"A forma 'chamou-o de tonto' não passa da deturpação brasileira da expressão 'chamou-lhe tonto'”
"Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses
eruditos a citar autores e,
com títulos chamativos e a coberto da
gramática, a abordar questões que apenas se prendem com convenções
sociais.
Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum
encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será,
quiçá, a melhor forma de ensinar"
Deixando muito boa gente de cabelos em pé, com cada vez maior frequência, encontramos, faladas ou escritas, expressões como “chamou-o de tonto”. Seguem-se-lhes, ora o ataque de quem sustenta que tais expressões apenas são válidas no Brasil, ora a defesa de quem recorre à estafada cantilena da anterior utilização por este ou por aquele autor português - amiúde citando uma produção posterior à invasão, pela telenovela brasileira, do inconfundível espaço cultural genuinamente português
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Temos, assim:
-
o predicado composto pela forma do verbo chamar,
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o objeto (ou complemento) direto algo – o nome, normalmente pejorativo, que se chama –,
- e o objeto indireto alguém – aquele a quem se chama o tal nome.
A ideia expressa no nosso exemplo, é, pois, a de que alguém “chamou tonto a ele”; e, utilizando, como complemento indireto, o pronome oblíquo átono, essa
ideia exprime-se, em bom português, como “chamou-lhe tonto”, assim se concluindo ser esta expressão correta a utilizar, seja por quem
for e em que lugar do Globo o vier a fazer.
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Onde e por que começou, então a deturpação para “chamou-o de tonto”?
Jamais o saberemos, mas poderemos pensar em algumas possíveis explicações:
1. O erro poderá ter sido originado, dada a semelhança formal, pela errada associação do ato de chamar algo a alguém com, por exemplo, a ideia de vestir ou cobrir alguém, como em “vestiu-a de branco”.
Inexiste, porém, qualquer confusão legítima entre esta expressão, corretamente construída, e “chamou-o de tonto”, já que, no primeiro caso, associado ao objeto direto “-a” (por ela) temos o complemento circunstancial de modo “de branco”, e não uma estranha espécie de objeto indireto que, no segundo caso, se pretende inadequadamente exprimir com “-o”.
No mesmo exemplo, o complemento circunstancial de modo “de branco” - no sentido de “de tecido branco” - inicia-se, e muito bem, pela preposição “de”.
2. Uma outra causa provável poderá ter a ver com o facto de ser possível chamar alguém para determinado fim, como em “chamei-o para trabalhar comigo”, caso em que o “-o” nos surge, naturalmente, como objeto direto. Mas, neste caso, surge com toda a legitimidade - e sem de -, uma vez que exprime, não aquilo que se chamou a alguém, mas a pessoa (objeto direto) que foi convocada.
Claro está que diversos complementos iniciados por de são, aqui, suscetíveis de enriquecer a ideia, como em “ontem chamei-o, lá de longe, para trabalhar aqui comigo”, sempre se mantendo inalterada a classificação do “-o”.
No entanto, nada disto tem, no entanto, qualquer relação legítima com o errado "chamar alguém de".
3. Outra explicação poderá residir na semelhança com o verbo apodar, que significa chamar um nome “feio”.
Esse sim, apesar de exprimir, também, uma ideia de transmissão de determinada ideia a alguém, rege a preposição “de”; ao contrário do que acontece com o verbo chamar, mas de forma idêntica ao que sucede, por exemplo, com os verbos notificar e informar, quando utilizados com o mesmo objetivo.
Enfim, seja qual for a origem do cada vez mais recorrente erro chamar alguém de, do ponto de vista lógico, racional, substantivo, que deve presidir à
formação e desenvolvimento de qualquer idioma, poucas dúvidas poderão restar
de que, quando utilizado para veicular uma ideia a alguém, o verbo chamar não
rege a preposição de.
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Não obstante, e tal como em múltiplas outras vertentes da vida, também na gramática nem todos os preceitos são válidos independentemente das circunstâncias em que são aplicados.
Não se conclua, assim, que a preposição “de” deve ser,
obrigatoriamente, excluída de frases construídas com o
verbo chamar, no sentido de qualificar alguém.
De facto, este ato de chamar algo a alguém ocorre, inevitavelmente, em
circunstâncias como, por exemplo, as de lugar relativas àquele que chama, as
quais, quando expressas na frase, operam como complementos que devem ser
introduzidos pela preposição “de”.
Se decidirmos referir, por exemplo, circunstâncias de lugar, o nosso “chamou-lhe tonto” inicial evoluirá para “de longe, chamou-lhe tonto”; ou, quanto às circunstâncias de
modo, para “chamou-lhe tonto, assim de chofre”,
sendo diversas as possíveis variantes.
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A posição aqui assumida vai, aliás, de encontro àquilo que sucede com
outros verbos que exprimem a transmissão de uma ideia a alguém e, pelo menos
nesse sentido, não regem preposição, tais
como dizer, comunicar, transmitir, pedir e oferecer,
entre outros.
· “Disse-lhe o que pensava”, e não “disse-o do que pensava”
· “Comuniquei-lhe a minha posição”, e não “comuniquei-o da minha posição”
· “Transmiti-lhe a informação”, e não “transmiti-o da informação”
· “Pedi-lhe ajuda”, e não “pedi-o de ajuda”
· “Ofereci-lhe os meus préstimos”, e não “ofereci-o dos meus préstimos”
· “Chamei-lhe tonto”, e não “chamei-o de tonto”
Desafortunadamente, porém, começa a ser comum encontrar, em sítios de cariz alegadamente cultural - que aqui não serão nomeados -, esta última construção chamar alguém de, até em escritos que, embora de forma aligeirada, abordam temas importantes da língua portuguesa, tais como a formação ou utilização de vocábulos ou o enunciado e a aplicação de regras gramaticais.
Na elaboração do que esses sítios culturais afixam, regularmente colaboram emergentes linguistas que não hesitam em iniciar parágrafos por "E", ou em dinamizar um monótono texto com um popularucho "Bolas!" ou outra expressão de gosto duvidoso e pretensamente coloquial.
Alguns insistem, mesmo, em exibir, com indesejável frequência e em desproporcionadas dimensões, imagens dos seus desinteressantes rostos em pose que talvez considerem sedutora, encabeçando textos mais ou menos emotivos e em tom propositadamente acessível. Esperarão, porventura, dessa forma captar aquele auditório mais amplo e interessante - leia-se: que "dá mais cliques" -, mas que se não mostra capaz de entender explicações mais elaboradas, por absoluta falta de substrato intelectual, cultural e teórico que lhe permita interpretá-los.
Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e, com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões vocabulares que, afinal, têm a ver, não com regras gramaticais, mas com meras convenções sociais.
Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar.
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Pede-se algo a alguém, tal como se chama algo a alguém.
Pede-se-lhe, e chama-se-lhe.
Não há que enganar.
* *
Tudo isto, naturalmente, sem negar aos nossos irmãos brasileiros o mais amplo e sedimentado direito de se exprimir como bem entenderem, naquela sua língua que tão parecida é com a nossa.
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela
utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro
escritor dela fará