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sábado, 5 de fevereiro de 2022


Acerca da Língua que Falam no Brasil

"Há muito que se não fala português no Brasil, antes um idioma estrangeiro,
aparentado com o português da Europa, mas muito próprio e intimamente ligado à cultura,
também ela muito própria, de um País Irmão
"

"O português europeu atravessa um subserviente e galopante processo de quase patológica permeabilização, não apenas a vocábulos, mas a sistemáticas violações da própria construção frásica, das mais elementares regras gramaticais"


Nestes tempos em que, por tudo e por nada, se fala de igualdade – mesmo a despropósito, mesmo quando aquilo com que se acena chamando-lhe igualdade, com igualdade pouco ou nada tem a ver -, cada vez mais se procura disfarçar com uniformizadas e supostamente identitárias roupagens as diferenças estruturais entre os seres.

Situações com normalização

A moda aparece, naturalmente, como a manifestação por excelência desta prática, como uma tentativa de parecermos o que não somos, mas gostaríamos de ser. Nomeadamente iguais àqueles que cada um idolatra ou admira ou, mais simplesmente, que este novo exército de assim chamados influencers as mais fracas personalidades manipula, em mais ou menos chorudo proveito próprio e a seu bel-prazer.

Situações há, naturalmente, em que a normalização das roupagens é válida, indispensável até, como no caso das forças armadas ou de segurança e de outras organizações orientadas por um, legítimo ou não, objetivo comum. A farda surge, nestes casos, como uma forma de facilmente identificarmos as pessoas nelas filiadas e, também, como a manifestação de uma identidade de missão, de partilha de objetivos, de proximidade cultural, enfim, do que quer que seja que, uns com os outros, nos possa fazer parecer.

Será, assim, absolutamente descabido, patético, até, que, num esforço à partida vão de aparentar identidades que não têm, elementos de grupos distintos, pessoas de diferentes organizações, com diferentes missões, objetivos ou, até, credos vistam a mesma farda ou ostentem os mesmos símbolos. Tal opção, em nada contribuirá, evidentemente, para convencer quem quer que seja da efetiva existência de uma igualdade ou proximidade apenas desejada ou sonhada, apenas servindo, bem pelo contrário, para lançar uma indesejável, mas inevitável, confusão junto de quantos em tais preparos os verão.

Trata-se de uma questão do mais elementar bom senso, tão evidente e pacífica, que não necessitará de ulterior desenvolvimento ou discussão.

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O idioma que falamos é a farda, a roupagem cultural e civilizacional que envergamos.

Com mais ou menos pronúncia daqui ou dali, a língua mãe constitui, não apenas um identificador da nossa provável origem geográfica, como da cultura no seio da qual viemos ao Mundo e, pelo menos em determinada fase da vida, continuámos a viver.

Fenómenos de aculturação
Não é por, em determinada idade ou etapa da existência, aprendermos a falar, também, inglês que passamos a ser ingleses; isto, sem prejuízo de, com o correr do tempo, podermos acabar por absorver aspetos da cultura própria dos países onde se fala algum idioma que formos aprendendo, mormente se, simultaneamente ou não, acabarmos por lá passar algum tempo.

Fenómenos de mais ou menos acentuada aculturação, num e noutro sentido, inevitavelmente ocorrem, também, entre os países responsáveis pelos primórdios da diáspora europeia*), por um lado, e as colónias, de agora ou de outrora, por outro.

Dada a considerável distância que as separava dos países colonizadores e por serem as viagens tão difíceis e demoradas e, durante séculos, assim terem permanecido, novas culturas, substancialmente diferentes das autóctones e das europeias, emergiram dessas colónias inicialmente subjugadas aos ditames e costumes do invasor.

Após conturbados tempos de confronto e, por fim, de forçada harmonização, natural se torna que hajam culminado, na maior parte dos casos, em anseios de independência e na sua concretização.

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Um dos aspetos essenciais desta diferenciação cultural terá sido a degeneração ou imperfeita aprendizagem locais da língua materna dos colonizadores, a pontos de, não raramente, já pouco ter ela a ver com a que continua a falar-se na Europa, seja em parte significativa do vocabulário, seja na construção frásica ou na generalidade daquilo que à gramática possa interessar.

Tal é o caso inequívoco do idioma atualmente falado no Brasil, caracterizado por um liberalismo quase caótico relativamente aos mais elementares cânones da língua falada e escrita em Portugal.

As rotas seguidas por um outro idioma – porque de dois bem distintos já se trata - mostram-se a tal ponto divergentes que, praticamente, fazem secar, na América, as raízes portuguesas do idioma, não apenas por força da distância geográfica entre o Brasil e Portugal, como da significativa dispersão geográfica e diversidade cultural da República Federativa, que tornam praticamente impossível evitar, a nível linguístico e entre os seus diversos Estados, a propagação de cada vez maiores arbitrariedades e deturpações.

O idioma falado no Brasil encontra-se, assim, num particularmente intenso processo de formação baseado na degenerescência da língua portuguesa que lhe serviu de base, enquanto o português europeu atravessa um subserviente e galopante processo de quase patológica permeabilização, não apenas a vocábulos, mas a sistemáticas violações da própria construção frásica, das mais elementares regras gramaticais, o qual, finalmente, vai sendo objeto de algumas, embora pontuais e tímidas, chamadas de atenção*).

As próprias matérias de jornais brasileiros*) que, dando conta do facto*), referem que uma das causas residirá na “influência de youtubers brasileiros, os mais assistidos pelos miúdos portuguesesdemonstra bem, num só parágrafo, que ponto atingiu, já, a diferenciação.

Não é verdade, porém, que só entre os jovens o fenómeno se verifique, nem que tenha começado agora esta evolução. Assim entender, seria olvidar o efeito dramático produzido, décadas atrás, pela transmissão, quase em contínuo, de telenovelas brasileiras nos principais canais generalistas da televisão portuguesa, que, desta forma, deram azo a que muita gente começasse, com toda a naturalidade, a dizer que o personagem virou isto ou aquilo, que é impossível não adorá-la ou que é muito péssima, e já não saiba, sequer, ao certo onde por o se numa oração.

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Esta modesta amostra não passa de uma ínfima fração do problema que vivemos no dia a dia, e que não resulta, unicamente, de uma patega excrescência da ação de um governante mais exibicionista ou que tenha querido deixar a sua marca através da celebração de um suposto acordo ortográfico desconexo, arbitrário e elaborado ao arrepio da mais elementar lógica.

Um acordo que os brasileiros nem cumpriram… e para quê? Acaso iriam passar a escrever electrónico em lugar de eletrônico? Para quê, então, fingir que, quanto a esta ideia parva de homogeneizar o que não pode ser homogeneizado, alguma coisa de válido alguém, de facto, pretende ou alguma vez pretendeu fazer?

Arbitrário até na estrutura, o Acordo não passou, em boa verdade, de uma também arbitrária tentativa de impor a diversos países uma das tais fardas, uma roupagem que nos convencesse da existência de uma razoável homogeneidade cultural única entre todos países cujos idiomas nasceram do português. Como se fosse verdade tal besteira.

Dizer que existem traços comuns estruturais, evidentes, entre culturas do Brasil, dos PALOP, de Timor e de Portugal não passa de um discurso politicamente correto, mas vazio; de um despudorado atirar de poeira aos olhos - mas, apenas, de quem os tiver fechados, já que, ainda que, entreabrindo-os, inevitavelmente o contrário constatará.

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Há muito que se não fala português no Brasil, antes um idioma estrangeiro, aparentado com o português da Europa, mas muito próprio e intimamente ligado à cultura, também ela muito própria, do País Irmão, porque, indelevelmente ligados pela História, Brasil e Portugal são e serão países irmãos.

Mas, gémeos, não são: jamais serão. Sobretudo tendo em conta quem, para os governar, livre e democraticamente os brasileiros escolheram na mais recente eleição*).

* *

Sempre há, no entanto, que reconhecer que, acordo ortográfico à parte, a degeneração vocabular e a propensão fácil à descontrolada polissemia não é, exclusivamente, importada, nomeadamente do Brasil.

Por cá, e sem ajuda externa, vamo-nos aproximando, a passos largos, do dia em que qualquer palavra significa qualquer coisa, a ponto de quase deixarmos de nos fazer entender.

(siga aqui a continuação)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


Não perca, no correspondente separador no topo desta página,
outros artigos polémicos sobre diversos temas relacionados com a

LÍNGUA PORTUGUESA

domingo, 30 de janeiro de 2022


O Circo sem Fim

Cumpriu-se, ontem, o dia de faz-de-conta, o chamado 'dia de reflexão'. Um dia miserável para os órgãos de comunicação, em que, já e ainda, não se pode 'fazer' política; em que jornalistas, comentadores e politólogos não podem atirar-nos as suas já gastas e mais do que previsíveis opiniões, baseadas em sondagens cada vez menos credíveis e em desempenhos enviesados e esquivos dos protagonistas e daqueles que gostariam de, um dia, vir a sê-lo.

Hoje, o circo mediático volta à bilheteira, já que o 'dia de ansiedade' se segue ao 'dia de reflexão'.

Ansiedade dos candidatos na corda bamba e dos que se julgam a um passo da eleição. Ansiedade das as agências de marketing e das de sondagens, que nas urnas vão ver decididos os negócios da próxima campanha. Ansiedade para os compadres dos eleitos e dos perdedores também. Ansiedade para os adeptos do clube político, que, como se a final de ontem da Taça da Liga não bastasse, não sabem se vão sair em ombros ou humilhados, se vão ter ou não coragem para aparecer no café no dia seguinte ao do jogo... que dizer, da eleição.

O circo mediático suspendeu-se ontem. Hoje regressa com o ar beatífico, confiante e bem disposto do candidato com o boletim meio introduzido na urna à espera do fotógrafo; com declarações firmes que fazem lembrar as do recentemente derrotado candidato à Câmara Municipal de Lisboa, a meio da tarde do dia da eleição; com os discursos de vitória e de fingida vitória.

A partir de amanhã, mais forte e barulhento fica o circo, com dias e dias dedicados à especulação e à cacha quanto às negociações em curso que dificilmente do pântano nos tirarão. Tudo isto, com muita, muita publicidade à mistura, que se não pode parar o circo da desinformação.

Os acrobatas, são os candidatos. Politólogos e quejandos, os palhaços e restantes atores.

Os animais... nós, desgraçados e enganados eleitores.

sábado, 29 de janeiro de 2022


Um dos Motores da Abstenção

 

Com toda esta reflexão sobre o que fazer amanhã, a adrenalina vai-se, a preguiça vem, e o melhor acaba por ser mesmo ficar por casa

A ninguém parece ter ocorrido que, com o voto em mobilidade, se gerou uma intolerável situação de desigualdade entre os eleitores que a ele recorrem e não têm direito a dia de reflexão e os que votam uma semana depois, no dia marcado para a votação principal estes com direito a dia de reflexão

 

 LEIA  AQUI  O PRIMEIRO ARTIGO DESTA SÉRIE DEDICADA AO ATO ELEITORAL!  

Hoje é mais uma daquelas vésperas de eleições.

Comícios animados
Ontem, ainda houve comícios animados, declarações inflamadas, comentários repetitivos por parte de senhores muito eruditos e de ar enfadado. Se a votação acontecesse no dia de hoje, muitos dos menos motivados ainda acorreriam, possivelmente, às urnas, de alguma forma espevitados pela animação televisiva da véspera; ou pela barulheira dos megafones das carrinhas a despejar pregões desesperados, ao som daquelas músicas das revoluções, de mais do que prováveis perdedores. Quanto mais não fosse, alguma adrenalina clubística ainda aos eleitores correria nas veias, pelo menos em quantidade suficiente para, no ato eleitoral, assegurar a participação.

Mas, não. Hoje, ainda não há votação.

Hoje é dia de reflexão; ou seja, de pegar na carripana e na famelga e ir dar a voltinha dos tristes, se o combustível no fundo do depósito ainda chegar; ou de ir até ao café ver quem por lá estará para uma bisca ou dois dedos de conversa; ou de ficar em casa espapaçado a ver a bola, com um pratinho de tremoços ou de pistachos e uma jola na mão. Ou para acabar aquela camisola para o filho da prima que nasceu na semana passada; ou para dar mais um avanço naquele trabalho que já devia estar pronto e nunca mais está porque, com tanta politiquice, até me falta inspiração.

Para ir à terra, não , porque amanhã é dia de ir votar, que me esqueci daquilo do voto antecipado, e ir e vir no mesmo dia era mesmo uma estafa e uma grande confusão.

A menos que…

A menos que a gente se marimbe nisto tudo, e vá mesmo até à terra, ou, se houver fundos para tanto, dar uma escapadela a um turismo rural ou de habitação. Depois vota-se, numa outra altura em que haja eleição. Tanto faz, votar numa ou noutra eleição. Ou nem votar, sei lá... Corre tudo sempre mal... e por aí fora, em igualmente elevada cogitação.

Com estas obrigatórias trinta e duas horas de reflexão sobre o que fazer quando as urnas abrirem – porque é nisto que pensa toda a gente que, de um modo geral, se está bem nas tintas se irá votar neste ou naquele partido ou coligação -, a adrenalina vai-se, a preguiça vem, e o melhor acaba por ser mesmo ficar por casa, que se calhar até nem está sol e ainda acabamos mas é por passar uma eternidade naquela fila imensa porque, logo por azar, a mesa onde voto tem imensa gente inscrita e vou sair lá desfeita e aflita dos joanetes ou de coisa ainda pior.

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Anacronismo
O anacronismo popularmente denominado dia de reflexão é imposto pela aplicação conjunta dos artigos 53º, 61º e 141º da Lei n.º 14/79, de 16 de Maio, denominada Lei Eleitoral para a Assembleia da República, tão velhinha, tão velhinha que ainda diz que “aquele que no dia da eleição ou no anterior fizer propaganda eleitoral por qualquer meio será punido com prisão até seis meses e multa de 500$ a 5000$” (para quem não sabe o que quer dizer o $, a seguir aos números, aquilo é o valor numa moeda que existia antigamente, chamada escudo português, correspondendo os dois valores a 2,494€ e 24,940€, respetivamente). Pena suspensa, e multas "pesadas", a valores de hoje, como se vê...

Em tempos há muito idos, quando esta ideia de democracia era, até há bem pouco antes desses tempos, uma coisa perigosa, proibida, e da qual só em sussurro se ouvia falar, poderia admitir-se, embora não sem estranheza, que as três semanas que então se passava em campanha eleitoral pudessem gerar tamanha confusão nos pobres espíritos dos atarantados e ainda entusiasmados eleitores; que necessitassem eles de uma pequena pausa para assentar ideias e, nesses tempos ainda conturbados, decidir, com a lucidez possível a quem iriam confiar o seu voto, acreditando, como acreditavam, no programa que cada um tinha na mão..

Mas hoje, Senhores?

Quem, apesar da descrença, ainda se dá ao trabalho de ir votar num partido, fá-lo por clubismo, por compadrio, por um sem fim de possibilidades igualmente lastimáveis, ou por uma cega, intuitiva, irracional crença em que "aquele é que é"!

Qualquer que seja o caso, neste dia de reflexão o eleitor sabe, há muito tempo, em quem irá votar, em pouco nada influindo - a despeito dos sobressaltos das caricatas sondagens com 152 inquiridos... - aquilo que, das bocas dos candidatos, o mesmo eleitor ouviu nas semanas que acabam de passar, uma vez que já em nada acredita daquilo que lhe vêm prometer quantos políticos - tarimbeiros, caloiros ou apenas prospetivos - por aí viu desfilar.

Já houve projetos apresentados no Parlamento*) para acabar com esta idiotice do dia de reflexão que, nos nossos dias, apenas serve para fazer arrefecer a vontade de ir votar; já constitucionalistas*) que, inicialmente, com a sua existência terão concordado ou a terão, até, defendido, disseram que, agora, o melhor seria esquecer o assunto e deixar a campanha prolongar-se por mais um dia, até à véspera da eleição.

Assim sendo, numa altura em que a abstenção vai devorando, com crescente voracidade, as raízes da democracia, por que razão ainda se não tratou de alterar estas disposições que, sem qualquer utilidade, impõem uma pausa de arrefecimento entre o já de si cada vez menor calor da campanha eleitoral e o momento em que – suprema maçada! - lá teremos de dar uma saltada ao local da votação?

- x –

O arrastar de decisões, o receio de mexer naquilo que está, porque as coisas já estão complicadas e não temos tempo a perder com essas minudências, não será, talvez, a melhor demonstração de que, em Portugal, a democracia funciona - ou, pelo menos, de que tudo se faz para a tornar racional, efetiva, competente ou, pelo menos, para a manter em funções.

A falta de interesse na análise da situação é tamanha que ainda a ninguém parece ter ocorrido que, com o voto em mobilidade*) – coisa com que, por todas as razões e mais algumas, ainda ninguém, sequer, sonhava quando foi elaborada a Lei Eleitoral -, se gerou uma intolerável situação de desigualdade entre, por um lado, os eleitores que a ele recorrem e não têm direito a dia de reflexão, e, por outro, aqueles que votam uma semana depois, no dia marcado para a votação principal, estes com direito a dia de reflexão.

Quem votou antecipadamente no passado Domingo, fê-lo no meio de comícios, de comentário político, de declarações de candidatos, de tudo e mais alguma coisa destinada, precisamente, a influenciar o voto, sem qualquer legal proteçãoPara não falar, evidentemente, no bombardeio nas redes sociais, impossíveis de controlar totalmente e onde sempre acabam por aparecer apelos na véspera da votação.

Não estará na altura de olhar, de alto a baixo, para a Lei Eleitoral e, aproveitando para converter os valores para os euros que já se utiliza há vinte anos, repensar toda mecânica da eleição, com especial atenção a esta e a outras formas, eventualmente mais eficazes, de voltar a dar algum significado ao voto democrático, tudo fazendo para reduzir, drasticamente, a abstenção?

sábado, 1 de janeiro de 2022


A Falácia da Democracia Portuguesa

"A matéria-prima da liberdade é a educação"

"Longe de ser perfeita, a democracia não é segura, mas é a menos perigosa; não é pura,
mas é a menos impura. Em países como o nosso peca, no entanto, por ser sustentada por um eleitorado
cujo efetivo nível académico e cultural não passa de uma miragem construída por políticos para parecerem bem na fotografia
"

"A democracia só funciona quando conta, maioritariamente, com eleitores razoavelmente ensinados, educados
e politicamente empenhados e esclarecidos. Nunca, quando assenta numa turba desinteressante, desinteressada e
preferencialmente dedicada às notícias da mais recente competição desportiva, de preferência com muitos cartões de diversas cores,
insultos e pancadaria, para financiar os eternos comentadores, para animar a coisa"


Combinado ou não com lavagem de dinheiro, a ser verdade o que a comunicação social vem noticiando sobre o assunto*) – na linha, aliás, de desabafos, não desenvolvidos e eficazmente desencorajados, que, anos atrás, na imprensa*) e  na blogosfera*) se podia ler -, um alto dirigente de um dos principais clubes desportivos portugueses recorre, regularmente, aos serviços de bruxos, para prever ou influenciar resultados da equipa de futebol.

A credibilidade destas notícias é, já se sabe, a habitual nos nossos dias. Não deixa, no entanto, de ser relevante o facto de o diz-que-disse se arrastar ao longo de vários anos e de, agora, os factos aparecerem divulgados no âmbito de averiguações oficiais, necessariamente mais credíveis, que poderão, por uma ou outra rzaão, levar a ações penais*).

Acresce que uma leitura perfunctória dessas peças noticiosas poderá, com toda a naturalidade, levar-nos a, rapidamente, nos desinteressarmos do aliás desinteressante assunto, quando muito com a conclusão elementar de que, de verdadeiramente desportiva, a postura da pessoa muito pouco poderá ter (hipoteticamente, que diferença haverá, de facto, entre procurar falsear um resultado subornando um árbitro e fazê-lo recorrendo à bruxaria, quando é certo que, no espírito dos prevaricadores, sempre se estará a visar mais uma trafulhice entre tantas outras de que ouvimos falar, relacionadas com um desporto que alguns bem intencionados ainda gostariam de ver límpido e impoluto?)

O pior de tudo isto, é que, se quisermos complementar, com uma breve consulta à Wikipedia *), a leitura dessas notícias, ficaremos a saber que o ilustre suposto cliente dos bruxos é, além de personalidade proeminente na sociedade portuguesa, um menino bem nascido, ensinado em bons colégios particulares. Mesmo sem a Wikipedia, basta atentar na forma como a dita personalidade se exprime em pontuais aparições em entrevistas e afins para podermos concluir tratar-se de uma pessoa informada, esclarecida, de nível cultural muito acima da média, educada, civilizada… que nem por isso deixará de ir à bruxa com a mesma facilidade com que vai a Fátima pedir ajuda a alguém que muitos parecem considerar a padroeira dos clubes de futebol.

Perante esta possibilidade, veio-me ao espírito a inevitável pergunta: quantos mais destes cidadãos supostamente esclarecidos e evoluídos por aí haverá, como ele, e mais educados e ensinados do que ele, até?

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Não deixa de ser verdade que o dirigente do nosso exemplo não detém um grau académico de nível superior; mas não é menos verdade que, no que à educação e à cultura diz respeito, merece lugar de destaque, muito acima da mais grossa fatia dos licenciados que vemos por aí.

Se for verdade
A ser verdade o que se diz e escreve sobre o tema, teremos, pois, um bom exemplo da enorme falácia, de consequências facilmente adivinháveis, que consiste na crença de que quase obrigar todos os jovens a estudar até mais não poder é essencial para assegurar o funcionamento em pleno da democracia, designadamente em Portugal. Mesmo sabendo que a oferta de emprego condigno é muito escassa e é menos que diminuta a probabilidade de se concretizar a carreira profissional com que sonharam, encorajam estes jovens pouco informados e pouco esclarecidos a continuar os estudos até ao ensino superior, nomeadamente no pressuposto falso e enganador de que a aprendizagem de nível superior tem, como efeito imediato e indissociável, o esclarecimento dos estudantes eleitores, designadamente quanto à capacidade de adquirir a maturidade política suficiente para garantir o voto em liberdade, em consciência e de forma razoavelmente informada e esclarecida.

Independentemente do nível de estudos e do grau de erudição, por parte da mole humana, de proporções pouco divulgadas, que despende rios de dinheiro com os mais do que discutíveis mas principescamente pagos préstimos dos ditos videntes, o exercício do direito de voto em eleições democráticas parece, antes, caracterizar-se pela escolha de quem legisla e irá governar segundo os mesmos critérios básicos, elementares, idiotas, apavorados, adotados nas decisões de consultar estes magos. Vivemos, na verdade, no meio de uma população fortemente permeável à manipulação pelo marketing - seja ele comercial, feiticeiro ou partidário - e, claro, ao espetáculo mediático que técnicos altamente especializados na arte do engodo encenam para os atores políticos poderem mostrar o que, maioritariamente, não são, e que se encontram em patamares de excelência e de competência a que jamais conseguirão chegar.

Encenam estes técnicos, magistralmente, campanhas eleitorais que nada esclarecem quanto às ideias e aos princípios, antes se tornando progressivamente mais focadas na capacidade de se exibir, na tendência para o estardalhaço por parte de quem os partidos escolhem para por eles dar a cara como candidato em sucessivas eleições. Isto, porque qualquer político muito bem sabe que são mínimas as probabilidades de sucesso nas urnas sem o espetáculo pimba, sem as provocações gratuitas dirigidas aos adversários, sem os acalorados debates denegrindo a qualidade dos opositores... e com pouco ou nada sobre linhas programáticas que, ao fim e ao cabo, a poucos interessam, que quase ninguém entenderia, e que fazem muita gente mudar de canal quando a conversa envereda por aí, levando a que boa parte dos telespectadores deixe de conseguir descodificar e, muito menos, assimilar o que nela é dito.

A ditadura é em mais calma, que remédio. Mas terá de ser tão pateticamente animada e extremada a democracia?

Eleições autárquicas
Nas recentes eleições autárquicas, o espetáculo triste foi o que se viu. Nas legislativas que se avizinham, a coisa deverá ser mais subtil, é verdade; mais controlada, já que, afinal, estamos a falar de futuros deputados da Nação, que em muito alta conta costumam ter-se - mesmo aqueles que, quando eleitos, muito pouco ou nada irão fazer nas suas intrinsecamente importantes funções.

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Em abstrato, a ditadura em si mesma nada tem de mal, desde que o ditador seja movido por bons propósitos - o que se tem demonstrado uma impossibilidade prática, bem sei - e, também, competente. Inversamente, a democracia pode revelar-se bem nociva, caso os eleitos apresentem inversas características.

A vantagem inegável e indispensável da democracia, em relação à ditadura, reside, essencialmente, na possibilidade de ser a ação legislativa e governativa sujeita a escrutínio através do voto popular, sempre estando na mão de quem vota pôr fim a eventuais arbitrariedades e desmandos mediante a entrega do poder a outro partido… que, a curto ou médio prazo, os eleitores irão também remover do poder a fim de pôr fim às respetivas arbitrariedades e desmandos; e assim sucessivamente, até que um dia, desgastada pelo uso e abuso de uma alternância exageradamente competitiva que em nada contribui para sedimentar a República e serenar os ânimos, a democracia acabe por soçobrar.

Não se estranhe, assim, quando alguém pretende que “a democracia ainda é a pior forma de governo que existe, se excetuarmos todas as outras”.

Longe de ser perfeita, a democracia não é segura, mas é a menos perigosa; não é pura, mas é a menos impura. Em países como o nosso peca, no entanto, por ser sustentada por um eleitorado cujo efetivo nível académico e cultural não passa de uma miragem construída por políticos para parecerem bem na fotografia, e para assegurar a empregabilidade e o lucro nas universidades, institutos e quejandos que vão criando cursos vazios, de interesse escasso ou nenhum mas que, como qualquer outro, dão direito ao almejado mas insignificante diploma cada vez mais desvalorizado pelos maus tratos que o ensino tem, há largas décadas, sofrido e continua a sofrer em Portugal.

Uma educação efetiva, sólida, encorpada por um ensino estável, responsável, com visão estratégica, ministrado por quem sabe e não por quem se supõe que deva saber, numa sociedade com valores éticos que se sobreponham aos chamamentos da fachada, da ganância e dos mais desprezíveis aspetos de um desejavelmente saudável mercado é requisito indispensável a qualquer verdadeira democracia.

Poderemos não estar, felizmente, a passar pelos horrores de uma ditadura. Mas, tampouco vivemos em verdadeira liberdade numa saudável democracia, antes em algo que cada mais se assemelha a uma anarquia imparável, com contornos de oligarquia - dominada por uma certa elite partidária aparentemente mal formada, corrupta com tiques ditatoriais cada vez mais difíceis de escamotear - e alimentada pela ignorância cívica e pelo desinteresse puro e simples pela ética por parte da uma crescente percentagem da população, adepta fervorosa da abstenção, da demissão da responsabilidade política que, num país democrático, é indissociável da própria condição de cidadão.

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Quando a maturidade, política ou não, de boa parte dos habitantes, mesmo dos mais educados e ensinados, ainda reside nos conselhos da bruxa, quando, se os deixassem, às vacinas prefeririam as mezinhas e, aos medicamentos, as poções; quando pensam pela boca e pela pena dos outros, abdicando do direito sagrado que a democracia lhes confere - pelo qual tantos tanto lutaram e sofreram… - de cada um pensar pela própria cabeça e, esclarecidamente, agir e votar por vontade própria, ninguém poderá insurgir-se contra a ideia de que eleitor é o “indivíduo que goza do privilégio sagrado de votar na pessoa escolhida por outro indivíduo”.

A democracia só funciona quando conta, maioritariamente, com eleitores razoavelmente ensinados, educados e politicamente empenhados e esclarecidos. Nunca, quando assenta numa turba desinteressante, desinteressada e dedicada, antes de mais, às notícias da mais recente competição desportiva, de preferência com muitos cartões de diversas cores, insultos e pancadaria para animar a coisa, e assim garantir a publicidade, impiedosamente impingida aos basbaques, que irá financiar, nas televisões, as horas arrastadas dos eternos comentadores.

Sabia-o muito bem o Presidente do Conselho que, notavelmente, sintetizou a ideia na que se tornou, provavelmente, na mais conhecida frase por ele proferida: "O que nós queremos, é futebol! *)". Foi essa apetência desmedida das massas pelo supérfluo como elemento estruturante da sociedade que lhe deu pulso livre para, juntamente com os seus sequazes, durante décadas privar da liberdade toda uma população que então não sabia e hoje não sabe que a matéria-prima da liberdade é a educação.

A simples ideia de eleições supostamente livres num regime democrático feito de gente civicamente pouco educada e pouco habituada a pensar mais não é do que uma perigosa falácia, de efeitos tão previsíveis quanto indesejáveis. “Como é bom para os governantes que as pessoas não pensem!*)... como um dia disse aquele que foi, porventura, o mais pérfido dos ditadores...


  LEIA  AQUI  O  ARTIGO SEGUINTE DESTA SÉRIE DEDICADA AO ATO ELEITORAL!  

sábado, 25 de dezembro de 2021


A Cozer em Lume Brando... até à Morte

 

Ao cozinhar animais vivos encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração
do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que,
lá bem no fundo, não apenas sentimos como até
 sabemos
, sem necessidade de grande experimentação".

 

Quando era miúdo, ensinaram-me que, tocando com o que quer que fosse, mesmo muito ao de leve, num bicho da conta*), aquilo que, então, me parecia uma espécie de minhoca se encolhia todo, passando a assemelhar-se a uma continha preta - não sei se ainda se pode dizer isto, ou se terei de dizer “uma continha de origem africana”, ao que, um dia, poderá pretender obrigar-me a pirosice a que dão o nome de linguagem inclusiva *), contra a qual diversas vezes já aqui me insurgi. Bem, adiante...

De Tenra Idade aprendemos
Mesmo de tenra idade, qualquer miúdo, por muito burrinho que possa ser, entende existir ali uma relação de ação e reação, um nexo de causalidade: o bicharoco encolheu-se todo porque sentiu alguma coisa que lhe sugeriu que poderia estar ameaçado; e o facto de alguém se encolher, se fechar sobre si, imediatamente sugere, mesmo intuitivamente, a quem tal vê, a forte probabilidade de o sujeito estar a experimentar um forte incómodo.

Nada o provava, evidentemente - mas a simples observação sugeria... -, que essa sensação, presumivelmente desagradável, estivesse associada a uma qualquer forma de sofrimento ou de dor. Afigura-se, não obstante, inegável que, ao fazê-lo dobrar-se sobre se mesmo, o sistema nervoso do bichinho reagia a algo que lhe fora transmitido pelos sentidos. A qualquer idiota não deixaria de ocorrer tão evidente e simples possibilidade.

Dado que tudo aquilo que os sentidos transmitem é sentido pelo sujeito, muito provavelmente, se a sensação for demasiado forte e acutilante – como, no caso dos humanos sabemos ser a provocada por um objeto pontiagudo -, tudo indicará que, proporcionalmente ao tamanho, ao mais leve toque o bicho da conta poderá sentir alguma... dor.

Claro está que, tanto quanto julgo saber, nada disto tinha ainda, nos já longínquos dias da minha infância, sido cientificamente demonstrado; e bem sabemos que, por todas as razões e mais algumas, é recomendável que nada se aceite como certo antes de ser sujeito a adequada validação.

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Sempre haverá, no entanto, que lembrar que não estamos aqui a refletir sobre determinado fenómeno que tenha como objeto uma reação química ou física de seres inanimados, mas sim o que parece tratar-se de uma reação vital de um ser vivo. Se algum de nós apresentar sintomas de um mal-estar evidente, não deixaremos de tudo o fazer para o tratar, mesmo que o quadro clínico não tenha sido objeto de análise científica prévia nem se enquadre em qualquer sintomatologia conhecida. Ou não será assim?

A reação do bicho da conta assemelha-se, com toda a probabilidade, pelo menos à maior parte das reações conhecidas de seres vivos quando lhes são, experimentalmente ou não, infligidos maus tratos suscetíveis de redundar em sofrimento: encolhem-se, esperneiam e, até, gritam, se souberem e puderem gritar como os humanos.

Não sei se as lagostas e os caranguejos se encolhem ou esperneiam quando mergulhados em água a ferver com o intuito de lhes tirar a vida de uma forma ideal à preservação da frescura e do paladar quando transferidos da cozinha para o prato. Nunca tive, na verdade, o discutível prazer de assistir à elaboração de qualquer destes pitéus - que nem aprecio - baseados no consumo, quer de um, quer de outro desses animais ou de outros da mesma ordem.

O que parece, agora, certo - pelo menos a Ciência assim o diz - é que os crustáceos sentem dor, designadamente quando sujeitos a tal tratamento eivado de desumanidade *).

Ser humano de bom senso
Mas não o intuiria já, há muito, qualquer ser humano de bom senso? Não é primeira, entre todas as outras, a humana tendência para comparar, para associar ao que sentimos aquilo que outros poderão estar a sentir? Quando fazemos mal ou bem a quem quer que seja, não o fazemos baseados no conhecimento de que iremos provocar sensação idêntica àquela que experimentaria qualquer de nós?

Quando acariciamos um cão ou um gato, não pressupomos que o que ele sente será algo semelhante ao prazer de recebermos nós idêntica carícia? Que sentido faria a carícia, se assim não fosse, afinal?

Tal como o bicho da conta, a lagosta e o caranguejo são crustáceos: se um é capaz de sentir, de sofrer, como poderá não ter ocorrido aos espíritos mais distraídos que, tal como o primeiro, os últimos haveriam, também, de padecer? E, com eles, qualquer outro animal?

Se, ao que dizem, até os tartígrados*), no seu escasso milímetro de tamanho, sentem, sofrem, se encolhem para se defender dos impactos do ambiente*), entrando num processo de criptobiose*) - eles que resistem às para nós insuportáveis temperaturas, do zero quase absoluto à da água em ebulição, bem como a pressões de seis mil atmosferas -, como não admitir, seriamente, a hipótese de que todos os seres animados sofrem fisicamente, independentemente do grau e do tipo de estimulação?

Ao cozinhar animais vivos*) encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que, lá bem no fundo e contra nós, não apenas sentimos como até sabemos, sem necessidade de grande experimentação.

Convém muito mais concluir que “não, não sentem, com certeza. São tão pequeninos!”, e vá de os torturar até à morte em benefício de uma porventura mais agradável e sofisticada degustação.

Gostamos de acreditar que não sentem, que a Natureza os preparou para esse tipo de morte. Até a Bíblia narra como benéfica a alegada intervenção de Jesus Cristo na Pesca Milagrosa. Mas, não sofreram inevitavelmente, como hoje sofrem, asfixiando até à morte, os desgraçados peixes, ali no chão?

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Esta prática de cozinhar animais vivos tem, no entanto, bem mais que se lhe diga.

Dado que, como disse, não sou versado nessas artes culinárias, sempre acreditei, ingenuamente, que a água era fervida e, uma vez em ebulição, os bichos para lá eram atirados, perecendo quase instantaneamente, embora no meio da maior aflição.

Alguma pesquisa a que procedi quando este tema foi, recentemente, suscitado na comunicação social, fez-me, porém, saber que o que se passa é bem pior, ainda: os desventurados seres são imersos em água fria, que vai sendo, progressivamente, aquecida, passando as vítimas pela fase do banho frio semelhante ao do seu habitat natural, embora sem sal; pela do desconforto de uma água morta onde, normalmente, não habitam; por fim, pelo intolerável e prolongado horror, muito provavelmente acompanhado da noção da morte iminente, de sentir o corpo todo como que rebentar com um calor impossível de descrever e no qual se torna, também, impossível sobreviver praticamente qualquer representante do reino animal *).

Nada disto é novo: na Idade Média existiam métodos de tortura e de lenta e dolorosa privação da vida, por execução, igualmente atrozes, como a fogueira ou o touro de bronze*). Nos nossos dias, temos notícia de pais que matam filhas com água a ferver*), ou com ela as torturam antes de barbaramente as assassinarem*) de outra forma.

Mas, será isto, este tipo de seres que, verdadeiramente, somos ou queremos ser? Nós, que tanto nos preocupamos com os pergaminhos e com a imagem que de nós mostramos, será que encaramos tamanha indiferença pelo sofrimento causado pelos nossos atos, como uma manifestação de sofisticada evolução civilizacional?

Um consagrado autor português escreveu que “todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior *)”.

Faltou-lhe acrescentar “uma crueldade infinitamente maior”...

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A noção claríssima que, intuitivamente, temos da nossa semelhança, em muitos aspetos, com outros representantes do reino animal leva-nos, em certas circunstâncias, a agir para com eles como para com qualquer representante da nossa espécie, ou até melhor. A vertiginosa expansão das clínicas veterinárias e a cada vez maior multiplicidade de marcas de produtos para animais de estimação vendidas até em supermercados são disso a mais viva e evidente demonstração.

Todavia, essa identidade de tratamento opera, pelos vistos, em ambos os sentidos: para o bem, e para o mal.

Quem, com aberrante indiferença, não hesita em torturar crustáceos em nome de uma boa mesa - inegavelmente importante no convívio social -, como reagirá noutro contexto em que a morte de outrem às suas mãos acabe por surgir como a sequência inevitável ou natural?

Não sendo vegetariano, não posso deixar de perguntar-me como, por outro lado, nas mesmas circunstâncias reagirá quem, ciente de quanto aqui antecede, aceita e paga para, com cumplicidade cruel, satisfazer os anseios do seu sofisticado paladar com despojos inertes de implacavelmente torturados representantes do reino animal.

Sobretudo hoje, que é dia de Natal...

Feliz Natal!

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sábado, 11 de dezembro de 2021


Originais à Viva Força

"A criatividade verdadeira é inviável no quadro estrito do cumprimento das normas legais ou morais estabelecidas. O conformismo total e submisso perante o status quo jamais levou, onde quer que fosse, uma sociedade a evoluir. Mas, violar uma norma, quebrar uma regra, apenas é útil, salutar e profícuo quando o interesse do próximo é a principal razão dessa escolha: nunca quando visa, antes de mais, a exaltação do próprio, a notoriedade, o lucro fácil, o mais elementar, básico, patego e parolo exibicionismo"


Ao assistir a certas atitudes e ao ouvir certos comentários, convenço-me de que existe uma quase generalizada incapacidade para separar duas realidades absolutamente distintas: moda e originalidade.

Confusão
A confusão não faz, evidentemente, qualquer sentido, já que os conceitos são, não apenas distintos, mas antagónicos: originalidade é a qualidade daquilo que é diferente, próprio, inovador, enquanto moda*) corresponde ao conceito estatístico daquilo que constitui a tendência dominante, a classe com maior representatividade em determinado universo. Ou, no plano social e para utilizar uma linguagem mais terra-a-terra, a propensão de um conjunto alargado de pessoas para copiar, para adotar uma ideia que crêem original, ou sensacional, ou espampanante a ponto de, de certezinha absoluta, ir embasbacar outros invejosos que se irão maravilhar - ou roer todos por dentro... - ao olhar para nós.

Mesmo que o motivo do encantamento não seja original, mas apenas supostamente original...

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Vem este supostamente a propósito, não da eticamente condenável prática do plágio - mais ou menos bem disfarçada, mas sempre correspondente à admissão íntima, por quem plagia, da incapacidade de se igualar ou, pelo menos, aproximar das capacidades e do mérito do original autor -, mas a propósito da deriva do conceito de original, ou da própria compreensão do significado efetivo do mesmo.

Dos relatos da História e daquilo que, nas últimas décadas presenciámos, extrai-se que jamais se assistiu a tamanho desfilar de criadores, de criativos, de entendidos criativos, de construtores de ideias, de promotores de ateliers de ideias, enfim, de toda a espécie de idiotas que, a par de um punhado dos que são, verdadeiramente, originais, verdadeiramente autores, o marketing atual vai associando a indivíduos que mais não fazem, afinal, do que deteriorar, estragar, adulterar o que de bom outros antes deles realmente criaram.

Podendo, embora, admitir-se que, nas suas mais diversas vertentes, o campo da arte se encontra especialmente sujeito a tais desmandos, dá a ideia de que o virus da falsa originalidade alastrou, em incontáveis e cada vez mais contagiosas variantes, a praticamente todas as áreas de atuação humana onde o principal objeto e valor resida na capacidade de gerar ideias dignas desse nome; ou seja, de ideias com as condições necessárias a, caracterizando-se pela diferença mas respeitando, ao mesmo tempo, a indispensável estabilidade da construção social vigente, resultar numa melhoria das condições materiais ou espirituais de vida do nosso semelhante.

Já nos habituámos a pagar para assistir a espetáculos de onde se sai nauseado com o vazio ou aberrante original que por lá se vê; a contemplar originais obras ditas de arte que não passam de rabiscos e borrões cuspidos numa tela - incompreensíveis a menos que o autor esclareça o que lhe terá perpassado o espírito quando as espirrou -, ou mamarrachos escultóricos que facilmente passariam despercebidos, quais calhaus para ali caídos, se os não tivessem plantado numa galeria de exposições, no meio de uma rotunda ou em lugar de destaque num jardim ou parque qualquer.

Manifestações artísticas
Todavia, a par destas manifestações artísticas, os meios de comunicação social dão destaque a uma cada vez maior quantidade de indivíduos à cata de factos que lhes proporcionem oportunidades de se evidenciar, de aparentemente debater, interminavelmente, os mesmos assuntos em tom pomposo e palrar barroco.

Embasbacam as gentes menos educadas ou cultivadas com janelas de oportunidade, com temas abordados em textos sem qualquer densidade e que, no final do dia, convocam muitas dúvidas sobre icónicas, apelativas e estratosféricas personalidades que aparecem linkadas a temas públicos e notórios que interessam apenas e só aos instagramáveis cuja mundivivência se integra no ADN daquelas pessoas top que publicam posts que se tornam virais e altamente rentáveis, ou comentam desconstruindo raciocínios que geram narrativas talvez pouco rentáveis mas incontornáveis, que rentabilizam delas se demarcando proativamente, ainda que com as mesmas possam concordar.

A empáfia*) desta gente, a incrustada apetência por esvaziados mas economicamente compensadores excursos destinados ao consumo de telespectadores desolados e abúlicos, são evidente epifenómeno da explosiva multiplicação de canais televisivos que, por esse processo, ficaram limitados a noticiar o que os restantes noticiam, a comentar o que os outros comentam, a publicitar os mesmos produtos, a simular mudanças profundas, originalidades não originais que copiam de televisões de outros mundos, de outros canais.

Contratam faladores que, ora copiam o que, na véspera, de outros leram ou lhes ouviram, ora buscam, desesperadamente, onde não existem, teorias supostamente originais quanto às causas disto ou daquilo, ora se limitam a seguir a moda das opiniões por muitos outros já expressas sobre os mesmos acontecimentos; em boa verdade, quase sempre algo que, de tão evidente, ao espírito de qualquer um imediatamente ocorre, tornando-se absolutamente dispensável sequer verbalizar.

Nós vemos e ouvimos porque nos habituámos.. àquilo que há.

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Parecem, certas pessoas - falhas de conteúdo mas ávidas de dinheiro, de fama, de protagonismo, daquele poder que nem sabem o que, realmente, é - empenhadas em explorar o inesgotável filão da ignorância e da estupidez alheia para idealizar, não produtos materiais ou espirituais benéficos e propícios ao desenvolvimento do seu semelhante, antes ao que de mais chocante, de mais aberrante, de mais impactante acorrer aos seus pobres espíritos que seja suscetível de causar sobressaltos morais ou intelectuais quase sempre úteis aos interesses do suposto criativo, mas quase nunca aos daqueles a quem ele a dita criação impinge ou impõe.

Experiência própria ou alheia
Há muito tempo sabe toda essa gente, por experiência própria ou alheia, que sempre encontrará mercado fiel e disposto a pagar seja o que for ou quanto for por coisa nenhuma, por qualquer diferença indiferente, por algo tão impossível como uma moda original, na certeza quase absoluta de que irá, mediante tão obnóxio expediente, brilhar no cinzento meio da pobreza espiritual em que evolui e na qual de outra gente como ela se faz rodear.

Esquecem-se essas pessoas, ou fazem por se esquecer, de que, quem é bem sucedido, apenas foge às regras porque teve uma inspiração, uma ideia, um impulso espontâneo, legítimo e bem intencionado.

Esquecem-se de que jamais se consegue ser original - ou criativo, como agora gostam de dizer ser - apenas porque, deliberadamente, sem uma ideia própria válida e com propósitos inconfessáveis, se escolhe fugir às regras: não é essa opção forçada e tomada a qualquer preço e com indiferença perante a qualidade dos efeitos que faz alguém ser bem sucedido. Pelo menos, junto de quem seja verdadeiramente livre, independente, socialmente válido e consciente.

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Em qualquer ambiente em que se respire, de facto, liberdade e civilização, as regras existem por serem, reconhecidamente e dentro daquilo que se sabe e conhece, a forma mais eficiente, mais eficaz e mais segura de obter determinado resultado; e, económico ou não, a obtenção de qualquer resultado positivo, socialmente legítimo e saudável, resulta numa mais-valia com impacto direto no habitat de  quem o produz, e indireto na transmissão que o efeito multiplicador lhe não deixará de imprimir.

A criatividade verdadeira é inviável no quadro estrito do cumprimento das normas legais ou morais estabelecidas. O conformismo total e submisso perante o status quo jamais levou, onde quer que fosse, uma sociedade a evoluir. Mas, violar uma norma, quebrar uma regra, apenas é útil, salutar e profícuo quando o interesse do próximo é a principal razão dessa escolha: nunca quando visa, antes de mais, a exaltação do próprio, a notoriedade, o lucro fácil, o mais elementar, básico, patego e parolo exibicionismo.

Não vale a pena elaborar rebuscadas explicações políticas, científicas, mais ou menos criativas, não faz sentido nem é bonito explorar a ingenuidade, a ignorância ou a credulidade alheias, ou lançar a dúvida, a suspeita, o mistério, o suspense quanto à verdadeira razão, à causa profunda de ter sido encontrada uma maçã caída debaixo da copa de um pinheiro.

Não, não acabámos de descobrir um pinheiro que maçãs.

A maçã estava debaixo do pinheiro porque alguém para lá a atirou, ou a deixou cair. Ou, mais prosaicamente, dela lá se esqueceu.


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sábado, 27 de novembro de 2021


Rendeiro: No Rescaldo de Uma Fuga

 

Pode admitir-se que um juiz de instrução falhe, deixando fugir o suspeito, por ser assaltado por dúvidas na valoração de meros indícios. Mas custa a entender que um juiz de julgamento deixe fugir um indivíduo condenado após amplamente discutida e validada a prova

Ao dizer que os juízes não obedecem a ordens, não está, implicitamente, o CSM a reconhecer o erro dos Colegas? A reconhecer que, se do Conselho dependesse, teria sido ordenado o atempado agravamento das medidas de coação impostas ao Condenado?

Impõe-se o primado do princípio da proporcionalidade na indispensável ponderação entre o direito à liberdade do criminoso condenado em duas instâncias já, e o interesse seguramente maior da coletividade cuja segurança tal liberdade compromete e à qual assiste, por sua vez, o direito à liberdade de viver protegida de prováveis novas investidas daquele que, estranhamente, da liberdade se evita privar


Introdução

1. Introdução


2. Enquadramento

    2.1. Da Necessidade da Existência de Limitações ao Exercício da Magistratura Judicial
    2.2. Da Formação dos Agentes Judiciários Portugueses
    2.3. Da Credibilidade do Desempenho Profissional
    2.4. Dos Requisitos dos Magistrados Judiciais
    2.5. Do Percurso Até à Magistratura Judicial
    2.6. Do Processo Penal
    2.7. Da Discricionariedade

3. Da Fuga e dos Seus Antecedentes

    3.1. Síntese Cronológica
    3.2. O Condenado
    3.3. Oito Legítimas Interrogações
    3.4. Os Senhores Juízes e os Senhores Advogados
    3.5. Os Políticos

4. Conclusão e Propostas



1. Introdução

Embora seja praticamente impossível não estarem direta ou indiretamente presentes, independentemente do assunto da conversa, são os dois pilares fundamentais da sociedade e, ao mesmo tempo, os dois temas sobre os quais, dada a condição miserável em que em Portugal se encontram, mais me custa escrever.

O primeiro, é a educação, pensada para que as pessoas saibam comportar-se no melhor interesse da comunidade; o segundo, a justiça, indispensável para que elas sejam encorajadas a assim agir, e sancionadas quando não quiserem fazê-lo.

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Começamos, supostamente, a ser educados em casa, onde cada vez menos é possível encontrar progenitores com qualificações educacionais, culturais e, até, funcionais mínimas para uma educação saudável e efetiva saberem assegurar, já que, para poderem procriar, as pessoas não estão obrigadas a apresentar o diploma de uma formação em educação infantil e juvenil. E mesmo que estivessem...

Segue-se, frequentemente, a creche ou o jardim de infância, onde, ainda hoje e mau grado as avançadas, certificadas e avalizadas novas teorias quanto à melhor forma de preparar para a vida os rebentos, a educação é transmitida por educadores, mesmo diplomados, que, ainda hoje e com a maior das descontrações, os ensinam a cantar o “Atirei o pau ao gato / Mas o gato não morreu / Dona Chica assustou-se / Com o berro, com o berro que o gato deu”, como ao passar por uma dessas escolas há não muito tempo e sem grande espanto ouvi.

Confrontados com belas e ternurentas canções como esta, não será de admirar, anos mais tarde, a propensão dos jovens, outrora dóceis infantes, para a violência e para a destruição - para as quais também são atraídos graças, em não pequena parte, à necessidade de gerar lucros que assegurem a prosperidade de certas empresas que produzem e comercializam conhecidos, bárbaros e sumamente violentos jogos para consolas e computadores.

Mais tarde ainda, alguns acedem às profissões jurídicas, em cujo exercício elaboram leis, dirigem inquéritos, acusam, defendem, julgam e decidem os destinos de muitos dos tais que escolhem portar-se mal em clara ofensa dos legítimos interesses de quem, melhor ou pior, goza da proteção que o direito a esta sociedade de todos nós se destina a garantir.

Personalidade do Jurista
Vai-se, entretanto, a personalidade do jurista formando, numa vivência quotidiana em muitos aspetos idêntica à de qualquer outro mortal, através da absorção e integração dos dados e impactos da experiência com as características essenciais de cada um, supostamente buriladas pela tal educação, pela formação pessoal que, nos alvores da vida, lhe deveria, como a todos nós, ter sido assegurada.

Mas que nem sempre foi…

 

2. Enquadramento

2.1. Da Necessidade da Existência de Limitações ao Exercício da Magistratura Judicial

Contrariamente ao que se entendia no tempo em que o Sol girava em torno da Terra, os juristas, designadamente os magistrados, são seres humanos como quaisquer outros, que começaram por ser crianças e jovens educados e formados como quaisquer outros, para o bem de uns e para o mal e de outros.

A sua atividade profissional visa – também como, teoricamente, qualquer outra - o serviço da coletividade de acordo com princípios e normas previamente estabelecidos, que a mesma atividade definem e condicionam. Não são, como antigamente era uso olhá-los, criaturas quase divinas, dotadas de incomensurável sapiência e da autoridade dela decorrente para, com quase total discricionariedade e autonomia, decidir da sorte dos seus semelhantes cujas ações hoje lhes compete identificar, avaliar e sancionar à luz do princípio da legalidade, com objetividade, imparcialidade e lucidez.

Não se afigura, assim sendo, aceitável que alguns deles tendam, ainda, a comportar-se como se divinos fossem, porquanto não deixe de ser verdade que o destino de quem das suas decisões depende apenas possa ser decidido por alguém que, estritamente naquilo que importa à relação específica julgador-julgado, esteja acima dele, isto é, que detenha um ascendente legitimamente conferido pela coletividade em que ambos se inserem: um poder tamanho e com tão expressivo grau de independência que, porventura mais do que qualquer outro poder, deva ser exclusivamente conferido a quem souber exercê-lo com a indispensável idoneidade, autoridade, sapiência e moderação.

Mérito Pessoal do Juiz
Enquanto o mérito funcional do juiz dimana, por inerência, do cargo que ocupa, o mérito pessoal e profissional apenas poderá ser granjeado por via da competência, do brio, da isenção.

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No entanto, e tal como, nos mais variados planos, acontece com a generalidade dos mortais, a personalidade, a educação e a formação de cada magistrado judicial diferem substancialmente das dos restantes. Por isto mesmo se encontra, quiçá com indesejável frequência, a par de indivíduos incontestavelmente sérios, competentes, sabedores e, sobretudo, sábios, outros indevida ou insuficientemente formados, incompetentes, corruptos, e, até, conhecidos ou mesmo, condenados por comportamentos comprovadamente lesivos dos interesses daqueles cujo cumprimento de deveres e exercício de direitos lhes cumpre, paradoxalmente, exigir e assegurar.

Profundamente incrustados na mais funda essência da Humanidade, estes e outros vícios são tão suscetíveis de afetar o desempenho de um juiz, como o de quem exerce qualquer outra profissão. Torna-se, desta forma, essencial para a transparência, para a estabilidade e para a uniformidade e equidade na administração da justiça que os poderes do juiz, sejam, em tudo quanto não prejudique a eficácia global das decisões, estritamente limitados por legislação imparcial, clara, precisa, obrigatória, coerciva, e, em cada lugar e época, adequada à efetiva realidade social e cultural dos decisores.

A maior dificuldade reside, necessariamente, em assegurar o equilíbrio entre, por um lado, a previsão dos limites formais indispensáveis ao exercício da magistratura judicial e, por outro, a necessidade de garantir a aplicação de uma justiça não apenas adjetiva, mas substantiva, que saiba extrair conclusões válidas em presença do eterno confronto de interesses entre a sociedade e o indivíduo que nela vive e nela se forma.

Não foi um poeta alemão que disse “Atentai, Senhor, que o interesse do Estado se não confunda com justiça”?*) Pois o inverso não deixa de ser verdadeiro: o interesse do particular em manter uma liberdade a que perdeu o direito - especialmente o interesse de um indivíduo já condenado e com a sentença confirmada em, pelo menos, uma instância - não pode, em caso algum, sobrepor-se ao superior interesse de uma comunidade que, entre outras considerações, veria a sua segurança seriamente ameaçada por uma eventual fuga daquele à justiça; para não falar do convite, face à descabida impunidade e por via do deplorável exemplo, à propagação do ilícito a outros de moralidade idêntica à daquele que, no caso, o tiver praticado.

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A aplicação de uma justiça substantiva e com amplos poderes discricionários, implica maior responsabilidade, assim sendo vedado aos julgadores ceder à tentação do automatismo, do menor esforço, da letargia, do medo, até.

Sempre sem transigir perante a tentação do excesso - ou do protagonismo mediático -, há de o juiz assegurar uma judicatura que, insista-se, sempre no estrito respeito pelo princípio da legalidade, seja operante, interventiva; que se não contente com o não fazer ondas, com a decisão politicamente correta; que se não escude na pureza formalista do estrito e ineficaz cumprimento da lei por parte de magistrados que ajam como meros funcionários contratados para executar a tarefa menor que a administração da justiça, seguramente, não é.

Seria, por exemplo, incompreensível que, na fixação de medidas de coação visando a neutralização do risco de fuga de figuras públicas com substanciais meios de subsistência e já condenadas em primeira e, até, em segunda instância, se não vissem os condenados imediatamente privados, pelo menos, da posse do respetivo passaporte: não sendo, evidentemente, possível evitar completamente a fuga mediante a simples apreensão do documento, não menos difícil será vislumbrar razão objetivamente aceitável para que um tribunal mantenha as condições ideais para que ela se verifique.

Mas, acontece…

 

2.2. Da Formação dos Agentes Judiciários Portugueses

Independentemente da motivação subjacente e do facto de com ela se concordar ou não, a Comunidade Europeia decidiu, há não muito tempo, aumentar abruptamente a quantidade de licenciados, em qualquer área, mediante o processo de convergência académica iniciado com a celebração do acordo de Bolonha*) - o qual, como é sabido, reduziu, substancialmente, a duração da formação numa época em que, paradoxalmente, existe um cada vez maior acervo de conhecimentos a exigir maturada assimilação.

Ora, ainda que partindo do muito discutível pressuposto de que vivemos numa sociedade maioritariamente constituída por indivíduos devidamente educados e de elevada consciência social e cívica, é claro que uma inadequada, insuficiente ou apressada formação técnica em qualquer profissão inevitavelmente resultará em deploráveis níveis de eficiência e de eficácia no subsequente desempenho. Isto é tão evidente que não necessita de demonstração.

Por maioria de razão, numa área tão sensível e, paralelamente, de tamanha responsabilidade como aquela de que aqui falamos, qualquer défice estrutural ou pontual na derradeira fase da preparação para o exercício de uma profissão não tardará, algures no sistema judiciário, a fazer sentir os seus efeitos, arriscando-se a acarretar danos reputacionais muito sérios e dificilmente reparáveis para a credibilidade e para a confiança que sempre deverá ser possível e natural associar aos próprios conceitos de justiça e da sua aplicação.

O subsequente decaimento da qualidade da formação técnica dos juristas portugueses foi, recentemente, objeto de severo reparo pelo Bastonário da Ordem dos Advogados, que propôs a exigência de maiores qualificações académicas*) aos candidatos a advogados que tiverem concluído a licenciatura já na vigência das alterações decorrentes do referido processo de aceleração da formação.

Por razões difíceis de descortinar – quem sabe se relacionadas com a tal ideia de intocabilidade da magistratura que dominava no tempo em que o Sol girava em volta de nós… -, parece a ninguém ter ocorrido que de igual défice formativo iriam, inevitavelmente, padecer os restantes agentes judiciários com formação universitária de nível superior, designadamente os magistrados judiciais, também eles passados a ser formados à pressa, pelo menos naquilo que ao tronco comum da licenciatura em Direito se refere.

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Recuando algumas décadas, não podemos esquecer-nos de que, mesmo antes do atual descalabro da qualidade da formação académica, já a maior parte dos magistrados e advogados mais veteranos agora em atividade em Portugal tinha sido, também ela, formada e ensinada depois de uma outra dramática degradação do ensino - porventura bem mais séria do que a de Bolonha - nos anos que se seguiram à Revolução dos Cravos que amplamente proclamou os direitos universais à educação, à justiça e à saúde.

Acontece que, embora todos eles sejam direitos essenciais cujo reconhecimento em Portugal há muito tardava, dos três, é o direito à educação o primeiro dos primeiros, pois que, sem ele, qualquer outro carece de sentido, seja por da sua existência nem nos consciencializarmos, seja por, mesmo conscientes, não reunirmos os requisitos intelectuais e formativos para o viver em plenitude.

Importante direito fundamental
Ora, esse importante direito fundamental à educação foi, naqueles tumultuosos anos, precipitadamente implementado, não se tendo cuidado de, minimamente, assegurar que, mediante um processo de formação progressivo e cuidado de novos professores, sempre haveria quem, efetivamente, educasse e ensinasse; e que, por esse processo, a qualidade da educação e do ensino se manteria - o que, manifestamente, não aconteceu.

Para tanto, era necessário tempo. Algo que o legislador de então não tinha.

Bem pelo contrário, a necessidade sentida por alguns políticos de apresentar serviço a um eleitorado sôfrego de mudança a qualquer preço – ainda que não houvesse com o que a realizar e com o que a pagar – fez o País mergulhar a pique num processo de artificiosas equivalências que, de equidade, nada tinham; e, por via delas permitiu-se que impreparados estudantes dos primeiros anos de bacharelatos passassem a poder lecionar, a poder educar, nos ensinos preparatório e secundário, sem qualquer competência técnica ou pedagógica para o fazer com um mínimo de qualidade e de rigor.

Entre largas centenas de exemplos, para lecionar a disciplina de Matemática no ensino secundário bastava ter aprovação em quatro cadeiras anuais do bacharelato em Administração e Contabilidade.

Era mau, era péssimo, e muitos o sabíamos. Mas, o que importava era que, sempre que era chamado a votar, o povo estivesse convencido de que, “agora, todos temos direito à educação”; ou, pensava-se, os votos não tardariam a refletir a sensação de incumprimento das promessas políticas alardeadas pela Revolução e que eram, afinal, aos olhos dos oprimidos a sua principal motivação. Uma vez mais, “por prevalecer o número de votos mais que o peso das razões”.

Claro está que, sem professores devidamente habilitados, andavam os governantes a vender ao povo gato por lebre, valendo o facto de, da esqualidez do resultado da lecionação, os eleitores se nem aperceberem, fosse pelo entusiasmo dos tempos então vividos, fosse por não deterem, para que dela se apercebessem, a necessária… educação.

As ditas equivalências, de efeitos irreversíveis e de facilitismo e demagogia inenarráveis, estiveram na origem de muitos dos efeitos nefastos - que, muitas décadas depois, perduram e, por muito tempo ainda, perdurarão - sobre o desempenho de indivíduos afetos às mais variadas profissões. Inevitavelmente, resultaram, também, em impactos demolidores na generalidade das áreas científicas, designadamente na do direito, com inevitável e bem patente prejuízo para a qualidade atual da justiça e da sua administração.

Três direitos fundamentais
Isto, sem esquecer, naturalmente, que, no topo do bolo da pressão política, e para agravar as coisas, à data militava também a cereja da necessidade premente de, para gáudio de certas universidades privadas pertencentes, quer a empresas, quer a cooperativas de oportunidade, produzir fornadas e mais fornadas de juristas e outros licenciados que, rapidamente, inundaram o mercado de trabalho e acabaram, como ainda acontece, a desempenhar subalternas e miseravelmente remuneradas funções.

Enfim, dos três direitos fundamentais referidos, só mesmo o direito à saúde se salvou do descalabro de então. Provavelmente por uma razão bem simples: enquanto o legislador pensava que, educado, estava ele e que, como individualmente interessado, provavelmente nunca os seus caminhos se cruzariam com os da justiça, já no que respeita a saúde, a médicos, a enfermeiros… nunca se sabe; e, ciente mesmo legislador de que, mais tarde ou mais cedo, todos inevitavelmente acabamos por ir parar às desejavelmente sábias mãos de Esculápio, lá nos livrámos, naqueles tempos, de, em nome de enviesadas ideias de igualdade e de democracia, ver maqueiros e auxiliares de enfermagem a realizar… cirurgias, pois então!

 

2.3. Da Credibilidade do Desempenho Profissional

O que antecede não pretende, evidentemente, desvalorizar a competência e a qualidade profissional de todos os portugueses ou, sequer, de todos os atuais profissionais da educação, da justiça ou de qualquer outra área afetada pelos desmandos desses gloriosos, mas conturbados, tempos. Pessoas competentes, empenhadas e com qualidades intrínsecas de relevo sempre existirão e, nos mais diversos campos, continuarão a formar-se; desde, claro está, que preferencialmente o façam por elas próprias, ou tenham a ventura de ter pais que devidamente as eduquem e mestres que saibam ensiná-las - o que, convenhamos, nos dias que correm não é coisa de fácil constatação.

Onde quer que se encoraje a formação, à pressa, de pessoas que venham a executar determinada tarefa, inevitável se torna que a quantidade se sobreponha à qualidade, quer da aprendizagem técnica, quer, não raramente, até da formação da personalidade.

Num tal quadro, a verdade é que, jurista ou não, ninguém pode ser responsabilizado por ter aterrado no meio de um destes dois pretéritos mas imparáveis processos de degradação pedagógica e educacional, nos quais alguém notoriamente impreparado acaba a formar alguém que, necessariamente, fica, pelo menos, tão impreparado como o formador e como aqueles que, por sua vez, poderá acabar a formar também; e assim sucessivamente, até chegarmos ao ponto desgraçado em que hoje nos encontramos – e nem será bom tentar imaginar como, daqui a poucos anos e por via de uma espiral aparentemente irreversível, pior ainda acabará por ser.

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Não obstante tudo isto, quando assume funções qualquer juiz digno desse nome já tem de saber ser e de saber estar: em público, numa audiência de julgamento; ao prolatar uma decisão; no gabinete, interrogando um suspeito ou arguido, na presença de outros juristas; perante colegas, em múltiplas situações. Sempre.

Porém, factos são factos; e, no que respeita à magistratura, a imprensa não cessa de apontar casos – que alguns de nós diretamente presenciaram ou nos quais participaram, até - que nos levam a concluir por uma falta de qualidade gritante, quer na fundamentação das decisões judiciais, quer nos apartes a despropósito lavrados nas mesmas ou proferidos ao vivo; quer, ainda, na quase sistemática falta de pontualidade de alguns juízes na comparência a audiências de julgamento, ou na arrogância prepotente e parola com que se dirigem aos seus interlocutores, arguidos ou não.

Esquecem-se ou ignoram, porventura, que é o alto cargo que deve ser dignificado pelo desempenho e pela postura do magistrado judicial: não o cidadão, simplesmente porque o ocupa. Esse, apenas é meritíssimo enquanto exerce a função ou nela se jubila, deixando de ser meritíssimo quando opta por diferente mister.

O respeito devido a um magistrado judicial não advém de um estatuto de superioridade que lhe seja conferido pelo simples facto de ter apresentado ao Estado que o emprega um qualquer certificado de habilitações: decorre da dignidade, imprescindibilidade e enorme responsabilidade social e humana de uma função que, nos dias de hoje, as notícias e aquilo que diretamente se lê nas decisões e vê nas salas de audiências sugerem estar nas mãos de cada vez mais pessoas menos aptas e pouco preparadas; muito relativamente idóneas para, com eficácia, competência e, sobretudo, discernimento e sensatez, exigir de cada um aquilo que deve à sociedade, e a esta aquilo que deve a cada um.

Porventura mais do que qualquer outra atividade, médicos, professores e juristas hão de, sempre, estar acima de qualquer dúvida quanto a eventuais défices de idoneidade ou de competência; e, o que os torna idóneos e competentes, é a exigência, pelos próprios e por terceiros, de excelência em todas as vertentes do desempenho das suas nobres profissões.

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Para a lei ser eficaz, importa que haja quem a aplique, não propriamente prolatando espampanantes e pesadas sentenças, mas, sobretudo, garantindo que, seja a sentença qual for, ela será, efetivamente, executada.

Penal ou Não
Penal ou não, uma sentença não cumprida escarnece da justiça, do sistema judiciário, de toda a sociedade, cuja segurança e estabilidade ficam comprometidas quando se não se consegue a execução, pedra de toque de toda a construção jurídica, sem a qual o edifício normativo rapidamente se esboroaria por carecer de qualquer utilidade.

Acontece que, apesar de aparentadas no direito, a função de um magistrado judicial não é comparável à de um notário ou à de um conservador, salvo o devido respeito por estas importantes profissões. Enquanto aos últimos compete aplicar e fazer cumprir procedimentos estritos, inalteráveis e com praticamente todas as possíveis cambiantes dos atos previstas em códigos específicos, o mesmo acontecendo como as circunstâncias suscetíveis de os afetar, ao primeiro cumpre interpretar a lei e aplicá-la às circunstâncias específicas do caso concreto, exercendo um poder discricionário consideravelmente lato. No caso da fixação de medidas de coação, talvez demasiado lato, até…

Não é fácil. Já no século XVII alguém dizia que “o dever dos juízes é administrar a justiça; a sua profissão, diferenciá-la.  Alguns deles conhecem o seu dever e exercem a sua profissão” *).

Tão amplos poderes e tão vasta discricionariedade não são, evidentemente, compatíveis com défices de inteligência, de sensatez, de aprendizagem, de formação, ou, genericamente falando, de educação. Bem pelo contrário: exige-se de um magistrado, judicial ou não, o conhecimento abrangente, não apenas da lei, mas também da realidade social, além do raciocínio lógico superior, da sabedoria e da postura indispensáveis a quem detém nas suas mãos a possibilidade de, nos termos da lei, privar terceiros do direito fundamental à liberdade.

Alguém citava, há pouco tempo, um juiz segundo o qual “para despachar processos, é necessário 75% de bom senso e 25% de direito”. Lá saberá da sua razão…

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Uma parte relativamente significativa de um eventual défice em algumas destas vertentes poderá, é verdade, ser compensado com uma experiência intensa e prolongada em níveis de integração profissional do juiz nas fases iniciais da carreira, antes de, desejavelmente muitos anos mais tarde, aceder a funções de maior responsabilidade em processos muito mediatizados ou correspondentes a delitos ou interesses de maior relevância e potencial impacto social. Para tanto, é indispensável a tramitação profissional por níveis sucessivos que proporcionem frequentes oportunidades de contacto com terceiros diversificados na formação, na vivência, na personalidade e na qualidade em que agem ou operam.

O que não é admissível num estado dito de direito onde a administração da justiça se quer eficaz, é que o acompanhamento e decisão de processos de gigantesca responsabilidade seja distribuído a juízes que apenas tenham condições objetivas para agir como funcionários unicamente aptos a aplicar estritamente o que dizem os livros, receando ou, por qualquer outra razão, sendo, manifestamente, incapazes de interpretar e enquadrar os factos na personalidade do sujeito e nas circunstâncias daqueles; ou que não detenham a indispensável dose de bom senso necessária à judiciosa aplicação da lei; ou, ainda, de magistrados de tenra idade e, consequentemente, de menor experiência, daqueles que nenhuma sensação de segurança transmitem e que na presidência de um coletivo até confrange ver.

Um juiz não nasce juiz. Faz-se. Com o tempo. Com muito tempo.

Na medida em que o resultado de um eventual erro seja, previsivelmente, suscetível de indignar e de prejudicar o direito de centenas de pessoas, de milhares de pessoas, de toda uma coletividade, até, será imperdoável e irresponsável, por parte do legislador, permitir que se confie a direção do processo a juízes de fracas características pessoais ou profissionais, irresponsabilidade que apenas seria equiparável à de uma companhia que confiasse, a um jovem piloto com escassas horas de voo, os comandos de um gigantesco e repleto avião comercial.

Há coisas que não se faz; que, simplesmente, não podem acontecer.


2.4. Dos Requisitos dos Magistrados Judiciais

Uma das principais atividades intelectuais do juiz – e espirituais, dada a forte dose de subjetividade - é a ponderação.

Opera nas mais diversas operações lógicas requeridas em todas as etapas de um processo judicial ou de inquérito. É o caso, por exemplo, da ponderação do valor da prova apresentada - já que, se fosse valorada ad libitum por qualquer um, bastaria que um menos preparado investigador tropeçasse em algo que considerasse “prova” para o infeliz acusado estar condenado sem apelo nem agravo, ainda que no meio do mais despudorado atropelo dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição.

Uma vez o agente considerado culpado, cabe ao julgador ponderar, também, a medida da pena, adequando-a, dentro dos limites definidos na lei, à personalidade do acusado e às circunstâncias do caso concreto.

Importante Ponderação
Ponderação não menos importante é a que atua na verificação dos pressupostos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade *) que regem a aplicação das medidas de coação, muito especialmente das privativas da liberdade, como é o caso das mais gravosas: a obrigação de permanência na habitação*) e a prisão preventiva*).

Aquele que aqui interessa, de entre os pressupostos destas últimas, é a constatação, pelo juiz, da existência de perigo de fuga*), competindo-lhe, sempre no estrito cumprimento dos requisitos legais, decretar a medida quando entenda necessário evitar que um qualquer espertalhão com a manha a transbordar-lhe dos olhos, do rosto, da postura, da atitude, da fala, daquilo que se quiser – que pode ser quase tudo… - vá de férias até paragens longínquas para não mais voltar… provavelmente até à prescrição do processo*) ou à prescrição da pena*), se por outras terras entretanto se andar a pavonear.

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Os olhos são, diz-se, o espelho da alma, e neles estará, mais do que em qualquer manual, refletida a verdadeira dimensão do risco de fuga, da intenção de ao castigo se furtar. Mas, os olhos, não é qualquer um que os sabe ler, e, para que a ponderação – e, de um modo geral, a atividade judicativa – seja eficaz, pelo menos quatro qualidades deve  um juiz de julgamento ou de instrução apresentar.

Antes de mais, a capacidade intrínseca, já que, tal como seria inconcebível a mera ideia de um cirurgião que não possa ver sangue, a de um piloto de linha aérea que tenha medo das alturas ou a de um contabilista incapaz de contar, por maioria de razão o seria a de um juiz deficitário no que se refere ao processamento lógico, ou com inconfessáveis vícios de caráter, ou padecendo de, ainda que ténue, sociopatia ou maleita similar.

Seguem-se, inevitavelmente, a formação pessoal cuidada, desejavelmente começada em casa e, na devida idade, continuada na escola, e, na universidade, a aprendizagem aprofundada das coisas do direito,.

Mais difícil de encontrar - e, no entanto, igualmente essencial - é o último destes quatro requisitos: um amplo conhecimento da realidade das pessoas e das circunstâncias das suas vidas, personalidades, relações, gostos, afinidades, atividades, a fim de, ao julgar, permitir atenuar os efeitos das inevitáveis diferenças, já que “um homem só pode ser perfeito juiz das ações de outro homem quando entre ambos se dão absolutamente as mesmas condições de existência.  Desde que estas variam, varia com elas a maneira de ver as coisas”.

Necessidade de Coexistência
Como é bom de ver, a necessidade de coexistência dos quatro requisitos torna singularmente rara a aptidão para o desempenho da judicatura, logo - há que insistir -, absolutamente incompatível com a formação em massa de sucessivas fornadas de magistrados judiciais destinados a suprir as necessidades de um sistema judiciário afogado numa ineficiência em Portugal há muito unanimemente reconhecida, mas jamais sarada.


2.5. Do Percurso Até à Magistratura Judicial

No caso do juiz do foro criminal, a arte da ponderação desenvolve-se, sobretudo, não na universidade ou no Centro de Estudos Judiciários*) (CEJ), mas através da experiência adquirida no contacto de proximidade com investigadores, com testemunhas, com alegados e confirmados infratores, proximidade essa impossível de conseguir no ambiente de inevitável distanciamento inerente a uma audiência de julgamento.

Como alguém disse, para ser justo, um juiz tem de ser capaz de calçar os sapatos do criminoso; mas isso passa por saber, por experiência própria, o que é uma investigação, por ter intervindo em muitas delas, contactado com vítimas, delinquentes, defensores.

Visto muito, ouvido mais, falado pouco.

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Em contrapartida, esta relação de proximidade caracteriza boa parte da função do magistrado do Ministério Público, que é, afinal, o advogado do Estado.

Até meados dos anos setenta do século passado, esta magistratura constituiu uma primeira etapa obrigatória para o acesso à magistratura judicial. Foi-lhe, então, conferido estatuto de autonomia: segundo uns, para dignificar magistrados do Ministério Público que, desgostosos e infelizes, se olhavam como um mero primeiro degrau da escada conducente à magistratura judicial; segundo outros, para o Estado rapidamente satisfazer a necessidade premente de produzir, à pressão, a tal grande quantidade de novos juízes a fim de parecer satisfazer os requisitos do já aqui falado acesso universal à justiça - mesmo a uma justiça de substancialmente menor qualidade, como inevitável seria nas descritas condições.

Sentaram-se, desde então, no lugar cimeiro da teia dos tribunais juízes cada vez mais que jamais passaram pelo alfobre do Ministério Público, com um patentemente reduzido conhecimento das pessoas – sobretudo, dos criminosos -, com uma diminuta experiência dos mais variados aspetos da vida – sobretudo, da vida dos criminosos -, por isso mesmo equiparáveis a docentes sem trabalho de campo realizado, literalmente afogados na leitura de livros e de artigos mais ou menos científicos, exclusivamente baseados nos quais proferem belas mas vazias lições ex cathedra, sem significativa integração na sociedade e produzindo trabalhos com interesse prático nenhum.

Todo um potencial cabedal de indispensável experiência foi, desta forma, liminar e irresponsavelmente desperdiçado, eventualmente em nome de uma dignificação dos magistrados do Ministério Público que jamais poderá ser, de forma significativa e efetiva, assegurada pela separação de carreiras, antes pela exigível qualidade superior num desempenho que, a fazer fé em notícias sobre sucessivas prescrições de processos por causas não cabalmente esclarecidas e sobre diversos percalços devidos a vícios processuais, pouco permite entrever dessa desejável e indispensável qualidade.

Acresce, necessariamente, que, de um ponto de vista funcional, os magistrados do Ministério Público são, e serão sempre, meros advogados do Estado, logo, parte interessada nas demandas judiciais, jamais podendo, sensatamente, considerar-se a sua magistratura equiparável à de um juiz, na medida em que sempre às decisões deste se terão de sujeitar.

Chega, assim, a ser ridícula a insistência na equiparação, antes urgindo reverter, no mais curto espaço de tempo possível - e a despeito da inevitável vozearia em contrário - a separação de carreiras, voltando à bem mais eficaz e promissora progressão. Sobretudo, sendo cada vez mais pobre a formação.

Se a motivação da separação foi o ímpeto revolucionário ou a pressa em aumentar a quantidade de magistrados judiciais, a opção explica-se pelo facto de as revoluções tenderem a racionar com o coração, a tal ímpeto ainda havendo que aliar a proverbial incompetência de decisores políticos então, como hoje, completamente falhos de estratégica visão.

Se a bem diferente motivação foi a dignificação dos magistrados do Ministério Público, teremos de nos perguntar: até que ponto é legítimo, em democracia, que o interesse na exaltação da imagem de uns poucos comprometa, de tal forma, a qualidade do desempenho de uma justiça que a todos interessa e sem a qual, em democracia e em liberdade, não há como viver?


2.6. Do Processo Penal

Através das normas jurídicas e da sua aplicação, procura o direito garantir, tanto quanto é razoável e possível, a normalização dos comportamentos dos indivíduos, independentemente das suas aptidões, competências, personalidade e motivações.

Se todos fôssemos condutores conscienciosos e tecnicamente aptos a determinar, em cada situação, como deveremos comportar-nos ao volante de um automóvel, o cada vez mais encorpado Código da Estrada seria dispensável, redundante - sem prejuízo de ser sempre conveniente saber se devemos circular pela direita ou pela esquerda, e mais uma ou outra coisa...

Todavia, e tal como acontece com muitas outras leis, o Código da Estrada destina-se, antes de mais, aos menos competentes para conduzir, seja do ponto de vista técnico, seja do de um personalidade tendencialmente mais virada para o interesse do próprio e indiferente às necessidades e aos direitos dos outros.

A estas motivações, não é exceção o Código de Processo Penal.

No entanto, face a lapsos que permitam fugas airosas de criminosos condenados por sentenças transitadas em julgado e provavelmente relapsos, há que concluir que, tal como uma cada vez maior quantidade de acidentes rodoviários vem determinando normas objetivas cada vez mais apertadas para a condução, também, numa altura em que tanto se fala de juízes e raramente pelas melhores razões, cumpre apertar os códigos de processo e a conexa legislação.

Antes de mais e na falta de melhor critério objetivo, limitando, de forma mais rigorosa do que atualmente e em função da idade e das horas de voo, o acesso à condução de processos judiciais mais sensíveis - seja pela seriedade da matéria em causa, seja pelo impacto previsível das decisões.

A fim de assegurar um rigoroso e ponderado critério - não apenas na fixação das penas mas no crítico processo de assegurar que serão, efetivamente, cumpridas -, haverá que garantir, com força de lei, que as decisões relativas aos processos mais sensíveis são confiadas a indivíduos, não apenas devidamente ensinados, mas que tenham, de facto, aprendido a lição do direito e, em pelo menos igual dose, a experiência apenas ensinada pela vida e pelo intenso e prolongado exercício da magistratura, designadamente no Ministério Público; e, mais tarde, com vasta experiência como copilotos, como juízes asa, antes de serem chamados à presidência de um desses julgamentos de mais mediática decisão.

Haverá, também, que restringir, significativamente o poder discricionário dos magistrados judiciais na ponderação do risco de fuga e na consequente determinação de medidas - como a apreensão de passaportes... -, bem como agilizando e racionalizando, uma vez a decisão transitada em julgado, os procedimentos relativos à notificação do condenado e à sua condução à prisão.

Poderá argumentar-se, não sem razão, que também o legislador que irá introduzir, na lei, as necessárias alterações terá sido, muito provavelmente, formado nas mesmas escolas e épocas já referidas. Mas, como para legislar, basta meia dúzia, enquanto, para administrar a justiça, são necessários milhares, maior será a probabilidade de escolher bem essa meia dúzia, do que a de que a justiça seja, com excessiva discricionariedade, bem administrada por largas centenas de pessoas pouco preparadas e apenas sujeitas às permissivas normas processuais que atualmente a regem.

Principalmente, no que se refere à aplicação de medidas de coação.

 

2.7. Da Discricionariedade

Discricionariedade não é sinónimo de arbitrariedade.

O juiz não pode fazer o que quer e bem lhe apetece, apenas porque acha que sim, já que, como não poderia deixar de ser, a lei não parte do princípio de que existe, em qualquer caso, um perigo de fuga, tampouco considerando que o risco esteja presente pelo simples facto de existir uma prévia condenação. Exige, antes, a existência de outros elementos de facto que claramente indiciem a intenção de, quando futuramente convocado, o sujeito se não apresentar, designadamente para cumprimento da pena de prisão.

Impõe-se, naturalmente, a maior objetividade possível em tudo quanto toca à limitação de direitos, liberdades e garantias, nos termos constitucionais. Mas, importa, também, que, na decisão de aplicar uma medida de coação, o juiz pondere até que ponto ela não será, efetivamente, imprescindível à luz da probabilidade de fuga e do perigo potencial decorrente do facto de o indivíduo ser deixado em liberdade para continuar a atividade criminosa, bem como em presença do chamado fumus comissi delicti: o fumo, a probabilidade de que um delito tenha, efetivamente, sido cometido.

Ora, este fumo, não há como não o considerar, incomensuravelmente, mais opaco no caso de um indivíduo condenado, do que no de um mero suspeito acabado de deter. Assim, o rigor na aplicação de medidas de coação a indivíduos já condenados em alguma instância terá de ser, necessariamente, maior do que em igual diligência relativa a meros suspeitos.

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Por outro lado, além de não ser confundível com a arbitrariedade, a discricionariedade significa poder, e o poder gera responsabilidade, por dele ser a eficácia um inseparável pressuposto.

Fazer o que a lei permite não significa fazer tudo aquilo a que ela obriga: no caso das medidas de coação, a obrigação do juiz que as decide, o que lhe dá tão amplos poderes, é evitar a fuga. Logo, quando não evita, ainda que por mero erro, não cumpre uma lei que lhe dá os poderes e meios, todos e mais alguns, para não falhar.

A lei prevê, é verdade, que o juiz possa aplicar a medida de termo de identidade e residência, sem entrega do passaporte. Mas, “se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores”, fica o mesmo juiz obrigado a decretar outras. São essas as palavras que introduzem os preceitos do Código de Processo Penal relativos às medidas de coação mais gravosas, palavras que não deixam margem para qualquer dúvida quanto à responsabilidade exclusiva do julgador na determinação da forma como irá coagir o sujeito a apresentar-se, de como irá, através dela, servir as exigências de natureza cautelar do processo.

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Qualquer que seja o ângulo por que a contemplemos, a fuga de um condenado é um erro de ponderação do risco; e, sob esse prisma, uma indiscutível prova de incompetência por parte do magistrado ou dos magistrados que a tiverem viabilizado por terem sido parcos na seleção da medida a aplicar.

No que tange, especificamente, a aplicação do princípio da proporcionalidade na fixação da medida, se os juízes se mostram, manifestamente, incapazes de o contemplar, impõe-se ao legislador que tal défice de capacidade cuide de, significativamente, atenuar; de, sem demora a sua posição quanto a este assunto vir clarificar.

Isto porque, se, na determinação das medidas de coação, o comportamento do alegado criminoso dever ser objeto de análise e julgamento diferenciados exclusivamente segundo o melhor critério do juiz, a justiça jamais será servida por magistrados que não estejam, minimamente, habilitados a processar, com razoável rigor e sensatez, as informações que tal diferenciação permitam, eficazmente, viabilizar

Pode admitir-se que um juiz de instrução falhe, deixando fugir um suspeito, por ser assaltado por dúvidas na valoração de meros indícios. Mas custa a entender que um juiz de julgamento deixe fugir um indivíduo condenado após amplamente discutida e validada a prova.

 

3. Da Fuga e dos Seus Antecedentes


3.1. Síntese Cronológica

Muitas são as etapas, e disperso o que foi publicado sobre os acontecimentos que antecederam a fuga.

A fim de que todos saibamos, com a exatidão e isenção permitidas pelas notícias dos factos, o que está em causa nesta reflexão, comecemos por uma breve resenha, ordenada e documentada - poderá selecionar os texto antes de cada *) - daquilo que se relaciona com a epopeia judicial do Herói desta pequena história:


     a) Primeira Condenação

i.       por falsidade informática e falsificação de documento, foi, em 15 de Outubro de 2018, condenado à pena de cinco anos de prisão, com possibilidade de a mesma ser suspensa mediante o pagamento de quatrocentos mil euros a uma instituição particular de solidariedade social*);

Início de Julho de 2020

ii.      no início de Julho de 2020, o Tribunal da Relação de Lisboa agravou o castigo para cinco anos e oito meses, assim afastando a possibilidade de suspensão - limitada por lei a penas até cinco anos*) -        tornando a pena efetiva*);

iii.     em Dezembro de 2020, o Condenado propôs ao Supremo Tribunal de justiça (STJ) pagar ao Estado cem mil euros adicionais a troco de não ter de cumprir os cinco anos e oito meses de prisão;

iv.      em 24 de Fevereiro de 2021, o STJ rejeitou a proposta e confirmou a condenação*);

v.       em 8 de Junho, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu não admitir o recurso entretanto interposto*);

vi.      em 15 de Julho, e ainda no regime de termo de identidade e residência – sem apreensão do passaporte -  decretado por, pelo menos, um dos tribunais, o condenado partiu para uma estada na Costa Rica*);

vii.     violando a lei*), forneceu, como morada de contacto, unicamente a da Embaixada de Portugal, não tendo, apesar disso, sido alterada a medida de coação de termo de identidade e residência, sem entrega do passaporte*);

viii.     em 16 de Julho, iniciou-se o período de férias judiciais, nos termos do art.28º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto*);

ix.       em 20 de Julho, o TC confirmou a inadmissibilidade do recurso*)

x.        em 29 de Julho, a Imprensa noticiava que “vai para a prisão mas só em Setembro, depois das férias judiciais*);

xi.       regressa da Costa Rica a 21 de Agosto, ainda durante o período de férias judiciais;

xii.   em 24 de Agosto, noticiava-se que o “Conselho da Magistratura (CSM) vai reunir informação sobre cumprimento de pena de João Rendeiro*);

xiii.    em 31 de Agosto terminaram as férias judiciais;

xiv.    em 9 de Setembro foi entregue ao CSM a relação de factos mandada elaborar em 24 de Agosto*);

xv.     regressado, entretanto, a casa, voltaria o Condenado a sair, em 12 de Setembro de 2021, para ir tratar da saúde a Londres, uma vez mais violando a lei ao informar, unicamente, a morada da Embaixada de Portugal*);

xvi.   em 17 de Setembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou o trânsito em julgado, na véspera, da mais recente decisão do TC, assim se tendo a condenação tornado irrecorrível*);

xvii.    em 22 de Setembro, os advogados do assistente BPP pedem um reforço das medidas de coação, alertando para o perigo de fuga*);

xviii.  em 29 de Setembro, informou o Condenado estar em parte incerta e não ser sua intenção regressar a Portugal para cumprir a pena correspondente à condenação transitada em julgado*);

xix.    com data de 30 de Setembro, o CSM publica uma “Nota à Imprensa – Processos João Rendeiro contendo a relação de factos (documento que tinha em seu poder desde 9 de Setembro) resultante da diligência que ordenara em 24 de Agosto.


b) Segunda Condenação

xx. Entretanto, acusado de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado e branqueamento de capitais, foi, em 14 Maio de 2021, o Herói desta história condenado a mais dez anos de prisão efetiva, considerando a Juíza que o Condenado não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento*);

xxi. no mesmo acórdão, diz-se que os arguidos foram “condenados de forma exemplar e expressiva porque os factos que praticaram são graves” e a comunidade não entenderia outra medida*);

xxii.  ainda em 30 de Setembro, a imprensa noticia o entendimento da juíza presidente de que, até 19 de Julho, inexistia “qualquer informação da qual pudesse antever-se um concreto perigo de fuga*);

xxiii.  na mesma data é noticiado que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses vem dizer que, até 13 de Setembro – e não 19 de Julho – “não havia fundamento legal para sujeitar o arguido a medida de coação mais grave que o termo de identidade e residência*)

      
c) Terceira Condenação

xxiv.  A 28 de Setembro de 2021, véspera da oficialização da fuga, noticiava-se que havia sido condenado num outro processo, desta vez por burla, a mais três anos e meio de prisão efetiva*).

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O Condenado não esteve presente na leitura de qualquer das decisões, no caso da mais recente por já se encontrar em fuga.

Dado que este texto versa, precisamente, sobre essa fuga e sobre as razões que a ela poderão ter conduzido, não será aqui desenvolvido o referente a outros eventuais erros, jurídicos e outros, em decisões com ela apenas indiretamente relacionadas ou a ela posteriores, como a detenção ilegal de um outro condenado para cumprir pena antes do trânsito em julgado da decisão*), o inocente com nome idêntico que, depois da fuga, o tribunal andou a tentar apanhar*), o desaparecimento de algumas obras de arte que o Estado não tinha condições para guardar, ou o facto de não ter sido evitada a respetiva substituição por falsificações*) e a recusa da declaração de contumácia pelo tribunal de execução de penas, que se declarou incompetente, porque um juiz de julgamento se esqueceu de preencher uns editais.*)

Mas, tudo isto, confrange, de facto.

Para a imagem do sistema judiciário e do País, tanto amadorismo é desolador…

 

3.2. O Condenado

Convirá salientar que não está aqui em causa um narcísico e, porventura, alucinado Robin dos Bosques à portuguesa que, juntamente com alguns outros, tenha subtraído, de um balcão de banco, um comparativamente magro pecúlio destinado a contribuir para financiar uma revolta armada; ou, se a história se passasse há poucos anos, que o tivesse feito para mandar plantar rotundas onde mal passam carros, ou parques infantis onde não brincam crianças; ou ainda, seguindo a atual moda das campanhas eleitorais, para mandar construir cada vez mais prometidas creches para as nossas criancinhas, numa altura em que a estatística teima em afirmar que cada vez mais vai encolhendo a lusitana população.

Nada disso.

Quem, assumidamente, fugiu à justiça foi alguém diversas vezes condenado por crimes típicos dos escroques, alguém que agiu exclusivamente em proveito próprio e no dos seus sequazes; e que, tal como outros bem conhecidos que operam ou operaram no mesmo ramo ou em ramos da mesma árvore, quis fazer crer que se dedicou à atividade comercial para viver, não apenas de legítimas mas cada vez mais absurdas taxas rotineiramente cobradas a clientes, como também da falsidade e da burla daqueles que ainda acreditam que, quando alguém lhes acena com uma das expressões juros altos ou capital garantido, é certo e sabido que foram eles os escolhidos para receber o pecúlio, o maná que a benemérita instituição mal pode esperar por lhes depor nas mãos.

Esquecem-se, evidentemente, os patéticos incautos de que, se o juro fosse tão bom e o negócio tão garantido, quem os promete preferiria ficar com eles, em lugar de, altruisticamente, partilhar…

Conhecedor da complacência da legislação processual penal portuguesa, sabia muito bem o Condenado que, praticamente, nenhum risco correria ao regressar da Costa Rica em meados de Agosto - quando ainda decorria o longo descanso que os juristas não deixam tirar-lhes - já que, incompreensivelmente, o legislador não parece ter julgado necessário, mesmo em casos de tamanho impacto social e de tão evidente risco de fuga, impor normas objetivas à atividade dos juízes de turno nesse período mais vulnerável, no sentido de, preventivamente ou não, já condenados malandros rapidamente enviar para a prisão.

Parece que sabia, também, o nosso Herói – ou, pelo menos, contava com isso - que, apesar de tido como não possuindo ”sentido de autocrítica nem de autocensura”, exibindo uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento”, só muito dificilmente veria agravada a generosa medida de coação que lhe fora aplicada.

Apesar de tudo, o risco era grande. Desmesurado. Como poderia saber? Não valerá a pena investigar?

Perigo de Fuga
Com tudo mais do que bem planeado, lá permaneceu em Portugal até 12 de Setembro, data em que, por alegados motivos de saúde, acabou por ir arejar até Londres em vésperas do trânsito em julgado da primeira sentença condenatória; e para, no que dele depender, não mais voltar. Ou - pasme-se! -, pelo menos, até ser ilibado ou indultado, sem prejuízo de choruda indemnização também pedir.*)

Arsène Lupin*) não teria feito melhor!


3.3. Oito Legítimas Interrogações

i. Quem oferece maior perigo de fuga? Um suspeito que ainda nem foi acusado e ainda menos sabe se vai, sequer, ser condenado, ou um criminoso relapso já condenado, que sabe que, a menos que fuja, jamais irá poder escapar à prisão?

Por que razão é, ao primeiro, quase sempre e sem grande hesitação decretada a prisão preventiva, enquanto, ao segundo, foram, neste caso, mantidas todas as condições necessárias a uma possível evasão?

Não será a validação, em segunda instância, da matéria de facto razão mais do que suficiente para que um magistrado de bom senso o ponha, preventivamente, atrás das grades até ao efetivo início da execução da pena? Quantas fugas terão, ainda, de acontecer para que o legislador chame a si a responsabilidade de vincular os juízes à determinação de mais severas, mais eficazes medidas de coação?

No panorama atual da magistratura judicial, não faz qualquer sentido continuar a confiar em meros juízos de valor subjetivos por parte de um ou de outro julgador: há que definir padrões objetivos, linhas vermelhas, factos e circunstâncias de tal forma significativos e perentórios que a própria lei determine que, automaticamente, operarão na imposição ou alteração de medidas de coação.

ii. Na ponderação do perigo de fuga, os poderes de cognição do juiz não podem ficar limitados ao processo: ninguém pode ignorar o que os sentidos lhe transmitem.

Que razão poderá haver para que um magistrado judicial se não sinta alertado do perigo por aquilo que lê ou ouve na comunicação social? Ou não terão os juízes o hábito de ler jornais e de assistir a serviços noticiosos na televisão?

Nenhum alarme soou quando foi noticiado que “vai para a prisão, mas só em Setembro, depois das férias judiciais”? Ninguém pensou, nessa altura: “Espera, e se, daqui até lá, o homem resolve fugir?”.

Pelos vistos… não.


iii. Não existe, por outro lado, um dever de vigilância e de acompanhamento dos processos? Ou ficam na gaveta até que algo de novo – como uma fuga espetacular, por exemplo – acabe por acontecer? É que será muito, mas muito, difícil alguma vez alguém entender que, ao insistir em manter o Condenado em liberdade, lhe não tenha pelo menos um dos juízes de um dos três processos em curso mandado, pelo menos apreender imediatamente o passaporte - por muito discutível que, face à imensidão de meios financeiros aparentemente disponíveis, a alguns possa parecer a eficácia de tal medida.

Que falta de segurança tudo isto acaba por transmitir! Ou será falta de coordenação?

iv. Os juízes não são, é verdade, seres sobrenaturais. Mas também não será muito aconselhável sujeitarem-se a aparecer à opinião pública como pessoas que, profissionalmente, agem como o comum dos mortais que acha que, pois com certeza, há que trabalhar lá no emprego, mas a gente tem as nossas vidas cá em casa e não pode passar o tempo a pensar nessas coisas…

Num cenário de mais do que provável inevitabilidade do posterior encarceramento no âmbito da execução da sentença, quem de boa-fé poderá garantir - ou, até, esperar... - que, uma vez convocado, um condenado sem ”sentido de autocrítica nem de autocensura”, que exiba uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento” se apresentará voluntariamente se, da notificação que recebe, constar que a comparência se destina à revisão das medidas de coação, ou seja, a privá-lo, desde logo, da liberdade?

Pensar-se-á, porventura, que, quem apresenta tais características de personalidade e engendra esquemas de uma tão estranha forma de engenharia financeira como estes, não tem na manga artifícios e trunfos mais do que suficientes para, em direção a outras paragens, rapidamente se saber orientar? Ou será que o fumus comissi delicti era tão espesso que, aquilo que a qualquer um se metia pelos olhos dentro, aos magistrados não permitiu vislumbrar?


v. Como explicar que, na data publicamente conhecida do trânsito em julgado - em que a condenação se torna definitiva e o criminoso sabe que já não escapa às malhas da justiça se decidir ficar por cá -, em lugar de ser automaticamente emitido o mandado de detenção e imediatamente executado tudo deva, ainda, voltar à primeira instância para a respetiva emissão, assim dando, a qualquer condenado, mais do que tempo para, de passaporte no bolso, tomar as medidas que quiser com vista a evitar o castigo?

vi. Onde estão o bom senso e a ponderação de um Conselho Superior que, durante semanas, fica praticamente silencioso e imóvel perante uma situação notória desta natureza e calibre? Afinal, o que se passa na cabeça destes magistrados? Os juízes não podem conversar entre eles? Não existe, ironicamente, na hierarquia dos juízes, uma magistratura de influência? Nesse universo hermético e distante, não existe o hábito de... comunicar?

Qual a justificação para só depois de mais de um mês e de muito alarido mediático ter sido noticiado que o “Conselho da Magistratura vai reunir informação sobre cumprimento de pena”? Por que terá o resultado dessa diligência ficado muito bem guardado durante três semanas, só tendo visto a luz do dia depois de concretizada a fuga? Por que se terá o serôdio comunicado ficado por uma lacónica e acrítica relação dos acontecimentos, sem um comentário ou, sequer, uma opinião pontual?


vii. 
Acaso a cadeia é algum hotel?

Como explicar que seja possível que, prolatada uma sentença condenatória, confirmada a matéria de facto e na pendência de múltiplos e sucessivos recursos, andasse o Condenado, já em Maio, a passear-se  por aí, indagando das condições do estabelecimento prisional onde, presumivelmente, irá cumprir pena?*) A não ser, claro, para no caso de lhe não agradarem, poder, de forma informada, optar pela fuga?


Juiz do Supremo Tribunal
viii. Não vou ao ponto de defender, como alguns, que se inicie a execução de uma sentença condenatória imediatamente após o encerramento da matéria de facto na primeira instância, o que se afigura uma falta de respeito, não apenas dos mais elementares direitos humanos, mas da própria segunda instância, cuja decisão se estaria, de alguma forma, a desvalorizar.

Mas é inevitável perguntarmo-nos: que percentagem de recursos é admitida pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Constitucional? E, de entre os recursos que são admitidos, quantos merecem provimento? Qual a probabilidade de alguém condenado em primeira instância e com a condenação quanto à matéria de facto confirmada pelo Tribunal da Relação ver, no STJ ou no TC, o processo arquivado por vícios de direito?

Diminuta.

Até que ponto, então, o eventual prejuízo, suportado por essa meia dúzia de condenados, de umas semanas a mais de preventiva depois de, irreversivelmente, dada como provada a matéria de facto, justifica que o bem-estar da comunidade acabe comprometido por o condenado fugir e assim uns tantos ingénuos, por cá ou noutra parte, poder continuar a aldrabar? Ou, se se tratar de um homicida, até a matar?

Como algures alguém disse, “penso que a Constituição deveria ser menos utilizada como um escudo para os culpados, e mais como uma espada para as suas vítimas inocentes”.

Não nos esqueçamos, também, de que, nas sábias palavras há alguns anos proferidas por uma ilustre magistrada do Ministério Público, “a única maneira de defender a liberdade é limitar a liberdade de cada um

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Não é fácil encontrar sensatez em normas permissivas, que conferem ampla discricionariedade a quem, manifestamente, a não sabe exercer; incompreensivelmente arrimadas na complacência, até no tendencialmente erróneo pressuposto da vontade cumprir o castigo por parte de quem a ele foi sentenciado, deixando à discricionariedade de um talvez incompetente magistrado a decisão de tomar, ou não, medidas destinadas a por cá o reter.

A eficácia é a primeira e a principal medida de avaliação da qualidade em qualquer profissão ou área de atividade. Na magistratura judicial, também.

Como está, a lei é omissa, facilita a fuga e os tribunais tampouco a impedem, embora disponham de todos os meios legais necessários para tal; a fuga que, além do perigo potencial que representa para a sociedade, não passa de um claro ato de desrespeito pela Lei, pelos próprios tribunais que a viabilizam, pela justiça, por todos nós.

Neste caso... estavam mesmo a pedi-las! 

Nós, não.


3.4. Os Senhores Juízes e os Senhores Advogados

Ao dizer que “os juízes não obedecem a ordens”, não está, implicitamente, o CSM a reconhecer o erro dos Colegas? A reconhecer que, se do Conselho dependesse, teria sido ordenado o atempado agravamento das medidas de coação?

Assim o exigiria o mais elementar bom senso, a mais básica capacidade de ponderação, no caso de falta de indicação da morada exata no estrangeiro, mesmo de depois de instado a fazê-lo, por parte de um indivíduo já condenado, por crimes semelhantes, em dois processos – um dos quais em vias de ver transitada em julgado a sentença – e acusado, num outro processo, de crimes de idêntica natureza; e, não será demasiado repetir, que “não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento”.

Que elemento de facto faltará, num tal cenário, preencher para se meter pelos olhos de qualquer homem médio a mais do que evidente intenção de o indivíduo se subtrair à ação da justiça? Já para não falar dos olhos de um supostamente esforçado, experiente e competente magistrado judicial…

No momento da desobediência à ordem do tribunal para que indicasse a morada precisa de residência, o perigo de fuga deixou de ser presumido, passou a ser bem real, pelo que, independentemente de o Condenado ter, mais tarde, regressado a Portugal – o que, em meados de Julho, ainda se não sabia que iria acontecer -, logo à chegada deveria ter a medida de coação sido agravada, até ao abrigo do disposto na alínea f) do art.27º da própria Constituição: “detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal*)

Se isto é válido para qualquer um de nós, por que não, também, para o nosso Herói? Mesmo com a melhor das intenções, quantos pesos e quantas medidas por cá existirão na magistratura judicial?

Evidentemente, os juízes não obedecem a ordens, nem tal faria qualquer sentido, pois comprometeria, irremediavelmente, a sagrada independência na administração da justiça. Obedecem, porém, como qualquer de nós, às instruções do legislador, isto é, à legislação.

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Há que reconhecer que, num cenário de tamanha ineficácia, se impõe, é manifesto, uma profunda e urgente revisão do regime das medidas de coação, tornando, não apenas obrigatório, mas automático, que sejam agravadas de acordo com as diversas etapas da marcha do processo penal.

Não se vislumbra, de facto, de que outra forma poderão ser atenuados os efeitos nefastos de uma cada vez menor qualidade global do desempenho da magistratura judicial, a fazer fé nas notícias que, sobre este e diversos outros casos, nos vão chegando pelos mais diversos canais de comunicação.

Não há, assim, como concordar com quem sustenta que “temos que dar cada vez mais poder ao juiz no processo, para que seja ele a decidir, em cada caso, as diligências que devem ou não devem realizadas*). Depois daquilo a que, recentemente, temos vindo a assistir, seria muitíssimo insensato fazê-lo, a menos que todos fossem como o Ilustre Magistrado que, há já alguns anos, assim falou…

A decisão sobre as medidas de coação não pode, em suma, ser, em tão larga escala, deixada ao muito discutível critério de um eventualmente imprudente, impreparado e menos sensato ou esclarecido julgador, que até pareça pensar que o perfil do condenado não conta para a ponderação do risco de fuga, mesmo quando na sentença nada é, quanto a ele, elogiosamente referido. Muito pelo contrário.

Segundo que critério pode, razoavelmente, a conhecida e reconhecida personalidade do arguido não contribuir para, em apoio de um facto relevante, levar um juiz a concluir pelo perigo de fuga?*)

Pior: como se extrai das palavras da própria Magistrada – que a mesma Associação Sindical que entende que, neste caso, aplicar o termo de identidade e residência é cumprir a lei*) logo tentou emendar… -, desde 19 de Julho que a intenção do Condenado de optar pela fuga se manifestava no processo; e desde então, o que se fez para o manter disponível?

O homem só fugiu em finais de Setembro. Mais de dois meses depois! Ninguém viu a coisa a tempo de a impedir?

O que é, afinal, para um juiz, um facto que indicie perigo de fuga? Apenas a constatação dos derradeiros atos preparatórios? Da tentativa? Ou a própria fuga, quando já é tarde demais?

Como evitar os mais do que legítimos sobressaltos e indignação cívicos, quando, do desempenho de certos magistrados judiciais, isto é o melhor que podemos esperar?

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Será, também, vantajoso iniciar uma reflexão séria sobre a equidade na medida das penas, a fim de evitar que sejam aplicadas, por juízes quiçá mais imaturos, ou emotivos, ou sensacionalistas do que outros, penas de dimensão provavelmente nunca vista para crimes de determinada natureza, ainda que justificando com a necessidade de aplicar punições exemplares.

Pretendem tais juízes que uma condenação do Herói desta história em menos de dez anos de prisão causaria indignação social. Talvez. Mas, não causará uma fuga em tais condições muito maior indignação?

Será razoável esperar que não fuja alguém já não propriamente jovem que acaba de ser condenado, num conjunto de processos, a mais de dezoito anos de prisão? É verdade que, à data da fuga, desconhecia, ainda, a decisão relativa ao terceiro processo. Mas, qual seria ela, nem a ele, nem a nós custaria muito adivinhar…

Uma pena razoável, com conta, peso e medida, ainda poderá levar o arguido a optar por sujeitar-se ao castigo, não obstante lhe serem dadas todas e mais algumas possibilidades de, pela via da fuga e alegando “legítima defesa*) ou direito de resistência, a ele se furtar. Não pode, em contrapartida, excluir-se a possibilidade de, perante uma pena que, a despeito do mau caráter e dos antecedentes, o pior dos condenados legitimamente possa considerar injustamente pesada, muito maior ser a tentação de a evitar.

A simples condenação numa pena de prisão, ainda que pesada, não pressupõe, por si só, a existência de perigo de fuga, mas o mesmo não poderá dizer-se de uma pena desproporcionada, injusta, excessivamente empenhada em tornar-se exemplar.

Nas palavras de um jurista norte-americano que também escrevia livros policiais, “quando não se obtém justiça perto, tenta-se encontrá-la mais longe”, verdade esta que muito maior rigor na ponderação do equilíbrio entre a medida da pena e a seriedade da medida de coação a aplicar haveria de suscitar.

Todos sabemos que o respeito pelos direitos, liberdades e garantias é um pilar inamovível da democracia. Mas, no caso específico de um condenado que sabe serem tão diminutas as possibilidades de não ser encarcerado que até já se vai informando das condições do hotel, impõe-se o primado do princípio da proporcionalidade na indispensável ponderação entre o direito à liberdade do criminoso condenado em duas instâncias já, e o interesse seguramente maior da coletividade cuja segurança tal liberdade compromete e à qual assiste, por sua vez, o direito à liberdade de viver protegida de prováveis novas investidas daquele que, estranhamente, da liberdade se evita privar.

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Os senhores Advogados do Assistente por onde andaram, também, entre 19 de Julho de 2021 e a data, em Setembro, em que, finalmente, as campainhas fizeram soar?

Pode, é verdade, dar-se o caso de não terem, desde 19 de Julho de 2021, tomado conhecimento de qualquer facto relevante para a ponderação do risco de fuga. Mas, mesmo assim sendo, não teria sido oportuno, mesmo durante as férias, o processo irem espreitar? Tê-lo-ão feito? Nesse caso, porque parece terem tardado a reagir?

Por falar nisso, ninguém parece ter, até agora, reparado na inegável coincidência entre algumas ocorrências enumeradas na cronologia acima e o decurso das férias judiciais.

Dá que pensar…


3.5. Os Políticos

Políticos, todos nós somos, de alguma maneira; quanto mais não seja na forma como, uns mais, outros menos, procuramos emendar e, se possível, desviar a atenção de possíveis erros próprios. Há, até, quem diga que é uma manifestação natural da nossa humanidade…

Não admira, pois, todo o folclore a que temos vindo a assistir em torno do acessório, como a novela dos quadros arrestados – gota de água no oceano da dívida - que acabaram desviados ou falsificados quando à guarda do cônjuge; o episódio do carro à porta de casa pronto para fazer a mudança de mais uns quantos quadros e mobílias*); as andanças do Taxista*)a detenção do Cônjuge do Condenado*); o amante ou novo amor do Cônjuge*); o choro do Cônjuge durante o interrogatório*); o cavalheirismo do Condenado ao avocar a responsabilidade única pelo descaminho dos quadros quando o divórcio parece, já, difícil de evitar*); o dinheiro na conta dos Pais já falecidos*); as tramponilices feitas aos anteriores advogados*); o descoco na exigência da ilibação ou do indulto*); enfim, tudo quanto possa engordar o folclore mediático e contribuir para, do essencial, as atenções da imprensa e do público desviar, e tudo o mais que por aí virá.

Os partidos políticos que foram passando pelo poder, procuram, agora, alijar responsabilidades por omissões legislativas que deixaram à mercê do poder discricionário de menos preparados juízes o controlo de quem parece ter, cabalmente, demonstrado que vale a pena aldrabar este e aquele – rico, de preferência - para chegar a rico e ficar impune. Que para subir na vida, tornar-se famoso e engordar o ego, melhor não há do que o crime de colarinho branco, sem temer, na nossa Santa Terrinha, à cadeia ir parar.

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Dizem esses políticos que não faltam leis, que a lei permite impedir as fugas.

Ora, é precisamente aí que está a questão: a lei permite impedir, mas não obriga a impedir.

A lei permite tudo e mais alguma coisa, assim não sendo de admirar que alguns juízes a não apliquem devidamente porque, simplesmente, não querem fazê-lo, ou porque sentem alguma simpatia pelos ricos e poderosos ou, mais simples e provavelmente, porque não foram formados ou educados como deveriam ter sido. E lá voltamos ao início desta triste história…

Não é, obviamente, de estranhar que a Ordem dos Advogados*) (quase sempre de defesa…) não queira alterar uma lei tão benéfica para os clientes dos seus associados, igual postura não sendo de admirar por parte de partidos em que, assumidamente ou não, grasse airosamente a corrupção.

Com a justiça neste baixo nível, com o Estado neste triste estado, quem pode, em sucessivas eleições, admirar-se com o cada vez mais elevado nível de abstenção?

 

4. Conclusão e Propostas

Poucas dúvidas podem, pois, restar quanto às causas profundas da atual fraca qualidade da administração da justiça em Portugal, as quais, de forma determinante e, pelo menos, por longas décadas, irreversivelmente e com extrema gravidade continuarão a fazer-nos sofrer os seus efeitos.

Os juízes vitimados por esta evolução são, naturalmente, os menos culpados de tudo. As vítimas dessas vítimas - nós - é que são as verdadeiras culpadas das escolhas que vão fazendo para a governação.

A incapacidade de lidar com as cada vez maiores exigências de rigor na gestão e decisão dos processos judiciais exige que, no mais curto espaço de tempo possível, os poderes políticos clara e definitivamente se entendam quanto à completa restruturação do processo e do sistema judiciário.

Isto, num país em que, ao mesmo tempo que a população não cessa de diminuir, parece ser cada vez maior a conflitualidade, cada vez mais numerosas as questões comezinhas com dignidade de ser dirimidas em juízo.

No interesse de quem?

Porquê?

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A execução é a própria razão de ser da sentença. O interesse público e o Direito não se satisfazem numa mera condenação inane, que não faça justiça por não haver quem a faça cumprir. Ubi non est justicia, ibi non potest esse jus*)

A fazer fé nas notícias, não há como, racionalmente, não considerar estarmos em presença de diversos factos dificilmente explicáveis, a não ser por quanto já se disse relativamente à deficiente formação e consequente fraca credibilidade de parte importante e significativa dos agentes da justiça.

O conjunto de factos que as notícias trazem ao cerzir destas conclusões sugere que, no caso aqui abordado, a justiça nem sempre terá sido bem servida por preocupante défice de competência de alguns dos seus agentes.

Ao que tudo parece indicar, terão falhado juízes que deixaram o Condenado à solta, outros juízes que se limitaram a averiguar as razões da demora na detenção, e também advogados do Estado e os do Assistente por não terem sido, no momento oportuno, mais vigilantes e interventivos.

As razões profundas prender-se-ão, como vimos e antes de mais, com percalços no processo educacional e formativo dos quais algumas destas pessoas terão sido vítimas nas épocas aqui amplamente referidas, ao mesmo tempo que, às razões mais próximas, não será, porventura, alheia a descontração nem sempre benéfica associada às prolongadas férias judiciais.

A detenção do Cônjuge, a detenção ilegal de outro condenado, o inocente com nome idêntico que se andou a tentar apanhar, o desaparecimento das telas, eventuais cumplicidades, o esquecimento dos editais, tudo isso é grave, diz bem da qualidade do desempenho de certos magistrados a quem são confiados processos de seriedade e de gravidade supremas.

No entanto, se considerarmos os efeitos, não passam de faits divers quando comparados com as duas grandes perguntas jamais respondidas, as quais, essas sim, causam verdadeiro alarme social:

·     A primeira, por que razão, uma vez constatada, e mais tarde expressamente admitida, a superveniência de risco de fuga a partir de 19 de Julho de 2021, não foi o Condenado prontamente detido ou, pelo menos, apreendido o seu passaporte?

·      A segunda, qual a razão pela qual, apesar de não poder dar ordens a juízes, o Conselho Superior da Magistratura não exerceu, pelo menos, uma magistratura de influência no sentido de procurar assegurar a exigível eficácia na prevenção da fuga?

As respostas que, instintivamente, ocorrem para estas questões são de tal forma revoltantes, de tal forma desprestigiantes para tanta gente e para tantos interesses legítimos e fundamentais associados à promoção e salvaguarda da imagem exterior do País numa vertente tão essencial para o desenvolvimento económico do qual tanto dependemos, que melhor será nem as verbalizar; até porque, de tão imediatas, inevitáveis e evidentes, qualquer um, quase sem refletir, muito naturalmente a tais respostas chegará.

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"The law should be stable but never stand still".

Passemos, pois, sem aqui aprofundar, à formulação de propostas, de ideias singelas, para serem desenvolvidas por quem sabe, visando, naquilo que ainda for possível, o risco de futuros e maiores danos minorar:

I. Elaboração de nova legislação relativa à fixação das medidas de coação, clara, precisa, obrigatória, coerciva e balizada por parâmetros e critérios objetivos que, em alguns casos, gerem automatismos e, noutros, vinculem de forma inequívoca a atuação do juiz, entre as quais:

a) Obrigatoriedade da entrega do passaporte do acusado imediatamente após a prolação da sentença pelo tribunal de julgamento.

b) Obrigatoriedade da prisão preventiva uma vez confirmada, pelo Tribunal da Relação, a sentença condenatória.

c) Na data do trânsito em julgado, emissão automática e imediata execução do mandado de detenção para cumprimento de pena.

II. Classificação, segundo critérios mais objetivos do que os atuais, dos processos judiciais, especialmente os criminais, em função da responsabilidade, do impacto económico e social associável e de outras variáveis que contribuam para definir uns como mais sensíveis do que outros.

III. Revisão dos critérios de distribuição dos processos mais sensíveis, reservando-os aos magistrados mais experientesmais especialmente qualificados.

IV. Criteriosa definição das qualificações e dos requisitos mínimos objetivos de formação e, sobretudo, de idade e de experiência dos magistrados com acesso aos processos classificados como mais sensíveis.

V.  Estabelecimento de um mais exigente regime de vigilância dos processos criminais, designadamente quanto à verificação, quanto às medidas de coação, do rebus sic stantibus.*)

VI. Rigorosa investigação do que, na lei ou fora dela, possa ter levado o Condenado a sentir-se suficientemente seguro de que não seria preso, a ponto de se dar ao luxo de entrar e sair, a seu bel-prazer, do território nacional.

VII.  Reversão da separação das carreiras de magistrado do Ministério Público e de magistrado judicial.

VIII.Reflexão profunda sobre a forma como a ponderação de medidas de coação é abordada no CEJ.

IX.   Encurtamento, para metade, do período de Verão das férias judiciais.

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Os juízes ocupam o topo da pirâmide do sistema judiciário, e o sucedido, independentemente dos culpados, não é desculpável, seja qual for o ângulo de que o queiramos olhar.

Sempre que magistrados investidos nas suas funções pelo Estado falham de forma tão clamorosa, é a credibilidade de todo o sistema que fica em risco, e, com a dele, a credibilidade da própria justiça. Mas, isto, tal como tudo quanto antecede, não passa da minha modesta opinião.

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O caos mora mesmo à esquina de um Estado sem justiça.

A todos convém mantê-lo afastado da nossa habitação.

Sic transit gloria mundi...

* *

Da mesma forma, haverá que evitar a proximidade de certos magistrados de má fama, que em nada beneficiam a imagem da magistratura.

(leia aqui a sequência)