"Uma anquilosada Constituição do século XVIII, necessariamente tão desfasada da realidade
atual dos Estados Unidos
como as teorias marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de
qualquer nação moderna e civilizada"
"A norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação"
"Há que ter presente que o ruído é, sempre, consequente,
e ter o cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a
munição"
Aparentemente, tratou-se de um balde de água fria, ideal para reanimar as
hostes mediáticas quando o assunto do dia parece serem, já, as férias:
quando até a guerra na Ucrânia se encontra, para alguns menos atentos, a
marcar passo, quando, enfim, já pouca gente liga ao que quer que seja, além, naturalmente, dos episódios mais ou menos folclóricos, mais ou menos ridículos protagonizados pelos políticos que nos governam e por aqueles que gostariam de estar a governar-nos.
O assunto aqui vertido rendeu rios de dinheiro, páginas de anúncios, horas de publicidade
televisionada intercalando comentários mais ou menos inflamados de ativistas,
de juristas, dos autodenominados politólogos, de sociólogos, até de simples e mais ou menos bem pagos curiosos.
A verdade, porém, é que
tudo não passou de uma decisão há muito esperada de um estrutural e
conjunturalmente politizado Supremo Tribunal dos Estados Unidos,
recentemente tornado conservador graças aos bons ofícios dessa
inenarrável e inclassificável criatura de ascendência europeia denominada
Donald Trump
que, manipulações de resultados à parte, preenche o ideário de metade dos
nativos daquela grossa fatia do norte do continente americano da qual todos,
de alguma forma, dependemos e a cujos caprichos e desígnios prestamos e
continuaremos a prestar respeitosa vassalagem.
No entanto, e para lá do significado político e social que é bastante fácil e
quase inevitável atribuir-lhe,
o efeito prático do aresto será, possivelmente, pouco expressivo.
Mal andam pois, a assim ser, aqueles que, na ânsia de agitar bandeiras, o fazem
quase como se a polémica conclusão tivesse ido no sentido de proibir a interrupção
voluntária da gravidez nos E.U.A. Mas não foi, seguramente, disso que se
tratou.
Estão, assim, estas bem intencionadas pessoas, que aos quatro ventos bramam a
sua indignação, apenas a abrir alas àqueles que defendem a polémica decisão sustentando que se trata, meramente, da assunção de uma postura mais
democrática e mais liberal por parte do Tribunal, na boa tradição americana
que nos prezamos de adotar, também, em Portugal.
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Ocorre, porém, goste-se ou não e concorde-se ou não, que o entendimento de que o julgamento proferido dota a sociedade norte-americana de uma maior democraticidade e de uma maior liberalidade tem, do ponto de vista formal e jurídico, a sua razão de ser.
Ao contrário de Portugal, estado único, independente, dividido em regiões e
autarquias dotadas de autonomia meramente administrativa, os Estados Unidos
são isso mesmo que o nome diz: estados, independentes em
quanto não está regulado pela demasiado genérica e hoje patentemente obsoleta Constituição comum
à qual, em tempos há muito idos, todos eles acederam sujeitar-se; e, como se sabe, em direito, a norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação.
Acontece, também, que, por inevitável e sensato princípio, as constituições se limitam à enunciação de princípios, resultando omissas quanto à aplicabilidade específica dos mesmos à miríade de situações
concretas com que os diversos intérpretes se irão defrontar. Cumpre, assim, aos mais ou menos políticos e politizados órgãos investidos de atribuições de fiscalização
do cumprimento da Lei Fundamental interpretar a respetiva letra e
preencher, por decisão definitiva e irrecorrível irrecorrível, as lacunas que
a cada passo não deixam de se manifestar.
Sobretudo, numa Constituição do século XVIII, necessariamente tão
desfasada da realidade atual dos Estados Unidos, como as teorias
marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de qualquer nação
moderna e civilizada, como há quem diga que somos nós.
Ora, sem deixar de ser verdade que, do ponto de vista técnico-jurídico se
inverteu uma posição hermenêutica aceite durante o mais recente meio século,
a verdade insofismável é que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos não veio impor o que quer que fosse.
Bem pelo contrário: veio devolver a cada estado o direito de decidir por
si quanto a tão sensível matéria.
Esta é a verdade objetiva, que, por muito que possa doer, não há como contrariar.
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Já aquela dúzia de estados que,
pressurosamente, correu a anunciar leis mais repressivas na matéria apenas se
está a colocar na mesmíssima posição que o nosso Torrão Natal antes da
Revolução de 1974, quando a prática do aborto era genericamente proibida.
Ao tempo, efeito inevitável foi, como se sabe o do
florescimento de clínicas especializadas ao longo da raia, às quais recorriam
as portuguesas suficientemente abastadas para percorrer a distância e suportar
os custos da intervenção; e, por cá, a proliferação de parteiras não
encartadas, procuradas por quem não tinha meios para se dar a outros luxos, e
abortava em circunstâncias que, mesmo quando não documentadas, são bem fáceis de imaginar. A verdade, aliás, é que,
ainda hoje uma boa parte atravessa a fronteira para o efeito*), dado o regime mais benévolo da lei espanhola que está a vigorar.
Poderemos, no entanto, comparar o nível económico das portuguesas de então - e
de parte considerável das de agora... - ao das americanas dos dias de hoje?
Claro que não.
Poderemos, outrossim, comparar o grau de esclarecimento da população mundial quanto à
matéria - nomeadamente quanto à existência e disponibilidade de contracetivos - na América do Norte ou onde quer que seja
no mundo dito civilizado dos nossos dias, com a situação cultural, social e
politicamente estagnada dos lusitanos de então? Claro que também não.
Assim, nos estados americanos que optarem por endurecer as restrições a consequência mais provável e imediata da decisão será, provavelmente, a vantagem económica dos
restantes estados, que irão acolher quem pretender interromper a gravidez. É que,
independentemente do estado de origem, é o local do 'crime' que
determina a jurisdição, pelo que essas pessoas que abortam além fronteiras estaduais não poderão ser punidas no estado onde estão domiciliadas. Tal como, noutros tempos, não podiam ser legalmente perseguidas em Portugal
as portuguesas que abortavam em Badajoz.
Fala-se, segundo se diz, da criminalização, por parte de certos estados
radicais, da mera deslocação para interromper a gravidez noutras paragens;
mas isso, a acontecer, não passará de uma medida extrema, de uma verdadeira
aberração suscetível de firmar, indelevelmente, do espírito das restantes nações a noção de que, no tão amado e admirado País dos norte-americanos, a liberdade e a democracia não passam de uma nada democrática
ilusão.
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Bem, e antes da polémica decisão?
Em sociedades como aquelas que elegeram, para os governar, os políticos que a
nova legislação restritiva irão impor, será que, já então, se poderia abortar
sem imediatamente se adquirir um sério estigma social, mesmo
junto de familiares e de amigos?
Ousaria a generalidade das cidadãs por lá interromper a gravidez,
ou já demandaria outras paragens para o fazer? Quantas clínicas de Badajoz não haverá para lá dessas fronteiras
estaduais americanas? Quantas não irão, a partir de agora, surgir como
cogumelos ou florescer mais ainda? Com um nível económico tão diferente do
nosso, bem poucas serão decerto as norte-americanas que não terão meios para
se deslocar a um estado liberto de tão severa legislação.
A assim ser, o que veio, então, esta decisão do Supremo mudar?
Como contrariar os tais que dizem que ela apenas veio ainda mais liberalizar, democratizar?
Como, enfim, agitar bandeiras contra ela, sem as suas formalmente inatacáveis
posições estar, paradoxalmente, a divulgar?
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O pouco imparcial Supremo Tribunal norte-americano efetuou uma manobra
propagandística de cujo impacto social e mediático sempre esteve bem ciente. Não resistiu a uma
acintosa e, bem vistas as coisas, na prática pouco impactante provocação, bem ao estilo do seu arquiteto Donald Trump-
A esta provocação, talvez tivesse sido bem melhor não terem os
opositores de aquém e além fronteiras dado tanto tempo de antena, o qual apenas terá servido para evidenciar, contra o que era propósito dos mesmos, que, de facto, o acórdão confere, individualmente, a cada estado uma maior liberdade de
decisão.
As causas, todas as causas, há que as defender com entusiasmo, com militância,
com mediatização. Com tudo isso e o mais que as possa dar a conhecer, e
motivar quantos a elas quiseram aderir.
Há, no entanto, que ter presente que o ruído é, sempre, consequente, e ter o
cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a munição.
* *
Por cá, estas decisões cabem, exclusivamente, ao Tribunal Constitucional,
também não isento de polémica nas nomeações dos seus conselheiros, felizmente
não vitalícios, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos.