domingo, 3 de abril de 2022


Matosinhos: Rua de Brito Capelo

Rua de Brito Capelo, em Matosinhos

"

"Dá-se a este concelho a denominação legal de concelho de Bouças, em rasão da villa d'este nome, que existe na freguezia de Mattosinhos. Pretendem alguns, que antigamente só existia a freguezia de Bouças e que Mattosinhos não era mais do que uma aldeia d'esta parochia; e tanto que ao Senhor de Mattosinhos se dava o nome de Bom Jesus de Bouças. É certo, porém, que o Portugal Sacro e Profano, publicado em 1757, traz a freguezia de Mattosinhos e não traz a de Bouças. 

O concelho de Bouças é composto das 13 freguezias seguintes : Aldoar, Custoias, Guifões, Infesta, Labrúge, Lavra, Léça-dò-Bailio, Leçada-Palmeira, Mattosinhos, Nevogilde, Perafita, Ramalde, e Santa Cruz do Bispo. Todas estas freguezias, no bispado do Porto". 

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno"
Livraria Editora de Matos Moreira & Companhia - Lisboa, 1875 - vol.5, pág 134

quinta-feira, 31 de março de 2022


Resiliência ou Ignorância?

"Sou resistente
se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar.
Sou resiliente
se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar
"

"Se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa,
como designar a tal capacidade de recuperação?
"


Internet Popularucha
Encontramos frequentemente, por essa Internet, n sítios que dizem ensinar cultura, como tal parecendo entender a mera repetição, por vezes em tom desnecessariamente popularucho, daquilo que, noutros, facilmente se encontraria com substancialmente maior qualidade e, sobretudo, com a devida e consistente fundamentação.

Além de popularucha, a linguagem utilizada aparece, por vezes, de forma descaradamente evidente, como pensada para atrair leitores menos informados mas mais sensíveis aos apelos mediáticos - o que até poderia resultar num contributo válido para a formação de menos instruídas camadas da população, - bem como para a exaltação mais ou menos narcísica de quem por lá escreve e se não coíbe de pespegar, em dimensões particularmente generosas, a sua imagem em fotografias do tipo passe, obtidas, às tiras para recortar, nas máquina automáticas Photomaton.

Em lugar de prestar esse contributo válido, no caso dos textos em que dizem abordar questões da língua portuguesa, leva-os, bem pelo contrário, o mediatismo excessivo a evidenciar o erro em lugar da palavra ou expressão correta,  problemática que foi, recentemente, aflorada num texto, publicado pelo blog Cota Máxima*), cuja leitura recomendo.

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Ora, legítimo seria esperar que se ocupassem, pelo menos, estes n sítios - n, porque são muitos... -  de averiguar a exatidão dos significados que ensinam como sendo, numa classificação inaceitavelmente subjetiva, as 25, ou as 10, ou as 15 palavras mais qualquer coisa da língua portuguesa, em lugar de comprometer, de forma ainda mais séria do que aquela com que, a cada passo, nos defrontamos, o parco conhecimento da língua portuguesa detido pela generalidade da população.

A par da narrativa, da performance, das geografias, do elencar, do viral, do incontornável e dos restantes membros da vasta família, resiliência vem-se revelando como um dos termos cuja utilização  uma cada vez maior quantidade de pateticamente presumidos oradores e supostos escritores parece julgar que os eleva social e culturalmente, quando a torto, a direito, a despropósito e ad nauseam, a incluem nas mais elementares orações. 

Não será, assim, de estranhar que, no meio de algumas ou muitas outras coisas bizarras encontradas nesses n sítios de cultura, tenha, num deles, deparado, para o termo resiliência, com o significado de  lutar, não desistir, ser otimista e superar obstáculos e outras coisas que tais.

Em lugar de, como de um sítio dito 'de cultura' poderia esperar-se, limitam-se, assim, a papaguear, de forma absolutamente acrítica, o significado do termo originariamente utilizado pela física do qual, abusiva e erradamente, a psicologia se apropriou.

Como já, noutro texto aqui ironizei, resiliência, apenas ao de leve se parece com tal definição: resiliência é, antes, a capacidade de, após sofrer um impacto ou tensão, um material recuperar a sua forma original - como, no quotidiano, observamos, por exemplo, num elástico ou numa mola.

Aplicado à psicologia, o termo resiliência apenas poderia, assim, corresponder à capacidade de recuperação após um impacto ou tensão potencialmente nocivos da estabilidade emocional de uma pessoa. Não é, pois, confundível com resistência, que, essa sim, define a capacidade de um material resistir às tensões e impactos antes de começar a deteriorar-se ou a alterar a forma, ou de uma pessoa resistir antes de, baixando os braços perante os desafios se deixar afetar pela adversidade com que se depara ou lhe é imposta.

Clarificando: sou resistente se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar. Sou resiliente se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar.

Trata-se, inequivocamente, de conceitos e de situações bem diferentes, afigurando-se absolutamente descabido sustentar que, utilizar uma ou outra... tanto faz!

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Já aqui escrevi, a propósito do sexo e do género, sobre a apropriação, por parte das ciências sociais, de termos utilizados por outras ciências ou disciplinas, assim lançando nos espíritos uma enorme confusão. Trata-se, ao que tudo parece indicar, de um comodismo excessivo, de um aproveitar o que já existe sem muito pensar no assunto, de uma falta de exigência de rigor vocabular, de uma inaceitável displicência com a comunicação que muitos dizem ser tão cara e importante, a mesma comunicação que não param de enfeitar com palavras caras mas vazias de significação.

A apropriação, pela psicologia, do termo resiliência para exprimir algo que resistência muito bem exprime, não passa, assim, de mais uma tentativa de complicar o que é simples; de confundir o que é claro; de enfeitar o que é linear, exaltando a vaidade própria - e provavelmente negada... - de quem opta por uma expressão vocabular cada vez mais barroca e ridícula, em detrimento da qualidade do discurso, da propriedade da expressão, da precisão na compreensão, em suma, minando uma comunicação que se quer pura e exata; pelo menos, tanto quanto razoável e possível, no meio de toda esta indefinição.

Legítimo será, naturalmente, por que razão haverá alguém de, sobre este assunto, aceitar como bom o que aqui defendo, e não aquilo que os reputados linguistas e cientistas fazem e dizem.

Ora, a resposta é bem simples, e arrima-se em dois pilares essenciais:

  • o pilar linguístico, que assenta na imperiosa necessidade de, para nos entendermos e fazermos entender, não apenas procurar eliminar cada um dos múltiplos focos de ambiguidade que o idioma foi gerando e desenvolvendo, através da ignorância e do facilitismo, da indiferença por tudo quanto, como um idioma, não é visível, não rende euros ou votos, ou prestígio, ou - pensam alguns - status social;

  • o pilar lógico, que torna evidente ao mais distraído que, se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa, como designar a capacidade de recuperação?
Sem apresentar fundamentação que, literalmente, arrase qualquer destes alicerces, não será fácil convencer espíritos exigentes e mentes informadas da justeza da utilização da já estafada resiliência para, a propósito de tudo de nada, referir algo que resistência perfeitamente define, sem necessidade de elaborados estudos ou rebuscadas  e pomposas interpretações.

Resistência, qualquer aluno da instrução primária sabe o que é. Resiliência, pelo contrário, é um termo de cujo verdadeiro significado muitos que o utilizam nem desconfiam; e, falar sem saber o que se diz, não será, propriamente, a mais eficaz e fluída forma de comunicar.

Capacidade de RESISTIR Resistência Resistente
Capacidade de RECUPERAR Resiliência Resiliente
Ato ou efeito de RECUPERAR Recuperação -

Primeiro, procura-se resistir. Se não resistimos, mas somos resilientes, depois de quebrar, recuperamos. Uma vez recuperados, voltamos a procurar resistir a novos impactos, e assim sucessivamente.

Temos, assim, um dito PRR, um Plano de Ato ou Efeito de Recuperar e de Capacidade de Recuperar. Para aguentar tolices destas, é, de facto, necessária muita... resistência.

* *
Eis, pois, um bom exemplo de que, na língua portuguesa, como em tudo na vida, não é verdade aquilo que, pelas mais diversas razões, muitos querem fazer-nos crer: que "Tanto Faz"!

Visando, entre outras coisas, alertar para o facto, "Tanto Faz!" é, precisamente, o título do primeiro artigo publicado aqui no Mosaicos em Português.



Não perca, no correspondente separador no topo desta página,
outros artigos polémicos sobre diversos temas relacionados com a

LÍNGUA PORTUGUESA

quarta-feira, 30 de março de 2022


Robert Sarnoff


"A finança é a arte de fazer o
dinheiro passar de mão em mão até desaparecer"


"Finance is the art of passing currency from hand to hand until it finally disappears"

Atribuída a Robert Sarnoff *)

Uma realidade a ter em conta pelo nosso recém-nomeado-sem-alguma-vez-ter-esperado-que-tal-lhe-acontecesse-e-sexto-na-hierarquia-do-governo ministro das finanças*)

Pois, nós, também não esperávamos. Ou melhor: esperávamos que não. Que não fosse, para lugar de tamanha responsabilidade e num momento tão difícil como o que atravessamos, nomeado alguém aparentemente sem preencher requisitos mínimos para ocupar o lugar, e com um histórico de avanços e retrocessos, de atitudes polémicas, de pusilanimidade manifesta enquanto presidente da câmara em Lisboa.

A escolha pode significar muita coisa, como, entre tantas, mais ninguém ter aceitado o lugar ou haver dívidas políticas a pagar. Do que não podem restar dúvidas, é de que quem o nomeou considera as comemorações da vitória do Sporting, a fuga de informação para a Rússia e tantas outras contas do rosário de disparates como governação legítima, eficaz, absolutamente... normal.

Como já cansa ouvir arautos da desgraça dizer que só esperam estar enganados, direi que não o espero, que não o creio e que quase o não desejo, quanto mais não seja para permitir, finalmente, pôr a nu o que para aí vai de falta de competência, de gestão das aparências, indo-se ao ponto de anunciar ministérios criados à pressa para, talvez em nome da alardeada e artificialmente criada paridade, acomodar uma ou outra militante agora inevitavelmente candidata a qualquer coisa, mas que, ouvindo-a vezes e mais vezes em programas de debate, pouca coisa, além daquilo que toda a gente diz, parece ter para nos contar.

Já nem falo, porque não vale a pena, das outras não-surpresas do novo Governo como o tonitroante e abrutalhado barbudo, ou a educadora de jardim de infância hoje investida em tão altas funções; das tremuras e suores frios que me assolam quando me lembro da COVID, da invasão da Ucrânia e da fenomenal equipa designada para dos respetivos impactos nos proteger de outras vicissitudes, perversões, corrupções.

Fica-me, seja como for, a sensação de que o Senhor Primeiro-Ministro pouco tempo terá dedicado a pensar, seriamente, na composição do novo Governo; que terá pagado uns favores a uns, e que, ficando ou entrando, outros lhe terão feito favores; e que, como sempre, as cobaias de todas estas trocas e baldrocas serão... as de sempre.

Uma vez mais, teremos de pagar para ver. Como no poker em que a política, cada vez mais, se transformou.

terça-feira, 29 de março de 2022


Médicos sem Fronteiras à Moda Tuga

Desde pequeno que me ensinaram a nada esconder do meu médico, pois só assim poderia ele garantir, dentro daquilo que é humanamente possível, um diagnóstico correto e uma terapêutica eficaz. Esta necessidade de uma comunicação plena e perfeita é tão importante na relação entre médico e paciente, que, para que flua sem barreiras de qualquer espécie,  se tornou necessário instituir a figura do segredo profissional, indispensável ao exercício da profissão.

Como explicar, neste quadro, a recente decisão da Ordem dos Médicos de permitir que clínicos ucranianos refugiados em Portugal aqui exerçam medicina sem um razoável domínio da língua portuguesa? *) Num tal cenário, que comunicação irá, efetivamente, acontecer?

Constituída que é por médicos, com quem se encontra, antes de mais, comprometida a Ordem? Qual a sua missão? O que se espera, primeiro, da Ordem dos Médicos: que se ocupe do acolhimento dos refugiados ucranianos, ou que cuide de assegurar a qualidade do exercício da medicina em Portugal?

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Será legítimo esperar que o inglês da esmagadora maioria dos utentes dos hospitais e centros de saúde portugueses - para não falar da boa parte da população mais idosa ainda analfabeta... - lhes permita, com um mínimo de fiabilidade, informar um médico ucraniano dos males que o afligem?

Serão, unicamente, os males físicos os que um médico trata? Apontando para o pescoço, talvez o paciente dê a entender que lhe dói a garganta... ou será uma bem mais grave dificuldade em engolir? Neste caso, como saberá o clínico se se trata de uma consequência de tensão emocional e quais os fatores que poderão estar a provocá-la, ou de algo bem pior? Passar-se-á a fazer exames por tudo e por nada? Será isto que a Ordem quer para a medicina em Portugal?

Esta autorização popularucha, demagógica e deletéria da Ordem não encontra justificação minimamente aceitável na vontade de acolher e integrar as vítimas da guerra, antes inevitavelmente deteriora a qualidade dos cuidados de saúde enquanto os médicos ucranianos "vão aprendendo português", nas palavras do Senhor Bastonário que nada mais exemplificam do que a lastimável propensão bem portuguesa de pôr o carro à frente dos bois.

Que justificação poderá, ademais, encontrar-se para desafiar o Estado, "através dos professores, a organizar cursos de português para estes médicos ucranianos"? Através dos professores, ou através dos doentes, assim trespassados por uma formidável espada no seu direito a ser devidamente tratados em segurança?

Quanto tempo levarão estas acções de formação? Entretanto, transforma-se em vítimas os pacientes?

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Mesmo que a ideia seja trabalharem junto a colegas portugueses, sempre acabarão aqueles médicos por empecilhar e atrasar o trabalho destes, agora arvorados em tradutores - partindo do princípio de que, numa área tão sensível, ucranianos e portugueses se entendem na perfeição num idioma que não é o deles.

Além das consultas, haverá, por certo, na medicina tarefas que estas vítimas dos desmandos de um alucinado e narcísico ditador possam desempenhar sem comprometer a qualidade da prestação médica do Serviço Nacional de Saúde. Se não houver, que tal o mesmo Estado que irá promover o ensino da língua portuguesa pensar em subsidiar essa formação e assegurar o sustento dos médicos a quem a formação se destina?

Meritório é, sem dúvida, o esforço benévolo de integração de refugiados de um tão desgraçado conflito, mas jamais à custa da saúde dos que cá vivem, incluindo dos imigrantes ucranianos por cá há muito estabelecidos. Todavia, e independentemente da elevação dos ideais que possam ter estado na génese da disparatada decisão anunciada pela Ordem, nada, mas nada, deverá permitir que estes possam intervir, negativamente, naquilo que é sagrado em tão nobre ocupação.

"Estamos de acordo que esses médicos tenham integração enquanto estão a aprender a língua, justamente depois de terem os seus cursos reconhecidos pelas faculdades de medicina, e que possam, com a ajuda dos seus tutores, contribuir para o Serviço Nacional de Saúde" não passa, pois, da expressão, por parte do Senhor Bastonário, de uma permissividade, de um facilitismo, até de uma certa ignorância que, através da Ordem, ao exercício da medicina nada de bom prometem trazer.

segunda-feira, 28 de março de 2022


Ericeira: A Praia dos Ouriços

Ericeira, praia dos ouriços

"Seu nome provem-lhe de muitos ouriços do mar que ha na sua costa, aos quaes antigamente se chamava eyriço. Até as suas armas são um ouriço do mar, em campo de prata. Mas no chafariz que fica ao S. da villa, e que foi construído no melado do XV século, reconstruído em 1828, estão como armas da villa — um caranguejo em campo branco. (Talvez fosse ignorância do canteiro fa- zendo um caranguejo cm logar de um ouriço.) Outros dizem que antigamente se dava o nome de eyriço ao earangueijo)(...).

Foi senhor d'eta villa, D. Antonio I, prior do Crato (...). Foi praça d'armas marítima e tem um forte, hoje desguarnecido.

Este forte foi mandado construir por D. Pedro 11, pelos annos de 1700. Está bem conservado. A qui desembarcou, em 1589. D. Antonio I, com parte das tropas inglezas que lhe deu a rainha Isabel (desembarcando o resto em Peniche) para arrancar das garras do matreiro Philippe II o reino de Portugal, que este havia usurpado. Tendo porem D. Antonio feito um vergonhoso tratado com aquella rainha, pelo qual Portugal ficava sendo uma colónia ingleza, o povo (que sabia isto) não se moveu a favor d'este pnncipe infeliz, que teve de abandonar a empreza, reembarcando em Cascaes, e não tornando a tentar fortuna, para recuperar a coroa.

Ainda que a Ericeira seja, como é, uma povoação muito antiga, não ha noticia da sua origem, nem tem vestígio algum d'anti- guidades. Posto que esta villa seja pequena, é muito aceiada, as ruas são muito bem calçadas, as casas muito bem caiadas e interiormente muito limpas. É muito farta de géneros alimentícios, óptima fructa, excelleate e muito peixe, e tudo barato. A agua é que não é lá muito boa, e a gente riea d'aqui, a manda buscar á Tapada de Mafra (a 100 réis cada cântaro)".

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno"
Livraria Editora de Matos Moreira & Companhia - Lisboa, 1874 - vol.3, pág 43

sábado, 26 de março de 2022


Chamo-lhe, ou Chamo-o de?

"A forma 'chamou-o de tonto' não passa da deturpação brasileira da expressão 'chamou-lhe tonto'

"Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e,
com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões que apenas se prendem com convenções sociais.
Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar
"


Deixando muito boa gente de cabelos em pé, com cada vez maior frequência, encontramos, faladas ou escritas, expressões como “chamou-o de tonto”. Seguem-se-lhes, ora o ataque de quem sustenta que tais expressões apenas são válidas no Brasil, ora a defesa de quem recorre à estafada cantilena da anterior utilização por este ou por aquele autor português - amiúde citando uma produção posterior à invasão, pela telenovela brasileira, do inconfundível espaço cultural genuinamente português

O Predicado

Assim, e como quase sempre acontece nestas coisas da língua pátria, nenhuma fundamentação válida é apresentada para uma ou para outra posição, resumindo-se cada uma à mera e inane, embora legítima, expressão da opinião subjetiva dos respetivos defensores ou detratores.

O raciocínio lógico que, de seguida, aqui se desenvolve, leva a perfilhar a conclusão segundo a qual a forma “chamou-o de tonto” não passa, em boa verdade, da deturpação brasileira da expressão “chamou-lhe tonto, corretamente utilizada na mesma língua portuguesa que, mau grado os tratos de polé que lhe infligem, os brasileiros dizem falar.

- x –

Iniciemos o raciocínio referindo aquilo que é evidente: independentemente das circunstâncias em que o ato é praticado, no caso de que aqui tratamos chama-se, sempre, algo a alguém.

Temos, assim:

  • o predicado composto pela forma do verbo chamar,
  • o objeto (ou complemento) direto algo – o nome, normalmente pejorativo, que se chama –,
  • e o objeto indireto alguém – aquele a quem se chama o tal nome.


A ideia expressa no nosso exemplo, é, pois, a de que alguém “chamou tonto a ele”; e, utilizando, como complemento indireto, o pronome oblíquo átono, essa ideia exprime-se, em bom português, como “chamou-lhe tonto”, assim se concluindo ser esta expressão correta a utilizar, seja por quem for e em que lugar do Globo o vier a fazer.

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Onde e por que começou, então a deturpação para “chamou-o de tonto”?

Jamais o saberemos, mas poderemos pensar em algumas possíveis explicações:

1. O erro poderá ter sido originado, dada a semelhança formal, pela errada associação do ato de chamar algo a alguém com, por exemplo, a ideia de vestir ou cobrir alguém, como em “vestiu-a de branco”. 

Inexiste, porém, qualquer confusão legítima entre esta expressão, corretamente construída, e “chamou-o de tonto”, já que, no primeiro caso, associado ao objeto direto “-a” (por ela) temos o complemento circunstancial de modo “de branco”, e não uma estranha espécie de objeto indireto que, no segundo caso, se pretende inadequadamente exprimir com “-o”.

No mesmo exemplo, o complemento circunstancial de modo “de branco” - no sentido de “de tecido branco” - inicia-se, e muito bem, pela preposição “de”.

2. Uma outra causa provável poderá ter a ver com o facto de ser possível chamar alguém para determinado fim, como em “chamei-o para trabalhar comigo”, caso em que o “-o” nos surge, naturalmente, como objeto direto. Mas, neste caso, surge com toda a legitimidade - e sem de -, uma vez que exprime, não aquilo que se chamou a alguém, mas a pessoa (objeto direto) que foi convocada.

Claro está que diversos complementos iniciados por de são, aqui, suscetíveis de enriquecer a ideia, como em “ontem chamei-o, lá de longe, para trabalhar aqui comigo”, sempre se mantendo inalterada a classificação do “-o”. 

No entanto, nada disto tem, no entanto, qualquer relação legítima com o errado "chamar alguém de".

3. Outra explicação poderá residir na semelhança com o verbo apodar, que significa chamar um nome “feio”.

Esse sim, apesar de exprimir, também, uma ideia de transmissão de determinada ideia a alguém, rege a preposição “de”; ao contrário do que acontece com o verbo chamar, mas de forma idêntica ao que sucede, por exemplo, com os verbos notificar e informar, quando utilizados com o mesmo objetivo.

Enfim, seja qual for a origem do cada vez mais recorrente erro chamar alguém de, do ponto de vista lógico, racional, substantivo, que deve presidir à formação e desenvolvimento de qualquer idioma, poucas dúvidas poderão restar de que, quando utilizado para veicular uma ideia a alguém, o verbo chamar não rege a preposição de.

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Não obstante, e tal como em múltiplas outras vertentes da vida, também na gramática nem todos os preceitos são válidos independentemente das circunstâncias em que são aplicados.

Não se conclua, assim, que a preposição “de” deve ser, obrigatoriamente, excluída de frases construídas com o verbo chamar, no sentido de qualificar alguém.

De facto, este ato de chamar algo a alguém ocorre, inevitavelmente, em circunstâncias como, por exemplo, as de lugar relativas àquele que chama, as quais, quando expressas na frase, operam como complementos que devem ser introduzidos pela preposição “de”.

Se decidirmos referir, por exemplo, circunstâncias de lugar, o nosso “chamou-lhe tonto” inicial evoluirá para “de longe, chamou-lhe tonto”; ou, quanto às circunstâncias de modo, para “chamou-lhe tonto, assim de chofre”, sendo diversas as possíveis variantes.

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A posição aqui assumida vai, aliás, de encontro àquilo que sucede com outros verbos que exprimem a transmissão de uma ideia a alguém e, pelo menos nesse sentido, não regem preposição, tais como dizercomunicartransmitirpedir e oferecer, entre outros.

·         Disse-lhe o que pensava”, e não “disse-o do que pensava

·         Comuniquei-lhe a minha posição”, e não “comuniquei-o da minha posição

·         Transmiti-lhe a informação”, e não “transmiti-o da informação

·         Pedi-lhe ajuda”, e não “pedi-o de ajuda

·         Ofereci-lhe os meus préstimos”, e não “ofereci-o dos meus préstimos

·         Chamei-lhe tonto”, e não “chamei-o de tonto

Desafortunadamente, porém, começa a ser comum encontrar, em sítios de cariz alegadamente cultural - que aqui não serão nomeados -, esta última construção chamar alguém de, até em escritos que, embora de forma aligeirada, abordam temas importantes da língua portuguesa, tais como a formação ou utilização de vocábulos ou o enunciado e a aplicação de regras gramaticais.

Na elaboração do que esses sítios culturais afixam, regularmente colaboram emergentes linguistas que não hesitam em iniciar parágrafos por "E", ou em dinamizar um monótono texto com um popularucho "Bolas!" ou outra expressão de gosto duvidoso e pretensamente coloquial.

Alguns insistem, mesmo, em exibir, com indesejável frequência e em desproporcionadas dimensões, imagens dos seus desinteressantes rostos em pose que talvez considerem sedutora, encabeçando textos mais ou menos emotivos e em tom propositadamente acessível. Esperarão, porventura, dessa forma captar aquele auditório mais amplo e interessante - leia-se: que " mais cliques" -, mas que se não mostra capaz de entender explicações mais elaboradas, por absoluta falta de substrato intelectual, cultural e teórico que lhe permita interpretá-los.

Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e, com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões vocabulares que, afinal, têm a ver, não com regras gramaticais, mas com meras convenções sociais.

Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar.

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Pede-se algo a alguém, tal como se chama algo a alguém.

Pede-se-lhe, e chama-se-lhe.

Não há que enganar.

* *

Tudo isto, naturalmente, sem negar aos nossos irmãos brasileiros o mais amplo e sedimentado direito de se exprimir como bem entenderem, naquela sua língua que tão parecida é com a nossa.

(continua aqui)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará