sábado, 26 de março de 2022


Chamo-lhe, ou Chamo-o de?

"A forma 'chamou-o de tonto' não passa da deturpação brasileira da expressão 'chamou-lhe tonto'

"Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e,
com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões que apenas se prendem com convenções sociais.
Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar
"


Deixando muito boa gente de cabelos em pé, com cada vez maior frequência, encontramos, faladas ou escritas, expressões como “chamou-o de tonto”. Seguem-se-lhes, ora o ataque de quem sustenta que tais expressões apenas são válidas no Brasil, ora a defesa de quem recorre à estafada cantilena da anterior utilização por este ou por aquele autor português - amiúde citando uma produção posterior à invasão, pela telenovela brasileira, do inconfundível espaço cultural genuinamente português

O Predicado

Assim, e como quase sempre acontece nestas coisas da língua pátria, nenhuma fundamentação válida é apresentada para uma ou para outra posição, resumindo-se cada uma à mera e inane, embora legítima, expressão da opinião subjetiva dos respetivos defensores ou detratores.

O raciocínio lógico que, de seguida, aqui se desenvolve, leva a perfilhar a conclusão segundo a qual a forma “chamou-o de tonto” não passa, em boa verdade, da deturpação brasileira da expressão “chamou-lhe tonto, corretamente utilizada na mesma língua portuguesa que, mau grado os tratos de polé que lhe infligem, os brasileiros dizem falar.

- x –

Iniciemos o raciocínio referindo aquilo que é evidente: independentemente das circunstâncias em que o ato é praticado, no caso de que aqui tratamos chama-se, sempre, algo a alguém.

Temos, assim:

  • o predicado composto pela forma do verbo chamar,
  • o objeto (ou complemento) direto algo – o nome, normalmente pejorativo, que se chama –,
  • e o objeto indireto alguém – aquele a quem se chama o tal nome.


A ideia expressa no nosso exemplo, é, pois, a de que alguém “chamou tonto a ele”; e, utilizando, como complemento indireto, o pronome oblíquo átono, essa ideia exprime-se, em bom português, como “chamou-lhe tonto”, assim se concluindo ser esta expressão correta a utilizar, seja por quem for e em que lugar do Globo o vier a fazer.

- x -

Onde e por que começou, então a deturpação para “chamou-o de tonto”?

Jamais o saberemos, mas poderemos pensar em algumas possíveis explicações:

1. O erro poderá ter sido originado, dada a semelhança formal, pela errada associação do ato de chamar algo a alguém com, por exemplo, a ideia de vestir ou cobrir alguém, como em “vestiu-a de branco”. 

Inexiste, porém, qualquer confusão legítima entre esta expressão, corretamente construída, e “chamou-o de tonto”, já que, no primeiro caso, associado ao objeto direto “-a” (por ela) temos o complemento circunstancial de modo “de branco”, e não uma estranha espécie de objeto indireto que, no segundo caso, se pretende inadequadamente exprimir com “-o”.

No mesmo exemplo, o complemento circunstancial de modo “de branco” - no sentido de “de tecido branco” - inicia-se, e muito bem, pela preposição “de”.

2. Uma outra causa provável poderá ter a ver com o facto de ser possível chamar alguém para determinado fim, como em “chamei-o para trabalhar comigo”, caso em que o “-o” nos surge, naturalmente, como objeto direto. Mas, neste caso, surge com toda a legitimidade - e sem de -, uma vez que exprime, não aquilo que se chamou a alguém, mas a pessoa (objeto direto) que foi convocada.

Claro está que diversos complementos iniciados por de são, aqui, suscetíveis de enriquecer a ideia, como em “ontem chamei-o, lá de longe, para trabalhar aqui comigo”, sempre se mantendo inalterada a classificação do “-o”. 

No entanto, nada disto tem, no entanto, qualquer relação legítima com o errado "chamar alguém de".

3. Outra explicação poderá residir na semelhança com o verbo apodar, que significa chamar um nome “feio”.

Esse sim, apesar de exprimir, também, uma ideia de transmissão de determinada ideia a alguém, rege a preposição “de”; ao contrário do que acontece com o verbo chamar, mas de forma idêntica ao que sucede, por exemplo, com os verbos notificar e informar, quando utilizados com o mesmo objetivo.

Enfim, seja qual for a origem do cada vez mais recorrente erro chamar alguém de, do ponto de vista lógico, racional, substantivo, que deve presidir à formação e desenvolvimento de qualquer idioma, poucas dúvidas poderão restar de que, quando utilizado para veicular uma ideia a alguém, o verbo chamar não rege a preposição de.

- x –

Não obstante, e tal como em múltiplas outras vertentes da vida, também na gramática nem todos os preceitos são válidos independentemente das circunstâncias em que são aplicados.

Não se conclua, assim, que a preposição “de” deve ser, obrigatoriamente, excluída de frases construídas com o verbo chamar, no sentido de qualificar alguém.

De facto, este ato de chamar algo a alguém ocorre, inevitavelmente, em circunstâncias como, por exemplo, as de lugar relativas àquele que chama, as quais, quando expressas na frase, operam como complementos que devem ser introduzidos pela preposição “de”.

Se decidirmos referir, por exemplo, circunstâncias de lugar, o nosso “chamou-lhe tonto” inicial evoluirá para “de longe, chamou-lhe tonto”; ou, quanto às circunstâncias de modo, para “chamou-lhe tonto, assim de chofre”, sendo diversas as possíveis variantes.

- x –

A posição aqui assumida vai, aliás, de encontro àquilo que sucede com outros verbos que exprimem a transmissão de uma ideia a alguém e, pelo menos nesse sentido, não regem preposição, tais como dizercomunicartransmitirpedir e oferecer, entre outros.

·         Disse-lhe o que pensava”, e não “disse-o do que pensava

·         Comuniquei-lhe a minha posição”, e não “comuniquei-o da minha posição

·         Transmiti-lhe a informação”, e não “transmiti-o da informação

·         Pedi-lhe ajuda”, e não “pedi-o de ajuda

·         Ofereci-lhe os meus préstimos”, e não “ofereci-o dos meus préstimos

·         Chamei-lhe tonto”, e não “chamei-o de tonto

Desafortunadamente, porém, começa a ser comum encontrar, em sítios de cariz alegadamente cultural - que aqui não serão nomeados -, esta última construção chamar alguém de, até em escritos que, embora de forma aligeirada, abordam temas importantes da língua portuguesa, tais como a formação ou utilização de vocábulos ou o enunciado e a aplicação de regras gramaticais.

Na elaboração do que esses sítios culturais afixam, regularmente colaboram emergentes linguistas que não hesitam em iniciar parágrafos por "E", ou em dinamizar um monótono texto com um popularucho "Bolas!" ou outra expressão de gosto duvidoso e pretensamente coloquial.

Alguns insistem, mesmo, em exibir, com indesejável frequência e em desproporcionadas dimensões, imagens dos seus desinteressantes rostos em pose que talvez considerem sedutora, encabeçando textos mais ou menos emotivos e em tom propositadamente acessível. Esperarão, porventura, dessa forma captar aquele auditório mais amplo e interessante - leia-se: que " mais cliques" -, mas que se não mostra capaz de entender explicações mais elaboradas, por absoluta falta de substrato intelectual, cultural e teórico que lhe permita interpretá-los.

Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e, com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões vocabulares que, afinal, têm a ver, não com regras gramaticais, mas com meras convenções sociais.

Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar.

- x -

Pede-se algo a alguém, tal como se chama algo a alguém.

Pede-se-lhe, e chama-se-lhe.

Não há que enganar.

* *

Tudo isto, naturalmente, sem negar aos nossos irmãos brasileiros o mais amplo e sedimentado direito de se exprimir como bem entenderem, naquela sua língua que tão parecida é com a nossa.

(continua aqui)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


sexta-feira, 25 de março de 2022


Vladimir Putin Morreu. Leva-nos com Ele?

Em memória da extinta cidade mártir de Mariopol

Aquilo que o Presidente da Federação Russa pretendia representar aos olhos do Mundo esboroou-se nuns poucos dias de indizível e gélida barbárie: de indiferença perante o sofrimento causado a milhões de inocentes em nome da exaltação do ego de um psicopata formado nas hostes do KGB*), e da multiplicação dos proventos económicos da sua coorte, militar ou não militar.

Refém de um ror de operações plásticas pensadas para lhe permitir parecer quem não é; refém de incontáveis mansões, iates e do mais que comprar lhe aprouver; refém de grandiosos e parolos cenários em que exibe a agora depauperada imagem que, décadas a fio, julgou cultivar - quando, no íntimo, todos escarneciam dele e inventavam manobras arriscadas para a fera amansar -, é este o execrável tirano que ordenou o martírio dos ucranianos e que, com ele, se recusa a parar.

Demonstrado que está, à saciedade, que o rei vai nu, que aquela figurinha que nem andar sabe, ridícula, desengonçada, mesquinha, sem planta, cometeu erros tão inesperados e inacreditáveis numa operação arrastada mas que, em toda a sua maldade, deveria ter sido simples e fulminante, nada resta da personagem que ele julgava estar a criar. O respeitado, sofisticado e admirado Vladimir Vladimirovitch que, nos seus sonhos mais loucos, Putin imaginou e idealizou, simplesmente morreu, e não sabe já como fazer-se ressuscitar.

O atual Presidente da Federação Russa não passa, assim, de um indivíduo básico, mal formado, sádico e, quanto a sofisticação, ao nível rasteiro de um daqueles craques da bola que gastam, em mansões e mais mansões, em iates e mais iates e no mais que lhes aprouver comprar, os milhões amealhados à custa de submissos basbaques que vivem do magro salário ao fim do mês. Craques que, com totais desplante e frieza, se não coíbem de continuar a exibir, na Internet, a faustosa riqueza*), os óculos caros da mamã, os hábitos espalhafatosos da irmã, enquanto outros são bombardeados ou metralhados, são desalojados, espoliados dos seus bens, e morrem; e sofrem; e choram, quantas vezes sem um ombro amigo onde se amparar.

Como se tal não bastasse, a longevidade física do dito Presidente poderá agora estar, também ela, seriamente comprometida, a fazer fé no que pode ler-se sobre o seu periclitante estado de saúde, não apenas mental, mas físico.

Ora, isto, é sério, muito sério. Não apenas para ele - que, como pessoa, interessa menos que nada -, mas para toda a Humanidade que, imprudentemente, caiu nas mãos de um maníaco do poder já mais do que ciente do irreparável trambolhão que acaba de dar, queda da qual jamais poderá, por meios legítimos, recuperar. De um maníaco que sabe muitíssimo bem que a única forma de se tornar inesquecível não é o mero recurso a armas químicas, ou lançar a III Guerra Mundial: será estender a mão e premir o botão nuclear!

- x -

Desfasado no tempo, cada vez mais só, hirto, irredutível, doente, escarnecido, ostracizado, ridicularizado, o que tem, afinal, a perder Vladimir Putin a perder com uma guerra nuclear? Nada. Da forma como o este aramamento está partilhado entre o Leste e o Oeste, quem premir o botão mata, é certo; mas, não menos certo é que comete, ao mesmo tempo, suicídio inevitável - a menos que o faça do avião presidencial, teoricamente imune a impactos de deflagrações de ogivas nucleares.

Indiferente ao homicídio e à tortura, que lhe importa o suicídio? A personagem Vladimir, o Grande que criou, morreu. O corpo estará, quiçá, prestes a segui-la. Até agora, apenas conseguiu que, por uns tempos, todos falem dele. Resta-lhe, para ficar na História de um planeta morto, ser, dessa morte, simultaneamente o orgulhoso agente e o causador.

Esquecer-se-á de que, para que o botão nuclear seja ativado, outros tarados terão de concordar com ele; e que nem todos estes terão assento no avião presidencial?

Poderão ser, assim, estes corruptos autómatos acenadores de cabeças a nossa única esperança? Ou estarão os sequazes  do Presidente também prontos, não apenas a assassinar os seus, mas a suicidar-se em nome da sacrossanta imagem de um perigoso e egocêntrico vaidoso que, diz-se, deixaram de olhar como um indiscutível patrão?

As próximas semanas ou meses, se existirem, o dirão... Dirão se chegou, afinal, o momento em que até os crimes de guerra deixam de interessar, por deixar de haver quem os irá julgar.

* *

Do lado ucraniano, nem tudo parece serem rosas, também...

(continua aqui)

quinta-feira, 24 de março de 2022


Mário Machado e a Juíza de Instrução Criminal

Corre por aí uma onda de indignação pelo facto de, no quadro da aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência com apresentações quinzenais à autoridade policial, uma juíza de instrução criminal haver dispensado do dever de apresentação às autoridades o arguido num processo criminal por posse de arma proibida*).

Pondo de parte qualquer consideração de ordem subjetiva relativa à pessoa do arguido - e com a ressalva de que desconheço os textos completos, quer do requerimento, quer da oposição, quer decisão -, parece-me improvável que a agora mediatizada magistrada pudesse haver decidido de outra forma.

Antes de mais, não estando aqui em causa uma autorização para se ausentar do país - note-se bem que jamais foi exigida a entrega do passaporte... -, o único efeito prático da dispensa de apresentação às autoridades foi, salvo melhor opinião, o de permitir uma estada no estrangeiro por um período superior a duas semanas.

Apenas isto; e apenas isto relativamente a um indivíduo que, independentemente das desgraçadas ideias que alardeia e das pesadas condenações anteriores por atos com elas relacionadas, já pagou a dívida à sociedade mediante o cumprimento das penas em que foi condenado, apenas sendo, agora, arguido relativamente à eventual prática de um crime de baixa gravidade, como o é o de posse de arma proibida, punível, nos termos do art.86º do Código Penal Português, com prisão até três anos ou multa até 360 dias..

Neste quadro, com que fundamento poderia a juíza ter recusado um pedido, não para se deslocar à Ucrânia ou onde quer que fosse fora de Portugal, mas apenas para por lá permanecer mais do que os quinze dias de intervalo que lhe foram fixados?

Para lá da emotividade de uma sociedade e da exploração por uma comunicação social ávida de notícias, a verdade é que:

  • para todos os efeitos legais, o arguido é presumível inocente até ao trânsito em julgado de decisão condenatória;

  • sair de Portugal, sempre pode: o pedido visa, unicamente, a possibilidade de permanência além de duas semanas em missão humanitária junto de um país invadido ao qual Portugal presta auxílio e apoio;

  • risco de fuga nunca entenderam os tribunais que existisse, ou outra teria sido a medida de coação aplicada - e a decisão ora criticada tal risco, decididamente, não gerou;

  • da prática dos dois outros crimes que lhe são atribuídos - de incitamento ao ódio racial e à violência - era, à data do despacho, um mero suspeito.

Ora, a juíza de instrução fundamentou o despacho dizendo que dada “a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido para a sua pretensão, o arguido poderá deixar de cumprir a referida medida de coação enquanto estiver ausente no estrangeiro”, o que é consentâneo com os pontos acima enumerados: negar o pedido mais não seria, ao que tudo parece indicar, do que uma decisão arbitrária, subjetiva, politicamente motivada e, do ponto de vista estritamente técnico, notoriamente violadora, pelo menos, do princípio constitucional da proporcionalidade.

Mostra-se, assim, absolutamente ridículo, falso e manipulatório da opinião pública que estejamos perante uma "decisão que autoriza Mário Machado a ir lutar para a Ucrânia"*), ou que o assumido neonazi foi "autorizado pelo tribunal a combater na Ucrânia"*), ou que se pergunte por que razão Mário Machado foi autorizado a sair do país, ou qualquer outra mais ou menos insidiosa patacoada do género, aparentemente apenas destinada a vender assinaturas de jornais ou minutos de publicidade nas televisões, ou devida ao simples facto de, quem a escreveu, nem a parte relevante da fundamentação do despacho se ter dado ao cuidado de ler.

- x -

Mais do que quem aqui escreve, ninguém é mais crítico daquilo que, em crescendo, a magistratura judicial portuguesa de si tem vindo a dar a conhecer, bem como das aberrantes e desumanas ideias defendidas pelas extremas mais extremas da política nacional ou internacional.

Mas, no momento em que começamos, impiedosamente, a crucificar inocentes servidores públicos pelo simples facto de terem proferido decisões acertadas, apenas como forma de exaltar os ânimos ou de desviar as atenções dos leitores e espetadores de coisas bem mais graves e preocupantes que se passam nos meandros da política portuguesa - como, por exemplo, as relacionadas com a formação do próximo governo constitucional; no momento em que tomamos conhecimento de perplexidades relacionadas com o despacho da juíza de instrução por parte de mediáticos juristas de quem se espera uma análise objetiva e fria das disposições da lei, não há como calar mais uma muito séria palavra de alerta para os perigos da prosápia e da excessiva e, por vezes, enviesada mediatização.



quarta-feira, 23 de março de 2022


Paulo Portas

Paulo Portas

"
Quando se pretende ser tudo e o contrário de tudo,
não se acredita em nada.
É essa falta de fé no mais pequeno valor
que faz a miséria moral de muitas democracias modernas
"

Paulo Portas*)              
(O Independente)                  


A crescente tendência para navegar sem carta, sem bússola, sem planear, ao sabor do vento, das conveniências, da popularidade, da notoriedade e do desenfreado culto do eu conduziu a Humanidade ao beco sem saída à vista em que todos nos encontramos, situação em que a maior parte continua a preferir não pensar ou, em estado de negação, rejeita encarar com a coragem necessária a procurar reverter.

Os governos e os políticos que os integram limitam-se a fugir para a frente, para um destino desconhecido*), ou adivinhado e temido, que pouco ou nada fazem para evitar ou para dele nos defender. Cada vez mais, vamos ficando nas mãos de meros e anódinos administradores do inevitável, do que tem de ser, que pelos corredores do poder deambulam ao ritmo das aparições na televisão e dos posts nas redes sociais, promovendo-se o melhor que podem para que, pelo menos, quando saem desta mirabolante confusão algo de seu ou para contar ainda possam vir a ter.

Por seu turno, o iludido, manipulado, pouco instruído e mal educado eleitor lá vai votando*), a esmo, em quem lhe parece mais espetacular, quem faz mais barulho, mais promessas, na esperança de que quem hoje vota delas amanhã se irá esquecer.

O cenário está montado para que emerja desta amálgama, deste caos, mais um ditador de pantomina, ávido de riqueza pessoal e de poder, envolto numa aura de respeitabilidade e de resplandecente fulgor que, de início, os pacóvios que somos irá deslumbrar, para, mais tarde e como sempre, amargar num regime autocrático de sofrimento, de pobreza, de tirania, de insuperável torpor, de excruciante dor.

* *

As portas para a entrada da ditadura estão escancaradas, dados o desnorte e a inabilidade política por parte da maior parte dos partidos que nos deveriam representar.

(leia aqui o desenvolvimento)



terça-feira, 22 de março de 2022


Angela Merkel: Onde Pára, agora, a Chanceler?

Por muitos apontada como a grande responsável por um considerável aumento da dependência da Alemanha e de boa parte da Europa dos combustíveis produzidos na Rússia - logo, pela manifesta dificuldade sentida pela União em aplicar, à oligarquia presidida pelo implacável torcionário cultivado no viveiro do KGB, ainda mais severas e eficazes sanções -, não deixa de ser surpreendente ou, pelo menos, inesperado o persistente quase silêncio da anterior Chanceler durante semanas após o eclodir da assim chamada guerra.

Surpreendente ou não, o que parece inegável é que, a despeito daquilo que cada vez mais se revela um clamoroso erro estratégico, terá sido ela o último grande estadista que o notoriamente perturbado e fortemente comprometido Presidente da Federação Russa respeitava numa Europa atualmente nas mãos de governantes pusilânimes como, ao mesmo tempo, jamais se viu: uns, fracos e dependentes; outros, esgrouviados, de cabelos ao vento; outros ainda, habilidosos, mas pouco mais do que isso. Todos eles, enfim, como que catalépticos, estáticos, desnorteados, embrutecidos perante os horrores da invasão da Ucrânia, contrastando fortemente com o lépido, algo gárrulo, mas inegavelmente intrépido Presidente dessa martirizada Nação.

Talvez por isso mesmo, pela postura, pelo carisma, pela bem patente estrutura e solidez do carácter de quem sabia bem por que ali estava e ao que ia, mereceria ela, por parte do ora agressor, uma espécie de respeito, de temor, que, o terá levado a abster-se de enveredar pelo caminho da mais abjeta maldade enquanto o mandato da Chanceler durou.

Claro está que, a essa contenção, não terão sido alheias as sucessivas concessões da Alemanha nas trocas comerciais com a Rússia, na vá esperança de manter a fera amansada, as quais a besta transtornada terá, despudoradamente, aproveitado para aceitar enquanto, pela calada, preparava o seu supostamente grandioso mas de facto lastimável e frustrado ato de saída de cena: a invasão. Da Ucrânia, de mais alguma coisa, ou de tudo e mais alguma coisa e sabe-se lá mais do quê.

Tirando uma ou outra aparição pontual e quase esquiva, onde pára, agora a Chanceler? A que papel poderia, porventura, ser chamada na tentativa de resolver o que parece irresolúvel?

A nenhum, talvez.

Acabaria, provavelmente, destratada e confrontada com o logro que prováveis boa-fé e ingenuidade viabilizaram; com a pouco invejável situação negocial de uma União manietada pela dependência; com considerável culpa pelo arrastar de uma agressão, de uma destruição maciça de pessoas e bens por parte de quem, afinal, controla e controlará os combustíveis tornados indispensáveis à economia dos estados que o agressor poderiam deter.

* *

Entretanto, na Ucrânia, o notório excesso de mediatização da ação do presidente Zelensky tem vindo a lançar sérias dúvidas acerca daquilo que verdadeiramente o move.

[encontrará aqui a sequência deste artigo]



segunda-feira, 21 de março de 2022


Rússia: Qual é a Novidade, afinal?

Imaginemos um agente da PIDE.

Não um daqueles básicos, broncos, bestializados, subservientes indivíduos que, tudo quanto sabiam dizer, era um mal pronunciado 'Sim, Chefe!', ou coisa que o valha.

Pensemos, antes, num daqueles indivíduos de maldade mais refinada, intrínseca e estruturalmente sádicos, mestres na tortura, no pôr e dispôr da liberdade e da vida de quem lhes caísse nas malhas da rede.

Pensemos, também, nos seus superiores hierárquicos, nos decisores, que, igualmente indiferentes ao sofrimento alheio e absolutos desconhecedores ou detratores de ideais como o da liberdade que não fosse a deles, ordenavam atos da maior barbárie dirigidos àqueles por quem o Regime se dizia ameaçado, ou que, mais simplesmente, não concordavam com ele.

Imaginemos, pois, o que seria um desses decisores ou graduados da Polícia Internacional e de Defesa do Estado hoje guindado ao mais alto cargo executivo do dito, antes tendo tido o cuidado de se rodear de gente da sua confiança, de antigos sequazes, igualmente frios, igualmente duros, gananciosos, indiferentes. Sobretudo, ignorantes, parolos, exibicionistas, complexados, sociopatas, narcísicos, gente sem estrutura, sem planta, sem conteúdo, sem coisa alguma que valha a pena referir, porque nada teriam que os abonasse.

Pensando e imaginando tudo isto, como poderemos admirar-nos com uma agressão que não passa, afinal, da consequência natural da ascensão ao topo do poder por parte de um réptil destes?

O que mais se poderia, verdadeiramente, esperar de alguém que, pouco passava das vinte primaveras, ingressou na PIDE russa, rapidamente alcançando considerável estatuto na Organização e, mais tarde, passando, já na cena política, a manobrar com habilidade e maestria, lugares de grande destaque no famigerado Kremlin?

Destruir cidades inteiras, indiferente à inevitável perda de vidas, ou visar, simplesmente, a destruição dessas vidas alegando a inevitabilidade inerente à destruição das cidades ou de alvos militares não passará de um jogo de palavras.

Uma e outra formulação representarão a mesmíssima coisa aos olhos de quem, ao que tudo indica, se encontra reduzido à absoluta necessidade de ir até ao horrendo e inenarrável fim, apenas para disfarçar um erro de cálculo monstruoso por si cometido. Um erro devido, não apenas à inesperada resistência das forças armadas e dos cidadãos ucranianos, ou à também algo inesperada ajuda militar maciça oriunda até dos mais inesperados países, mas, provavelmente, também a recorrentes desvios, diretamente para as contas bancárias do punhado de oligarcas que pôs e mantém no poder o antigo major da KGB, de verdadeiras fortunas destinadas à compra de armamento para um supostamente invencível exército, que, como cada vez mais se torna evidente, logo nos primeiros dias do ataque em toda a sua relativa fragilidade se mostrou.

Por tudo isto, o Presidente da Federação Russa só irá parar quando puder, de forma inequívoca, salvar a face; ou quando perder, definitivamente, a paciência a plêiade de oligarcas corruptos que, em tempos, a sua outrora inegável e malévola competência recompensou.

(pode ler aqui a sequência do tema)