“Com toda esta reflexão sobre o que fazer amanhã, a adrenalina vai-se, a
preguiça vem, e o melhor acaba por ser mesmo ficar por casa”
“A ninguém parece ter ocorrido que, com o voto em mobilidade, se gerou uma
intolerável situação de desigualdade entre os eleitores que a ele recorrem e
não têm direito a dia de reflexão e os que votam uma semana depois, no dia
marcado para a votação principal estes com direito a dia de reflexão”
LEIA AQUI O PRIMEIRO ARTIGO DESTA SÉRIE DEDICADA AO ATO ELEITORAL!
Hoje é mais uma daquelas vésperas de eleições.
Ontem, ainda houve comícios animados, declarações inflamadas, comentários
repetitivos por parte de senhores muito eruditos e de ar enfadado. Se a
votação acontecesse no dia de hoje, muitos dos menos motivados ainda
acorreriam, possivelmente, às urnas, de alguma forma espevitados pela animação
televisiva da véspera; ou pela barulheira dos megafones das carrinhas a
despejar pregões desesperados, ao som daquelas músicas das revoluções, de mais
do que prováveis perdedores. Quanto mais não fosse, alguma adrenalina
clubística ainda aos eleitores correria nas veias, pelo menos em quantidade
suficiente para, no ato eleitoral, assegurar a participação.
Mas, não. Hoje, ainda não há votação.
Hoje é dia de reflexão; ou seja, de pegar na carripana e na
famelga e ir dar a voltinha dos tristes, se o combustível no fundo do
depósito ainda chegar; ou de ir até ao café ver quem por lá estará para uma
bisca ou dois dedos de conversa; ou de ficar em casa espapaçado a ver a
bola, com um pratinho de tremoços ou de pistachos e uma
jola na mão. Ou para acabar aquela camisola para o filho da prima que
nasceu na semana passada; ou para dar mais um avanço naquele trabalho que já
devia estar pronto e nunca mais está porque, com tanta politiquice, até me
falta inspiração.
Para ir à terra, não dá, porque amanhã é dia de ir votar, que me
esqueci daquilo do voto antecipado, e ir e vir no mesmo dia era mesmo uma
estafa e uma grande confusão.
A menos que…
A menos que a gente se marimbe nisto tudo, e vá mesmo até à terra, ou,
se houver fundos para tanto, dar uma escapadela a um turismo rural ou de
habitação. Depois vota-se, numa outra altura em que haja eleição. Tanto faz,
votar numa ou noutra eleição. Ou nem votar, sei lá... Corre tudo sempre mal...
e por aí fora, em igualmente elevada cogitação.
Com estas obrigatórias trinta e duas horas de reflexão sobre o que
fazer quando as urnas abrirem – porque é nisto que pensa toda a gente que, de
um modo geral, se está bem nas tintas se irá votar neste ou naquele
partido ou coligação -, a adrenalina vai-se, a preguiça vem, e o melhor acaba
por ser mesmo ficar por casa, que se calhar até nem está sol e ainda acabamos
mas é por passar uma eternidade naquela fila imensa porque, logo por azar, a
mesa onde voto tem imensa gente inscrita e vou sair lá desfeita e aflita dos
joanetes ou de coisa ainda pior.
- x -
O anacronismo popularmente denominado dia de reflexão é imposto pela
aplicação conjunta dos artigos 53º, 61º e 141º da Lei n.º 14/79, de 16 de
Maio, denominada Lei Eleitoral para a Assembleia da República, tão velhinha,
tão velhinha que ainda diz que “aquele que no dia da eleição ou no anterior fizer propaganda eleitoral por
qualquer meio será punido com prisão até seis meses e multa de 500$ a
5000$” (para quem não sabe o que quer dizer o $, a seguir aos números,
aquilo é o valor numa moeda que existia antigamente, chamada escudo português,
correspondendo os dois valores a 2,494€ e 24,940€, respetivamente). Pena
suspensa, e multas "pesadas", a valores de hoje, como se vê...
Em tempos há muito idos, quando esta ideia de democracia era, até há bem pouco
antes desses tempos, uma coisa perigosa, proibida, e da qual só em sussurro se
ouvia falar, poderia admitir-se, embora não sem estranheza, que as três
semanas que então se passava em campanha eleitoral pudessem gerar tamanha
confusão nos pobres espíritos dos atarantados e ainda entusiasmados eleitores;
que necessitassem eles de uma pequena pausa para assentar ideias e, nesses
tempos ainda conturbados, decidir, com a lucidez possível a quem iriam confiar
o seu voto, acreditando, como acreditavam, no programa que cada um tinha na
mão..
Mas hoje, Senhores?
Quem, apesar da descrença, ainda se dá ao trabalho de ir votar num partido,
fá-lo por clubismo, por compadrio, por um sem fim de possibilidades igualmente
lastimáveis, ou por uma cega, intuitiva, irracional crença em que "aquele é que é"!
Qualquer que seja o caso, neste dia de reflexão o eleitor sabe,
há muito tempo, em quem irá votar, em pouco nada influindo - a despeito
dos sobressaltos das caricatas sondagens com 152 inquiridos... - aquilo que,
das bocas dos candidatos, o mesmo eleitor ouviu nas semanas que acabam de
passar, uma vez que já em nada acredita daquilo que lhe vêm prometer quantos
políticos - tarimbeiros, caloiros ou apenas prospetivos - por aí viu
desfilar.
Já houve
projetos apresentados no Parlamento*) para acabar com esta idiotice do dia de reflexão que, nos nossos dias,
apenas serve para fazer arrefecer a vontade de ir votar; já
constitucionalistas*) que, inicialmente, com a sua existência terão concordado ou a terão, até,
defendido, disseram que, agora, o melhor seria esquecer o assunto e deixar a
campanha prolongar-se por mais um dia, até à véspera da eleição.
Assim sendo, numa altura em que a abstenção vai devorando, com crescente
voracidade, as raízes da democracia, por que razão ainda se não tratou de
alterar estas disposições que, sem qualquer utilidade, impõem uma pausa de
arrefecimento entre o já de si cada vez menor calor da campanha eleitoral e o
momento em que – suprema maçada! - lá teremos de dar uma saltada ao local da
votação?
- x –
O arrastar de decisões, o receio de mexer naquilo que está, porque as coisas
já estão complicadas e não temos tempo a perder com essas minudências, não
será, talvez, a melhor demonstração de que, em Portugal, a democracia funciona
- ou, pelo menos, de que tudo se faz para a tornar racional, efetiva,
competente ou, pelo menos, para a manter em funções.
A falta de interesse na análise da situação é tamanha que ainda a ninguém
parece ter ocorrido que, com o
voto em mobilidade*) – coisa com que, por todas as razões e mais algumas, ainda ninguém,
sequer, sonhava quando foi elaborada a Lei Eleitoral -, se gerou uma
intolerável situação de desigualdade entre, por um lado, os eleitores que a
ele recorrem e não têm direito a dia de reflexão, e, por outro, aqueles
que votam uma semana depois, no dia marcado para a votação principal, estes
com direito a dia de reflexão.
Quem votou antecipadamente no passado Domingo, fê-lo no meio de comícios, de
comentário político, de declarações de candidatos, de tudo e mais alguma coisa
destinada, precisamente, a influenciar o voto, sem qualquer
legal proteção. Para não falar, evidentemente, no
bombardeio nas redes sociais, impossíveis de controlar totalmente e onde
sempre acabam por aparecer apelos na véspera da votação.
Não estará na altura de olhar, de alto a baixo, para a Lei Eleitoral e,
aproveitando para converter os valores para os euros que já se utiliza há
vinte anos, repensar toda mecânica da eleição, com especial atenção a esta e a
outras formas, eventualmente mais eficazes, de voltar a dar algum significado
ao voto democrático, tudo fazendo para reduzir, drasticamente, a abstenção?