quarta-feira, 5 de janeiro de 2022


Jerónimo de Sousa

Jerónimo de Sousa


"O capital não só não tem pátria, como não tem sentimentos, é amoral, e a sua lei suprema é o lucro"

Jerónimo de Sousa*)  
(em Comício)                 
             

Diz isto, ao mesmo tempo que, supostamente, defende o apoio do Estado às pequenas e médias empresas, as mais numerosas representantes do famigerado capital - e que, a propósito, dão emprego à esmagadora maioria dos trabalhadores portugueses. Será que já ninguém tem sentido crítico, no Partido Comunista Português (PCP), para lhe dizer "Olhe lá, Camarada, não é bem assim!", ou já só quem tem patine é que por lá ainda pode opinar?

Ninguém há que lhe diga que, por muito espontâneas, comoventes e emotivas que possam ser, as generalizações baratas nem sempre são muito recomendáveis? Que lhe diga que capital é sempre capital, independentemente da dimensão e das intenções e idoneidade dos seus detentores?

Com cantilenas profundamente eleitoralistas e demagógicas como esta, num país que, embora tímida e ineficazmente, lá vai, pelo menos, procurando enriquecer o nível de instrução dos eleitores, como espera esta gente cristalizada na memória do antigamente*) conseguir evitar uma votação cada vez mais humilhante nas sucessivas eleições? Atacando um imenso tecido empresarial que gera emprego, como irá convencer alguém de que defende os interesses dos trabalhadores?

A coisa está tão negra, que os comunistas de hoje já nem têm, como os de antigamente, a lata de, por muito que desçam, continuar a dizer, cada vez que perdem, que acabaram de ganhar...

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Independentemente das razões por que possa tê-lo feito, é impossível negar o contributo essencial que o PCP teve na motivação das ações que culminariam com a queda da ditadura em Portugal. No entanto, isso apenas adensa o mistério, torna mais patética a teimosia, quanto à insistência em continuar, num estado de negação dificilmente compreensível, a defender o indefensável, ainda que à custa de ter de rejeitar a mais clara evidência e a mais lúcida razão.

Aponta-se à Igreja Católica um indesejável alheamento da realidade ao insistir na difusão de aspetos mais anacrónicos da sua doutrina;  aponta-se, e penso que bem, já que todos os princípios, mesmo os mais sagrados, devem ser formulados - e, mais tarde, reformulados - atendendo ao tempo em que irão ser observados. Mas como explicar e legitimar, então, o ainda maior desfasamento, face à sociedade atual, da doutrina do PCP?

Pouco importando a forma mais ou menos hábil como o disfarçam os programas partidários, a doutrina comunista ortodoxa, propriamente dita, não se limita a sustentar a importância de defender os interesses das classes de trabalhadoras: isso, qualquer partido democrático, inevitavelmente, alardeia, sob pena de nele quase ninguém votar. O que distingue o comunismo puro é a proposta de que se defenda tais interesses pela força das armas, mensagem terrível que, admitamos, será, na sua plenitude, apercebida por muito poucos dos seus mais ingénuos e menos cultos eleitores. Muitos poucos deles quererão andar por aí, de arma em punho, a matar, a fuzilar: votam no Partido por não ver alternativa, por clubismo, ou pelo simples e nada esclarecido hábito de assim votar.

O PCP é, hoje, um partido anódino que tem na cada vez menos eficaz greve a principal forma de luta. Uma vez perdida a paciência ou confrontado com o fim inevitável, deixará, seguramente, de ter como único braço armado uma central sindical: não nos admiremos se a por muitos esquecida ARA (Ação Revolucionária Armada)*), ou alguma descendente mais preparada e sofisticada, vier um dia desestabilizar, ainda mais, este já tão desnorteado Portugal.

(continua aqui)

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