combate ao Racismo Estrutural e Institucional
Se é abatido um branco ou um negro relativamente conhecido*), mas com reduzida notoriedade, será de estranhar ou de nos revoltarmos pelo simples facto de os meios de comunicação não haverem dado ao facto uma cobertura sensacional? A comunicação social vive, hoje em dia, da espetacularidade da notícia, que lhe assegura o ganha-pão, não lhe interessando fazer favores à causa deste ou daquele, nem a injustificada discriminação positiva exaltaria tal causa como quer que fosse - além do que é, manifestamente, abusivo conotar com racismo a expressão “volta para a tua terra”, também usual e frequente entre caucasianos autóctones que, com razão ou sem ela, se sentem incomodados por alguma atitude de caucasianos forasteirospor parte de tugas xenófobos dirigindo-se a brancos estrangeiros*).

Será, digam-me lá, com patetices destas que pretendem, junto de seres um bocadinho menos irracionais, romper a crosta da indiferença, acender a chama da adesão? O que importa é proibir a discriminação, e não, mediante a imposição de quotas, promover a incompetência e a desmotivação.

Fala esta boa gente, dos movimentos e dos partidos, de liberdade e de autodeterminação…

 

7. Ambiguidade à Esquerda

Não vejo qualquer mal em, num dia por ano, as camisolas dos jogadores de futebol intervenientes em desafios televisionados ostentarem, em lugar do nome de cada um, os dizeres “Racismo Não *); já a defesa cega e repetitiva ad nauseam de slogans associados a uma causa só a prejudica, como os partidos radicais e as associações vocacionadas*) bem deveriam saber.

Por outro lado, se seres humanos superiores existirem, serão certamente aqueles que se aproximam dos outros neles buscando afinidades intelectuais e espirituais, assim procurando enriquecer-se culturalmente, e não os que se furtam a, ao menos, encará-los só porque são diversos a capacidade económica, os dotes intelectuais, o substrato cultural, o local de residência, as vestes que envergam, o tom da epiderme, assim se envolvendo numa demonstração das mais básicas intolerância e estupidez, próprias dos espíritos pequeninos que por aí vemos embrulhados qualquer cor de pele.

Aliás, para lugares de responsabilidade, há por aí muito cor de rosa que, num processo de recrutamento e seleção, eu rejeitaria ao primeiro olhar, e muito cidadão de origem africana que contrataria sem hesitar; e, já agora, o inverso também é verdadeiro.

Ambiguidade à Esquerda
A diferença não reside na cor da pele, do cabelo ou dos olhos: está no espelho da alma que, seguindo dizem e toda a gente sabe, é o olhar; e tudo poderia ser bem mais fácil para certos políticos não inscritos, de ressabiados olhos esbugalhados de jactância e que para aí atiram parvoíces a esmo, se entendessem que o carisma do primeiro presidente negro do África do Sul*) não advinha do acinte da fala, do veneno da verve, mas da bondade do exemplo, da doçura do sorriso com que nos contemplava, da moderação e brandura pelas quais regia uma sua vida que lhe era imposta em condições miseráveis, enquanto, por seu turno, certos radicais e  supostamente aguerridos defensores das minorias, os que se escandalizam afirmando falsidades - como não se ver negros em forças policiais que, na verdade, com eles contam -, em nada contribuem para a serenidade que a nobreza de tão elevada causa requer.

Por falar neles: onde estavam esses defensores nas quase desertas manifestações promovidas, no Porto*) e em Lisboa*), no primeiro dia da Primavera de 2021?

Alguém lá fora se lembra de inventar o pomposo nome “Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial*) – até parece nome de ministério português*), disto, daquilo e mais daqueloutro, como se, quanto mais termos se encavalitasse no cargo mais competente o ministro fosse … -; outro alguém se lembra de que um Portugal em bicos de pés deveria ter também as suas manifs, pois então; e, entre as duas maiores cidades do País, nem cento e cinquenta pessoas foi possível arregimentar para os eternos chavões gritar e umas vuvuzelas fazer bramar!

Até as Manifs contra o confinamento pareceram, pelos números, bem mais importantes e concorridas do que estas*), já para não falar dos autocarros que, em plena crise sanitária, de todo o pais chegam para as iniciativas políticas do Partido Comunista e para as peregrinações a Fátima. Quanto ao racismo, porém, o interesse parece já tão escasso - leia-se “tão poucos os que se sentem, efetivamente, excluídos” -, que, porventura por não valer a pena, nem a extrema-direita aproveitou para lá ir perturbar a manifestação

Será assim?

Onde andava, então, aquele partido – perdão, movimento - supostamente muito à esquerda e pendurado nas minorias cujas bandeiras ainda são a única vela que os faz navegar? Será que as previsíveis escassas migalhas de protagonismo e a meia dúzia de letras ou segundos neste ou naquele jornal lhe não despertaram o apetite para a exibição? Não?

Pois não, uma vez que era mais do que previsível o fiasco, a deserção.


8. Não Há Negros Comunistas? Ou Só Faltam na Polícia?

Não Há Negros Comunistas?
Por falar em partidos…

Lembram-se daquele deputado negro do Partido Comunista Português?*) Não se lembram, pois não: foi só um, e há tanto tempo, já... O facto de o PCP não ter voltado a apresentar candidatos ditos de cor nas suas listas significará que o racismo já chegou à esquerda?  Ou será, antes, porque mais nenhum negro com apetência, ou vocação, ou ambição, ou queda para a política no Partido se inscreveu? Tal como na Polícia, talvez? Ou em qualquer outra organização?

Nem uma deputada negra nas hostes do Partido ou a falar na televisão... Vamos também, perguntar-nos por que não se vê, no PCP, mais cidadãos de origem africana? Vamos insinuar que o Partido Comunista é racista? Ou não?...

Claro que, em menor ou maior grau, há racismo latente, racismo manifesto, todas as variantes que queiram enumerar; e continuará enquanto forem tão desajeitados, radicais e exagerados os esforços para o debelar. Mas, perante manifs desertas, forçoso se torna concluir que, no Portugal dos nossos dias, o racismo é menos abrangente e a intensidade é, felizmente, já outra.

Tirando o racismo primário e parolo fundado no ódio irracional que só as bestas também irracionais valorizam, lá bem no fundo todos vão reconhecendo, mesmo que nem com todos se identifiquem uns com os outros nem todos mutuamente se admirem – nem, em liberdade, a tal são obrigados -, que, voltando aos Up With People, “everyone is the same in the Good Lord’s sight*).

O Dever Universal de Respeitar o Próximo

9. O Dever Universal de Respeitar o Próximo

Resta lembrar a, por vezes muito esquecida, condição essencial que jaz indelevelmente associada à aceitação espontânea e aberta por qualquer pessoa ou comunidade de pessoas de outras comunidades, sejam elas quais forem: o respeito.

Se, no que é essencial, estrutural, inexiste qualquer distinção com base no tom da pele, nos traços morfológicos ou noutra característica fisiológica, antes operando preponderantemente as diferenças culturais e civilizacionais, há, outrossim, que respeitar e acautelar a defesa dos valores da estabilidade, da segurança e da identidade que estruturam as sociedades que recebem e acolhem, sem prejuízo de quanto de saudável e enriquecedor na diferença houver.

Se é verdade que a solidariedade, a disponibilidade e a boa vontade para com o próximo devem sobrepor-se a qualquer objeção mais ou menos comezinha à plena aceitação de um ser humano por outro, o velho brocardo “em Roma, sê romano” deve estar sempre presente na mente dos que buscam acolhimento, já que manda a mais elementar cortesia que, não só quando visitamos alguém devemos observar as normas e os costumes dos nossos anfitriões, como se espera que nos abstenhamos, em qualquer circunstância, de a eles impor a nossa vontade, os nossos gostos, as nossas convicções, designadamente àqueles com quem um dia venhamos a coabitar, por maioria de razão.

Uma coisa é todos terem a liberdade de escolher, em função da adequabilidade às necessidades e objetivos de vida de cada um, o país para onde pretendem emigrar.  Outra, muito diferente, é escolher-se uma terra como alvo ideal para a disseminação e imposição indesejada dos costumes próprios do país de onde, por alguma razão, alguém se viu obrigado a emigrar – o que, em última análise, sempre será contraproducente, dado o risco de, dessa forma, se acabar por transformar a terra de adoção precisamente em algo muito parecido com aquela de onde se tiver tido de retirar.

No plano social, este dever de respeito opera, desde logo, na absolutamente legítima exigência do estrito cumprimento das normas jurídicas e da observação dos costumes locais, já que nenhum ser humano tem o direito de sujeitar qualquer outro, de diferente ou igual etnia, à imposição brutal de comportamentos por ele indesejados, ainda para mais escudados numa inaceitável discriminação positiva por parte dos tais partidos políticos ou grupos de pressão que cavalgam a suposta defesa de minorias por mais não terem no que se evidenciar – discriminação positiva essa que pode fácil e indesejavelmente ser conotada com a, em alguns latente, ideia de menoridade de uma ou outra população, ideia essa que, paradoxalmente, se pretende afastar.

Oligarquias marginais e não representativas
Afigura-se, por exemplo, inadmissível a existência, em plena catástrofe sanitária, de muito concorridos eventos de índole familiar que forças militares não têm como interromper*); de veículos de tração animal que, a passo de caracol, inesperadamente se nos deparam ao dobrar uma curva da estrada pondo em risco vidas de animais e de pessoas, designadamente as das crianças de tenra idade e dos adultos que,muitas vezes, a pé e ao lado, esses veículos vão a acompanhar*); de zonas de criminalidade comprovada e injustificadamente excessiva, promovida no interesse exclusivo de oligarquias marginais e não representativas das boas gentes de qualquer etnia; de bairros em que até as forças policiais pensam muitas vezes antes de entrar.

Não me causa especial alarme o racismo primário defendido por meia dúzia de ignorantes, indignos de qualquer crédito ou de que os ouçam, sequer. O que me preocupa é a generalização irracional do racismo decorrente de comportamentos lastimáveis e fortemente condenáveis por parte de uma outra meia dúzia de indivíduos de certas etnias que assim contaminam, junto de fatias consideráveis da população autóctone, a imagem de todo um grupo, ou de diversos, em idênticas circunstâncias.

Em certos casos - talvez não poucos -, a motivação dessa meia dúzia radica, já se sabe, na forma discriminatória como os olhamos e para com eles agimos, enquanto sociedade. Não obstante, o tratamento condenável por parte de meia dúzia de pessoas cor de rosa não justifica ou legitima a violência da reação, à qual, nesse caso, todos teriam direito, do que resultaria um caos maior ainda do que aquele a que assistimos em certos lugares e momentos não tão raros assim.

Quanto a mim, sou, decididamente, racista para com essa raça de indivíduos de todas as culturas, religiões e credos que, independentemente da cor mais ou menos rosa ou acastanhada da pele, indiferentes aos direitos daqueles por quem querem ser tratados como iguais, para com eles se comportam selvaticamente, deliberadamente agredindo, insultando, incomodando, escarnecendo, desprezando, como certos tugas hooliganizados com que nos cruzamos com indesejável regularidade - a maioria dos quais caucasiana.

 

10. Conclusão

Toda e qualquer postura ou atitude de agressão social é inaceitável. Se queremos, efetivamente, erradicar o racismo, cumpre, se necessário, rever a legislação vigente; e, com a maior urgência, nos casos por ela já contemplados, sensibilizar para a necessidade do seu estrito cumprimento toda a população, as autoridades e os poderes judiciários, bem como dotar de meios coercivos as forças policiais com atribuições e competências para a aplicar.

Entre tantos outros, os exemplos que referi - alguns deles comuns a indivíduos de variadas etnias - ilustram bem a impossibilidade prática de confundir, com impunidade laxista ou com anarquia a qualquer preço, o princípio geral de que qualquer cidadão de qualquer outra terra é livre de nos visitar e de, observados determinados requisitos, aqui se radicar: tal como é condenável a rejeição liminar de um ser humano por outro que dele difere num aspeto ou noutro, também se não pode, a coberto de uma falsa ideia daquilo que é ou deixa de ser politicamente correto, fechar os olhos a desmandos e ilicitudes que a ninguém podem ser permitidos porque, muito simplesmente, são contrários ao costume e, acima de tudo, à lei que a todos deve obrigar.

Princípio da Igualdade
A lei é legitimada pela mesmíssima Constituição que consagra esse princípio geral da igualdade que, ora com mais, ora com menos propriedade, anda nas bocas de todos e é essencial à efetivação da consagração teórica da diferença. Representa, pois, séria violação do mesmo princípio da igualdade acolher determinados preceitos constitucionais – os que proíbem a discriminação – enquanto se rejeita outros – os que obrigam ao cumprimento de todas as leis comuns – só porque não nos convêm ou porque, politicamente, fica melhor no retrato.

Num estado de Direito, qualquer cidadão, nativo ou oriundo de outra parte do Mundo, está vinculado ao primado da lei. Isto é algo que ninguém, em qualquer momento ou lugar poderá legitimamente esquecer ou ignorar, sob pena de estar, afinal, a praticar a discriminação que diz condenar.

Em ambos os sentidos, a cada um assiste o direito de se não sentir atraído por pessoas de outros grupos, bem como de não admirar determinadas características culturais ou comportamentos dos mesmos. Tal não confere, todavia, a uns o direito de maltratar e, muito menos, de procurar banir os respetivos representantes que aceitem e observem as leis e os costumes das sociedades que visitam ou os acolhem no seu seio; nem, a estes, o de agir como se, em lugar de convidados, fossem anfitriões, ainda para mais rudes, pouco educados, e felizes por assim se quererem conservar.

Tu deves porque eu quero’ é um absurdo; mas ‘tu deves porque eu devo’ é um objetivo legítimo e a base do Direito 2;  e, perante tais desmandos, tanto as maiorias, como as minorias, têm direito a indignar-se.

* *

Não obstante as convicções que cada um, enquanto indivíduo inserido num estado livre, possa ter, a obrigação de tratar bem o próximo, seja ele quem for, todos obriga; e, por maioria de razão, os que serem em forças de segurança.

Mas nem sempre assim acontece...

[não perca aqui a sequência deste artigo]


Chantepie de la Saussaie, Pierre Daniel – “Lehrbuch der Religiongeschichte” (Freiburg im Breslau, 1887–1889) – ”História das Religiões” – Editorial Inquérito – Lisboa, 1940 – pp.31

2 Seume, Johann Friedrich – "Prosaische und poetische Werke" - G. Hempel - 1899 - Vols 6-8 – pp.169 

sábado, 19 de junho de 2021


Orgulho e Pompa sem Circunstância

 

"Por haver constatado que um espião de leste operava no seu gabinete,
demitiu-se sem hesitar um outrora chanceler da República Federal Alemã.
Por haver, com dolo ou negligência, sido praticado um ato de espionagem
pelos Serviços, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não se demitiu.
Sendo as situações equivalentes, atentas a importância relativa dos dois cargos,
a diferença de atitudes apenas revela que muito pouco de comum existirá
entre o outrora Chanceler e o atual Presidente da Câmara Municipal"

Merece pouco crédito um país no qual se tende a olhar para os governantes mais como gente que prefere governar-se a governar. Mas não será esta a nota dominante da sociedade de faz de conta em que estamos mergulhados e na qual, por uma ou outra razão, muitos de nós são obrigados a continuar a viver?

Não é simplesmente a capacidade de registar a tradição pela escrita que distingue os povos civilizados, mas a capacidade de, individual e coletivamente, elevar o espírito um pouco que seja acima da preocupação com o carrito acabado de sair do stander ainda com o capum a brilhar; acima das imagens de carantonhas horrivelmente feias com esgares supostamente sorridentes a olhar para os basbaques em redes sociais onde pontificam relatos com imagens mal enquadradas de glúteos musculados, peitos descaídos, cochas moldadas em celulite em estado de negação; acima da ostentação básica, primária, de quem, por ter aprendido a dar uns toques na bola acena com milhões a populações esfomeadas e sanitariamente enfraquecidas; acima da vaidade desmesurada e da febre de protagonismo de quem nem miolos tem para olhar para o Mundo e entender o que lhe está a acontecer.

-x-

No caso específico dos políticos e dos aspirantes a políticos, é conhecida a tendência para uma espécie de justificado evemerismo relativamente aos pais fundadores dos respetivos partidos, embora ele apenas se manifeste em colagens à imagem dos seus deuses particulares, sem que tal aproximação para consumo mediático corresponda ao mais ténue propósito de os bons exemplos lhes seguirem.

Havia, entre os povos bárbaros, quem pensasse que, por vezes, os deuses adormeciam para voltar um dia em toda a sua pujança e poderio. Nos partidos políticos, todavia, sabe-se que os  deuses particulares, os seus chefes endeusados, quando desaparecem, é para sempre - e para alívio de uns quantos alarves vazios de valores, de ideais e de ideias, que apenas sonham subir a pulso por patológica necessidade de os seus complexos de inferioridade mitigar, mandando nos outros com um poder vazio de autoridade, e com o planeamento, a disciplina e o rigor próprios das ondas do mar.

Cientes, lá bem no fundo, da própria incapacidade para se guindar e manter em funções cujos requisitos excedem, largamente, as suas capacidades intelectuais, emocionais e educacionais, praticam e fomentam a prática do big brother que lhes convém enfaticamente condenar - e muito bem - nos sistemas ditatoriais, espiando os comportamentos, perscrutando os segredos mais íntimos, ordenando escutas, transmitindo a regimes totalitários dados confidenciais acerca dos respetivos opositores, assim lançando o anátema sobre os países ou cidades que administram*) na forma incompetente de quem apenas cuida de acumular créditos junto daqueles de quem, em regimes aparentemente democráticos, dependem para a contagem dos votos.

Pouco importa se a indiscrição vem de cima, do meio ou de mais abaixo: se o ato é deliberado, é crime com dolo eventual, a existir prática firmada e sobejamente conhecida, por parte do regime que governa o Estado beneficiário da informação, da perseguição política indo não raramente até ao homicídio; se o ato não é deliberado*), a simples possibilidade de ocorrência da fuga de informação diz bem da efetiva indiferença com que a questão dos direitos fundamentais - designadamente da segurança e da privacidade - é encarada por gnomos subservientes de olhar perdido e sem vontade própria, além da vontade de ficar bem visto aos olhos do chefe ou do patrão e, se possível, também da mal governada população.

Tempos houve em que, independentemente da responsabilidade direta, havia o bom hábito de os superiores hierárquicos em cargos públicos se afastarem na sequência de faltas dos seus subordinados, fosse pela prática de crimes, fosse por atos de espionagem*), fosse, ainda, por responsabilidade em catástrofes na sequência de erros técnicos ou de mera incúria funcional*).

Nestes quadros, tal como no de partilha, com outros países, num ato facilmente equiparável a espionagem, de dados pessoais que possam comprometer a segurança, a liberdade e, mesmo, as vidade pessoas que lutam pela liberdade de terceiros*), substituir a demissão espontânea por um débil pedido de desculpas públicas*) - expressão intensa mas inane - não passa de mera hipocrisia, de mais um expediente para salvar um residual de imagem; e um punhado de votos.

Por haver constatado que um espião de leste operava no seu gabinete, demitiu-se um outrora chanceler da República Federal Alemã. Por haver, com dolo ou negligência, sido praticado um ato de espionagem pelos Serviços, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não se demitiu*). Atenta a importância relativa dos dois cargos e sendo as situações equivalentes, a diferença de atitudes apenas revela que muito pouco de comum existirá entre o outrora Chanceler e o atual Presidente da Câmara Municipal.

No entanto, o papel de um autarca de Lisboa não se limita a preocupar-se (pouco) com a situação da Rua Maria Pia*) ou do Bairro das Murtas*); a deixar morrer, como o fez um seu antecessor, prematura e inutilmente ícones como o Teatro Vasco Santana*) e a Feira Popular*); a assobiar para o lado perante edifícios que apodrecem, como o Hospital de Arroios*), o antigo Liceu Rainha Dona Amélia*), ou o Palácio das Águias*), ou a desprezar a Tapada das Necessidades*), já para não falar da vergonha do estacionamento na Avenida Almirante Gago Coutinho*) e do maná garantido pela EMEL em zonas em que os parquímetros estão bem longe de se justificar*).

Ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa cumpre zelar pela honra e pela dignidade da Cidade e de quantos lá mora, em lugar de negligenciar medidas elementares que assegurem a salvaguarda dos direitos constitucionais dos cidadãos que lá moram, em lugar de procurar alijar responsabilidades procurando fazer, de forma insidiosa, classificar como mero erro burocrático *) um flagrante e muito grave incumprimento da lei.

- x -

Certas pessoas vivem imersas em orgulho e pompa, mas sem circunstância; e não é gloriosa a sua egocêntrica e, por vezes, despudorada guerra.

A ânsia de ser eleito para, dessa forma, poder servir uma organização ou uma comunidade deu lugar à ânsia de ser eleito ou promovido para assim poder servir-se de uma mole humana impreparada e cada vez mais indiferente, também ela preocupada apenas em fazer-se valer, quanto mais não seja no papel de capacho, de chega-me isso, de satélite de bem mais competentes manipuladores. É bem verdade que “a melhor forma de te não dizerem pequeno é dizeres dos outros que são grandes. Sobretudo se for mentira *)”.

Basta lembrarmo-nos do indescritível sentimento que experimentamos quando vemos e ouvimos supostamente ilustres mas notoriamente impreparados e pouco capazes deputados da Nação balbuciar os escritos que lhes põem à frente, hesitando nas palavras difíceis, na pontuação, errando a entoação.

As coisas são o que são e, quase sempre, são também aquilo que parecem: “La radio et la télévision fabriquentdes grands hommes pour de petites gens *)”.

O mal não se restringe à classe política: é endémico, na sociedade portuguesa e também lá por fora, tendendo a corrupção e o nepotismo a grassar incontrolavelmente. Os seus efeitos manifestam-se, seja na administração pública, seja em empresas nas quais o interesse dos investidores cede perante a doentia sede de autopromoção de dirigentes que, de gestores, apenas têm, em cartões de visita mais ou menos folclóricos, a designação por baixo do nome. Num e noutro caso, geralmente em países económica e socialmente falidos - como não será difícil exemplificar.

A questão de fundo é, no entanto, de uma simplicidade para muitos quase atroz: a inevitável ignorância da origem, da essência, da finalidade, do destino, próprios, de todos os outros e de todas as coisas. Mas como entender que a fragilidade imanente desse estado de dúvida não resulte, inversamente, na necessidade de dar, de apoiar, de consolidar, de valorizar o tempo que todos sabemos que, tarde ou cedo, para cada um de nós irá acabar, em lugar de tirar desta vida aquilo que se habituaram a dizer que é o que, para a tumba, ainda podem levar?

Se for verdade que a verdadeira imortalidade é a que resulta da memória com que os outros ficam da passagem de cada um de nós pelas suas vidas, bem melhor fariam certos lastimáveis palermas cheios de si em passar uns minutos a imaginar – já que gostam tando da mais ou menos parola imagem - que bela imortalidade para os seus vindouros irão deixar.

A menos que esses vindouros não sejam melhores seres humanos do que eles, o que, da maneira como isto para aí vai, não será, seguramente, uma hipótese a descurar.

sábado, 13 de março de 2021


Refugiado e Refugiados

"Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu
que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas,
bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará,
globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.
Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento
"

Imaginemos um país; um país europeu de dimensão relevante, desenvolvido e estimado pelos seus pares.

Imaginemos, também, que, nesse país e por circunstâncias que aqui não vêm ao caso, um governante de topo, um abastado rei, por exemplo, se vê na contingência de, fazendo uso do seu lauto pé de meia e da generosidade ou do pagamento de favores por parte de alguns amigos, ter de se exilar*), de abandonar a sua terra, rumando a paragens mais a Oriente para por lá se refugiar.  Tendo em conta a História recente da política europeia, é um cenário que não será difícil idealizar.

A esse governante, seria - sem hesitação, em condições excecionais e ao nível adequado a alguém com a sua anterior ocupação - facultado o acesso a todas as estruturas e serviços dessa sua temporária terra de adoção, desde os fornecimentos básicos de eletricidade e água, até aos cuidados de saúde, públicos e privados; e, se de idade avançada, aos necessários cuidados e tratamentos complementares.

Na nova terra, ninguém se espantaria, ninguém se insurgiria ou se sentiria lesado pelo luxuoso tratamento dispensado, pelo Estado e pela iniciativa privada:  uns, porque nem chegariam a saber o que se estaria a passar;  outros, porque se identificariam com o ilustre refugiado e para os próprios esperariam, em idênticas circunstâncias, iguais benesses;  por fim, os palermas que até se sentiriam honrados com tão distinta companhia e lamentariam, consternados, o facto de a veneradíssima personagem não poder regressar ao seu palácio para o Natal familiar.

Pensemos, agora, por um instante, num bote vindo de África, a transbordar de pessoas menos ilustres, desconhecidas, anónimas, desesperadas, sem Natal, a lutar pela sobrevivência, em fuga de quem, por razões políticas ou outras, os escorraçara da sua terra natal; fugindo da guerra, mas também da perseguição política ou religiosa, da miséria indizível; sabendo que parte deles nem chegará, porque o mar não irá deixar.

A estes refugiados pobres*), muitos portos batem com a porta na cara, acabando eles, por vezes, por se virar para um pequeno país a Norte das suas terras natais, logo acima e um bocadinho ao lado do Mediterrâneo, onde, mais coisa, menos coisa, dez milhões de seres humanos têm, entre muitas outras benesses, acesso a um serviço de saúde amiúde elogiado, porquanto fracamente financiado e, quanto a recursos, deficitário;  um serviço de saúde que, apesar de tudo, não desespera quando mergulhado numa pandemia, e lá vai arranjando meios e forma de acolher, de tratar e de recuperar as pessoas que o bote traz das paragens de onde foram escorraçadas, e que nesse pequeno país mais a Norte buscam refúgio.

Os refugiados dos botes são muitos?  Vêm em grande quantidade   Não.

Em pequenas embarcações, chegam a esse pequeno país umas cinco pessoas, em média, por dia.  Das minúsculas cascas de noz, veem os aviões que, aqui e ali, os sobrevoam como a expressão mais visível da crueldade do Mundo. Ignoram que, nesse preciso momento, um outro refugiado veleja, com ar enfadado, não num bote, mas num seu iate, rodeado de amigos, em magníficas paragens.

Será que acolher essas cinco pessoas por dia, cuidar delas, acarinhá-las será uma carga assim tão grande para o sistema de saúde desse pequeno país de dez milhões?  Será que o facto de não ter essa gente agora sem terra com o que pagar os cuidados que lhe são prestados justifica ser, por outra gente sem um mínimo de compaixão, mas com acesso a trabalhos parlamentares e a programas televisivos, exposta como parasita, como oportunista, composta por falsos necessitados que consigo até trazem telemóveis?

Será que a permanência dessas pessoas por cá, trabalhando como puderem, irá prejudicar assim tanto a empregabilidade dos nem sempre muito empenhados autóctones? Ainda que inicialmente não especializado ou particularmente bem preparado, será de desprezar o contributo que estes nossos habitantes darão à economia e à cultura do pequeno país que as acolhe?

Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas, bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará, globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.  Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento.

A partir dos dados disponíveis, concluir o contrário revela falta de humanidade, ou que anda por aí tenebrosa desinformação, a ponto de poder fazer esquecer que a maior maravilha do Mundo é as pessoas serem como são.

Aumento da criminalidade?  Claro que nem todos são santos, mas também não são os criminosos empedernidos que alguns querem fazê-los parecer.  Entre os refugiados há de tudo, melhor e pior, tal como de tudo há, também, no tal abençoado cantinho à beira mar plantado.

Em qualquer caso, não pode duvidar-se de que esse pequeno país de dez milhões tem alguma, embora reconhecidamente limitada, capacidade de acolher quem em tão deploráveis condições o demanda; e a responsabilidade varia na razão direta das nossas capacidades e na razão inversa das nossas limitações.

Não se entende, assim, como podem, no tal pequeno país, pessoas ditas de bem insurgir-se contra o acolhimento de meia dúzia de casos em cada mês*), manifestando-se pela imediata decisão de os deportar. Como pode continuar-se a confundir esta quantidade mínima, residual, que lá consegue desembarcar com o estabelecimento de uma nova rota migratória para quem quer ficar, inerte, a receber bens e serviços do país de acolhimento nada tendo que, por sua vez, lhe dar?

Há coisas que nem em campanha eleitoral se deve dizer.  Melhor dizendo, que, sobretudo em campanha eleitoral, não se deve dizer.  Num pequeno país que se pretende humanista, seria, para qualquer político, bem mais adequado e inteligente exaltar os valores a essa ideia indelevelmente associados.

Tampouco se entende o que leva alguns a associar a esquerda ou direita a decisão de acolher ou deportar, de discriminar positivamente ou de apenas tolerar, quando, independentemente da cor política, a rejeição se deve, fundamentalmente, a egoísmo, orgulho e preconceito, e pouco mais.

Quantos refugiados desses que vêm em botes não seria possível albergar, alimentar e tratar apenas com os milhões que, qual jogador de bola fugido ao fisco, o refugiado de luxo do início destas linhas irá entregar às Finanças do país de origem para um dia o deixarem regressar ao seu sumptuoso palácio sem temer mais pesada pena ter de pagar?

Pois não são estes refugiados seres humanos enquanto tal em tudo iguais a esse abastado velejador noutro país refugiado, apenas diferindo, no que é essencial, pelas condições degradantes e insustentáveis em que lutam para sobreviver?

Não, iguais ao abastado governante, de facto, não são.

São até bem diferentes as razões que os fazem escolher outra terra para morar;  e poucas dúvidas restam de que o próximo bote trará carga humana bem mais válida do que um decadente e rico pobre diabo obcecado por mulheres, pelo dinheiro e por aquilo que com ele poderá comprar.

Sic transit gloria mundi...

* *

Apesar de tudo, convirá ter presente que o acolhimento de refugiados não deve, não pode, pôr em risco funções tão essenciais à sociedade que os recebe - e, inevitavelmente, aos próprios - como é o caso da saúde.