"A catalepsia política destes partidos foi habilmente aproveitada para,
desembainhando
a espada em pretensa defesa de alguns dos setores mais críticos
do
descontentamento laboral (...) e cavalgando a passadeira estendida por
grupos profissionais
dos mais insatisfeitos outrora no feudo do PCP,
conseguir o Chega!, em tempo incrivelmente curto,
a almejada e indispensável
visibilidade inerente a uma elementar
mas preciosa representação
parlamentar"
1. Introdução
2. Na Génese da Demagogia
Portuguesa
3. Primeira Sacudidela
4. A
Inversão da Tendência
5. O Trambolhão
6.
De Onde Fugiram os Votos
7. Hipótese
1. Introdução
Apregoou-se por aí, durante quase cinquenta anos, que Portugal era uma
democracia madura, de maioria de esquerda e fortes convicções políticas.
A sustentar essa tese, quatro fatores principais caracterizavam uma vivência
política na verdade desinteressante e pantanosa, que a generalidade dos
políticos e dos comentadores se foi habituando a confundir com
estabilidade.
Por um lado, as frequentes maiorias do Partido Socialista (PS). Por outro, as contribuições do mais jovem Bloco de Esquerda (Bloco),
aparentemente potenciadoras de sinergias numa esquerda que se acreditava forte
no plano eleitoral. Acima de
ambos, a tão propalada lealdade estoica de uma parte do eleitorado fiel à
proposta do Partido Comunista (PCP), sobretudo em Setúbal e no Alentejo.
Por fim, a manifesta dormência à direita de todos estes, mormente num Partido
Social Democrata (PSD) que não parece saber como se livrar da perene imagem de
maior partido da oposição e num Partido do Centro Democrático e Social
(CDS/PP) demasiado próximo do anterior, sem margem para uma expansão
democrática à direita e que nem com a inflexão para Partido Popular soube
encontrar espaço político onde apenas havia um razoável campo de manobras e
trampolim para quem dele se soubesse aproveitar.
Os humilhantes resultados da extrema esquerda na
eleição presidencial de 2021*) fizeram soar, no pantanal, campainhas de alarme, cujas pilhas a coincidente
ascensão da votação na extrema direita esteve a pontos de completamente
gastar.
Muitas opiniões autorizadas se fizeram, então, ouvir, desdobrando-se na
apresentação de explicações aritméticas para tão estranha, inesperada e
abrupta transferência de votos – alguma dela, entre os extremos que alguns
dizem tocar-se. Ora, pelo menos quanto à dependência da demagogia, os extremos
tocam-se ou tocaram-se mesmo, e misturam-se bem com o centro, como nas linhas
seguintes procurarei demonstrar.
2. Na Génese da Demagogia Portuguesa
Até ao final do século XX, se alguém perguntasse qual era, no panorama
político português, o partido que, imediatamente, associávamos à ideia de
esquerda, a resposta evidente seria o PCP; aliás, a única, já que, na
extrema mais extrema ainda, procuravam manter-se à tona minúsculos partidos
que apenas uma vez ou outra lograriam obter representação parlamentar - sempre
meramente simbólica e que jamais
souberam potenciar.
Não é difícil recordar as causas do PCP, as suas bandeiras, a que, para
concitar as suas hostes, parecendo dinâmico e aguerrido, prefere chamar
lutas. Note-se que a
escolha vocabular é acertada, desde logo porque, digam o que quiserem
continuar a dizer, a prática democrática nunca foi, até à data em que a maior
parte acabou por cair com estrondo, a dileta dos governos ditos comunistas,
que o PCP ainda hoje diz admirar;
e continua a não ser naqueles
países que, contra toda a lógica e evidência, afirmam encontrar nas
comprovadamente ocas e ineficazes teorias marxistas legitimidade ideológica
para os respetivos povos democraticamente oprimir e espezinhar.
A escolha do termo lutas é acertada também porque o que, em tempos há
muito idos, valeu ao PCP aqueles quinze por cento – ora mais uns pós, ora
menos uns pós - que lhe permitiram afirmar-se foi a imagem de força
desalinhada, de partido antirregime, que só o não era mais porque, como não o
deixaram impor-se à batatada, alternativa não lhe restava a sujeitar-se ao
voto popular.
Para angariar votos, caia-lhe, então, às mil maravilhas o ambiente
pós-revolucionário, o desejo de mudança há muito legitimamente sentido e
alimentado. Mais do que tudo,
foi fulcral a sagacidade de um Secretário Geral, cuja inteligência fina e
trato cordial souberam camuflar o objetivo final e a verdadeira estratégia
atrás do mais antigo discurso demagógico da democracia portuguesa, prenhe de
chavões proferidos em incessante catadupa, naquele tom bem conhecido e
característico que alguns dirigentes do PCP de hoje nas suas cacofónicas
prosas ainda não conseguem – ou não querem - evitar.
Nesse registo de então, paradoxalmente monocórdico e acutilante, quase
agressivo, cujas promessas soavam como música aos ouvidos dos mais
descontentes, dos mais oprimidos, dos menos esclarecidos, sucediam-se
referências a bandeiras como a da prolongada
luta pelo direito à reforma e a uma pensão digna*), a da
luta pela reforma agrária*), a da
luta contra o pacto de agressão da direita com a Europa contra a
Segurança Social*), a da
luta pelo aumento do salário mínimo*) e por aí fora, habilmente visando cada foco de descontentamento – espontâneo
ou induzido e mesmo que tal foco fosse politicamente explorável apenas no
limiar da irracionalidade -, independentemente da disponibilidade económica e
financeira do Estado, a qual jamais pareceu preocupar.
Todas estas lutas iam sendo travadas sob a égide de duas ideias estruturantes
da mensagem: a união de
todos os trabalhadores em torno dos ideais comunistas salvadores, e a
defesa de uma
Constituição da República Portuguesa*) originariamente feita à medida do Partido. O braço armado – por assim dizer - residia, então como agora, na
CGTP Intersindical*), estrutura reverberante e pujante a brandir a espada da greve como ameaça
permanente à cabeça dos governantes.
3. Primeira Sacudidela
Desgraçadamente para o PCP, o Secretário Geral decidiu retirar-se no ano
seguinte ao do desaire de 1991 – acontecido poucos dias antes da há muito
anunciada
queda do Muro de Berlim*) -, ato eleitoral em que a compacta coligação com o estranho satélite
denominado Partido Ecologista os Verdes (PEV) fez um enorme buraco no patamar
daqueles quinze por cento que, na verdade, desde 1987 eram só doze.
Excetuando, curiosamente, as eleições europeias, mergulharam de então em
diante os números nas profundezas abaixo dos dois dígitos, numa queda livre da
qual, até hoje e excetuando uma ou outra insignificante oscilação, o PCP
jamais conseguiria recuperar.
A saída do Secretário Geral levou com ela a substância, a superior
inteligência e a empática habilidade do discurso demagógico do Mestre,
passando aquele a ser tentado pela pena de próceres simpáticos, mas de postura
frouxa, nada convincente, visivelmente pouco elaborada, sem carisma, e que,
aliada à absoluta falta de alternativa válida e disponível, apenas a
proverbial obstinação do Partido em fazer passar uma imagem de inabalável
segurança e de continuidade durante tantos anos acabou por sustentar.
As ideias, entretanto, eram as mesmas, os processos idênticos, e o discurso
encontrava-se esvaziado já que, além de faltar quem soubesse enriquecê-lo,
colapsara ante múltiplos e inegáveis fracassos o substrato ideológico
essencial para o suportar.
A morte política do comunismo um pouco por todo o Mundo, acabaria por atingir,
também, os minúsculos partidos da extrema esquerda portuguesa. Apesar disso, apercebendo-se da entropia que ia aniquilando o outrora bastião
antissistema, alguns deles lá trataram de engolir um sapinho aqui, outro ali,
acabando, quase no fim do século passado, por se entender num amalgamado Bloco
que pretendia ser – e durante certo tempo foi – a nova pedrada no charco.
O discurso demagógico, outrora bandeira do PCP, foi então encabeçado, à
esquerda, por um coordenador do Bloco de Esquerda que, não obstante se
apresentar algo tímido e reservado, lá conseguiu, ao fim de uma década e em
eleições legislativas, quase atingir os dois dígitos, beneficiando do marasmo
do gigante comunista, que continuava inanimado.
Cabe abrir aqui um parênteses para referir que, no extremo oposto do hemiciclo
parlamentar, encabeçava então as hostes do CDS/PP um político de gema, mestre
na arte da manipulação de cariz demagógico, que, no fim da primeira década
ficou conhecido pelos apelos ao voto junto das peixeiras do Mercado de
Benfica, em contraponto com o Coordenador do Bloco que, ao que diziam, ali as
não visitava.
A eficácia desta demagogia do centro-direita não é, no entanto, fácil de
avaliar tendo como base resultados de eleições presidenciais, já que, desde
1996, o Partido não tem por hábito apresentar candidato próprio. Mas a verdade é que o em tempos
partido do táxi *) conseguiu, durante vários anos, manter uma representação próxima de quinze
deputados, daí passando até para mais de vinte, e culminando com uma
significativa participação ao nível do governo – experiência pela qual já
noutros tempos havia passado.
Não poderia esta ascensão do CDS/PP deixar de ser associada ao pendor
fortemente demagógico do discurso e do desempenho do Presidente do Partido,
pelo que, embora sem suporte em resultados eleitorais independentes, este
texto ficaria incompleto se aqui a omitisse. Tanto mais que, em votos em eleições legislativas, estava o CDS/PP até
ligeiramente acima de quem, à esquerda, o contraponto esboçava.
Voltando ao Bloco de Esquerda, à façanha de quase atingir os dois dígitos nas
legislativas de 2009, seguiu-se um trambolhão para quase metade, após o que
foi o Coordenador substituído por uma sucessora cujos dotes comunicacionais
inatos, académica e profissionalmente desenvolvidos e progressivamente
cultivados para as necessidades da vida política, voltaram a, decisivamente,
elevar os resultados nas eleições legislativas.
Como candidata às duas eleições presidenciais do seu consulado, a Coordenadora
escolheu a deputada ao Parlamento Europeu, militante cuja qualidade humana e
simpatia inegáveis em 2016 valeriam ao Bloco
dez por cento dos votos expressos*), a melhor marca de sempre obtida por um candidato presidencial recrutado nas
hostes do Partido – ou do Movimento, como preferem chamar-se.
Talvez por essa razão, e com toda a justeza, foi a mesma Candidata selecionada
como representante na eleição presidencial de 2021, altura em que também o
discurso demagógico do Bloco esmorecera já bastante, tendo os seus dirigentes
preferido como que sofisticar a mensagem, passando a propugnar
causas fraturantes*) que apenas a algumas minorias poderão interessar, simultaneamente relegando –
pelo menos aos olhos da opinião pública - para segundo plano a defesa dos
tradicionais alvos que, em tempos, com o agora estiolado Partido Comunista
Português costumava disputar.
As classes menos favorecidas, menos letradas, menos esclarecidas da população
votante foram, por este processo, deixando de se rever nas causas defendidas
pelo Bloco de Esquerda, que passou a ser cada vez mais conotado com a ideia de
uma emergente esquerda que procura votos tentando impor, a maiorias
democraticamente estabelecidas e consolidadas, minorias que talvez preferissem
que as deixassem em paz.
Juntando esta inflexão do Bloco ao colapso do PCP, a ainda muito considerável
massa menos esclarecida de votantes deixou de ver, nos partidos da esquerda,
quem com alguma eficácia agitasse as águas, alguém que ainda desse a ideia de
os estar a representar.
Erro fatal!
4. A Inversão da Tendência
Vai daí que num belo dia de 2019, tendo, à direita, o discurso demagógico do
CDS/PP perdido o brilho com a saída do Presidente uns anos atrás, começaram os
tais desiludidos eleitores a aperceber-se da existência, lá muito à direita,
de um novo partido que, de forma para eles aparentemente muito mais promissora
e exaltada, pretendia pugnar precisamente por aquilo com que, em tempos idos,
lhes acenara sobretudo a esquerda.
É certo que este novo partido dizia, ao mesmo tempo, umas coisas de arrepiar,
mas não há de ser nada; e é claro que
aquilo não passa de disparates que, com o tempo, acabam por passar -
além do que nada disso importa quando o discurso chega bem vivo, acutilante e
brejeiro, de um tribuno de inteligência viva resposta pronta e palrar infrene,
suficientemente incisivo para conseguir as hostes animar com uma
lata bem apropriada a uma fatia básica e esquizofrénica da população,
capaz de exigir o encerramento das escolas para, três semanas depois e sem
consenso na comunidade científica, logo a necessidade da imediata reabertura
alardear.
Concluiu, então, essa ilustrada mole que Chega! de ficar à
espera de que o Bloco perca as peneiras, o PCP volte à vida, o PSD encontre
alguém com o carisma necessário para protagonizar uma verdadeira oposição e o
CDS/PP deixe os cuidados intensivos, tudo isto enquanto o PS continua,
tranquila e desnorteadamente, a mandar.
A catalepsia política destes partidos foi habilmente aproveitada para,
desembainhando a espada em pretensa defesa de alguns dos setores mais críticos
do descontentamento laboral – professores, enfermeiros e forças policiais – e
cavalgando a passadeira estendida por grupos profissionais dos mais
insatisfeitos outrora no feudo do PCP, conseguir o Chega!, em tempo
incrivelmente curto, a almejada e indispensável visibilidade inerente a uma
elementar mas preciosa representação parlamentar.
Conseguiu tudo isto sem ainda se ter, sequer, estabilizado, estruturado
enquanto partido, não passando, para já - e se quisermos ser muito simpáticos
-, de uma heterogénea amálgama de gente saturada da bem patente incapacidade
dos partidos do regime para gerir seja o que for.
Bloco e PCP, bem se esforçaram, então, por balbuciar sucessos associáveis à
sua presença na geringonça governativa. Mas como pode a generalidade dos eleitores, não militantes e pouco ligados a
estas coisas da política, deixar-se sensibilizar por difusas alegações de
autoria dos sucessos ou de partilhada responsabilidade positiva pelos
mesmos?
Perspicaz, o Presidente do Chega! entendeu que, aos espíritos menos
vocacionados para a política, com menos apetência para absorver informação,
menos preparados, menos aptos, menos esclarecidos, quase iletrados – e tantos
são, ainda! –, a ilusão de promissora eficácia tem muito mais a ver com
energia, com vivacidade, com carisma, com o espetáculo proporcionado pelo
permanente chasquear com os colegas parlamentares do que com visitas à sala poeirenta onde cada partido expõe troféus
alegadamente ganhos em tempos passados que nada podem melhorar.
Como, no século XIX, alguém em
França escreveu, “um governo seria eterno com a condição, de todos os dias, oferecer ao povo
um fogo de artifício, e à burguesia um processo escandaloso”. O Chega! sabe-o bem.
O que rende votos é o tom da mensagem, a vivacidade, o
dinamismo, ser convicto e, sobretudo, falar a linguagem de quem nos ouve,
trazer novidades, ainda que a suposta diferença se traduza numa bússola
ideológica completamente à deriva, que a vivacidade roce a ordinarice e a
aparente convicção se mostre irrepreensivelmente vazia de valores. São, em grande medida, estas qualidades que levam o eleitor português
que vota porque sim a encarar um partido como sendo o seu clube do
coração, a vestir a camisola, a acreditar, a votar no seu candidato de
eleição. Insistir unicamente no
debate das ideias, como se todos por elas se interessassem e fossem capazes de
as entender, é estar, como acontece com a generalidade dos partidos
tradicionais, em estado de alienação, de negação.
De facto, é tão sensato esperar que um eleitor comum perceba a fundo de
política como que um doente seja perito em medicina. A verdade é que sabemos escolher tão bem o medicamento ideal para nos curar,
como o sistema melhor para nos governar.
Escolhemos, não o remédio, mas o
médico, o governante e não o sistema político, assim nos interessando tão
pouco a bula do remédio como o programa partidário; e eleitores comuns somos
quase todos nós.
O Presidente da República reeleito sabe muito bem tudo isto, pelo menos, desde
o dia em que
mergulhou no rio Tejo*). O Primeiro Ministro, vai
aprendendo. Ao Presidente do
Chega!, corre nas veias sem ter de se esforçar.
No extremo oposto, fatigada, talvez, pelo esforço de exigentes anos passados
como única deputada do Partido ao Parlamento Europeu, a Candidata do Bloco
mostrou, na campanha eleitoral, evidentes sinais de fatiga e desgaste, de
desânimo quase, que a invocação da batalha pelos cuidadores informais não
chegou para obnubilar.
Já o PCP viu bem o perigo, a pontos de, em lugar de
imolar na pira eleitoral um outrora sacerdote*) que ninguém conhecia, desta vez tudo ter jogado na decisão de optar pelo
gambito do delfim designado para suceder ao atual Secretário Geral, nele tendo
apostado todos os seus trunfos. Mas o olhar parado, uma voz que mal se ouve e o discurso de antanho nunca
poderiam tê-lo levado longe, mais a mais sempre apoiado na velha cartilha,
agora ainda mais insonsa por ter sido enriquecida com a estafada
lengalenga da
defesa da Constituição*) - esquecendo-se de que que, por todos estarem ao cumprimento desta obrigados,
nunca tão pouco original defesa moverá quem padecer de eleitoral indecisão.
Apenas se consolidou, desta forma, no eleitorado a ideia generalizada de que
continuará a definhar até à morte o velho Partido, casado com uma inércia nele
de tal forma entranhada que jamais conseguirá o divórcio ou, pelo menos, a
separação; que bem sabe que o novo 'slogan' "O Futuro Tem Partido" mais
não visa do que obnubilar a certeza de que a utopia dos ainda propalados, mas
defuntos, ideais comunistas deu lugar à distopia de um futuro no qual, ao
invés, nem nos bastidores o Partido tem lugar.
Continuou, entretanto, o Partido Socialista por ali a pairar à toa, sem que um
candidato próprio tenha, às eleições de 2021, sido apresentado pelo partido da
governação, apenas tendo, espontaneamente, avançado uma candidata independente
- de apaixonado e nem sempre muito coerente discurso demagógico em decalque
das tais causas da nova e sofisticada esquerda personificada pelo Bloco -,
Candidata essa militando na zona mais à esquerda do Partido, área política
que, deixando saudades dos tempos áureos do Procópio, se apresenta hoje
deserta de verdadeiras figuras.
Dadas as inevitáveis inconsequência e falta de continuidade posteriores do seu
gesto, não se entende bem o que, além de barulho e de dispersar os já escassos
votos mais à esquerda, a tal Candidata a estas eleições foi fazer.
5. O Trambolhão
Para os supostamente indefetíveis eleitores de esquerda, naquele dia de
Janeiro de 2021 lá se foi o Marx, mais o Lenine e a cartilha toda que, em boa
verdade, nunca lhes interessou: longe de serem
indefetíveis, votavam em quem votavam apenas porque lhes faltava quem,
à esquerda ou à direita, tivesse um discurso mais espetacular, mais
demagógico e mais agitasse as pantanosas águas do sistema, mais os fizesse
sonhar.
A grande ilusão da nação convicta implodiu espalhafatosamente, para
gáudio dos oportunistas que, com pequenas alfinetadas em sítios judiciosamente
escolhidos, num ápice esvaziaram a bolha da inanimada esquerda ao convencer
boa parte dos votantes de que a defesa dos seus anseios prometida pela
interminável, monocórdica e sincopada parlenda do Partido Comunista jamais
iria, verdadeiramente, levar a bom porto a maior parte das
reivindicações. Fez-lhes ver que
aquilo que o Partido há décadas para eles exigia, sempre seria, pelos
detentores do poder – e mesmo no quadro da Geringonça –, concedido como uma
esmola a conta gotas, unicamente destinada a suster aquela incómoda mania de
fomentar e apoiar sucessivas paralisações laborais; e que, no marasmo comunicacional das frases repetidas, repisadas até mais não
se aguentar, as pouco invejáveis condições de vida desses eleitores iriam
perdurar, até porque a medida colossal da sempre incómoda falta de liquidez do
Tesouro jamais, foi, ou será, coisa de preocupar, apenas servindo para os
fazer mudar de canal quando os entendidos dela começam a falar.
Perceberam eles, também, que a sua esperança não residia naquele estranho e
cada vez mais apagado conjunto de pessoas que ocupa o cantinho mais à esquerda
da bancada parlamentar, e cujos alegados impacto e eficácia na luta pelos
direitos dos trabalhadores agora se não consegue vislumbrar, quase se
limitando agora a perorar sobre causas fraturantes das tais minorias que, de
tão badaladas, já ninguém tem, propriamente, apetência para apoiar, ou,
sequer, paciência para delas ouvir falar.
Tirando os adeptos ferrenhos que gostam de ver o seu partido jogar na
Sport Parlamento TV, o supostamente mui consciente e politizado povo
português de esquerda não lê programas partidários, programas de
candidatos presidenciais, programas seja de quem for:
quer é ver a vidinha resolvida
por quem mais possibilidades lhe pareça ter de, expeditamente, a resolver, bem
sabendo que lá não irá pela mão de quem durante mais tempo na campanha
arrastar o seu desinteressante e pouco credível palrar; e, quanto ao palrar, do que essa menos favorecida e mais volátil massa
eleitora gosta mesmo é de os ver todos à bulha nos debates que as estações
televisivas generalistas e noticiosas tão bem sabem explorar.
6. De Onde Fugiram os Votos
Meio milhão de fascistas portugueses vota no Chega!? *) Claro que não.
Mas também pouco sentido fará atribuir o sucesso eleitoral do jovem Presidente
desse novo Partido maioritariamente à migração de votos do PCP - no Alentejo,
em Setúbal, onde for. Embora
tampouco seja despiciendo, em certa medida, fazê-lo: por um lado, porque o segundo lugar em Beja, Évora, Portalegre e Setúbal não
pode deixar de estar relacionado com a campanha de proximidade, quer física,
quer do discurso, relativamente aos anseios da população; por outro, porque, desta vez, o candidato do PCP não era um ilustre
desconhecido, mas o próprio Delfim e deputado europeu, o que deveria ter
servido para imprimir uma mensagem de confiança suficientemente forte para
captar os votos da tal fatia menos esclarecida do eleitoral bolo, pelo que bem
poderia ter conseguido melhorar, de forma expressiva, o resultado da
votação.
Ao invés, os resultados percentuais em três destes distritos foram, até,
ligeiramente inferiores aos de 2016 -
não tendo comparação possível com os de 2011*) - o que permite dizer, numa extrapolação algo liberal para os resultados
globais, que o eleitorado fiel e disciplinado do PCP ronda, quando
muito, os quatro por cento, pelo menos em eleições presidenciais.
Por sua vez, o sofrível desempenho em campanha da Candidata do Bloco permite
admitir que nela terão, também, votado quase unicamente os obedientes,
ficando-se a base estável de apoio pelos mesmos quatro por cento.
Por fim, atentos a atitude trapalhona e o discurso mal alinhavado, quase
entontecido e pouco propício a atrair multidões, os magros quase treze por
cento obtidos pela Candidata da ala esquerda socialista levam a concluir pela
possibilidade de ser essa, quanto à ala em que milita no Partido, a verdadeira
representação.
Juntando estes três restinhos, terão ficado, para a habitualmente maioritária
esquerda - esclarecida e convicta - uns bem medidos vinte por cento,
devendo-se tudo o resto que noutras eleições em votos tem recebido à mais ou
menos eficaz manipulação, pela mensagem, de um eleitorado flutuante que,
basicamente, se está nas tintas para quem vai ganhar, desde que esse alguém o
convença de que, antes de todos, será esse mesmo eleitorado que, com a
escolha, terá a ganhar.
Os grandes vencedores da eleição presidencial de 2021 foram os que já
sabemos: os mestres da
comunicação, cuja retórica capaz de fazer derreter o gelo e vibrar as pedras
atrai às assembleias de voto largas centenas de milhar de votantes, mesmo que
receosos de, ao deixar o voto, poderem levar, em troca, um virulento bicharoco
capaz de dar cabo deles e dos seus.
Ganharam porque, ao contrário do que parece ser geralmente entendido,
demagogia não é sinónimo de extrema direita. A demagogia, de onde quer que venha, é, porventura, o instrumento mais eficaz
para quem quiser aproveitar-se dos verdadeiros e incuráveis calcanhares de
Aquiles da democracia: a
ignorância e o défice de consciência política e cívica de boa parte dos
eleitores.
Ao que parece só o discurso demagógico - e popularucho – alguma vez
logrará desviar as atenções da incompetência e do vazio político de um
partido, tácito mas claríssimo e irrecusável convite à emergência de
outros.
Independentemente da evolução futura do Chega!, os resultados da eleição
presidencial foram um sério alerta, e a mensagem para os partidos do sistema é
clara: procurar, preservando a
ética, apostar na qualidade e, sobretudo, no dinamismo da comunicação,
adaptando-a não apenas às expetativas dos eleitores, mas, durante a campanha,
também à capacidade de entendimento de cada segmento visado.
Talvez, acima de tudo, aos seus gostos e necessidades de evasão, de
distração.
7. Hipótese
Entre os menos esclarecidos ou menos interessados eleitores de qualquer
quadrante, o caráter mais ou menos demagógico do discurso político tende, nos
atos eleitorais, a condicionar mais fortemente, respetivamente para mais ou
para menos, o sentido da votação, do que a divulgação das grandes linhas
programáticas de quem se candidata; e os resultados eleitorais são, cada vez
mais uma medida de avaliação do desempenho das agências de comunicação.
Sic transit gloria mundi...