sábado, 15 de janeiro de 2022


Vácuo vs Vazio: a Essência dos Debates Eleitorais

"Aquela trintena de mini-programas foi a fantochada e a vergonha que sempre fora programada para ser.
Ninguém alguma vez esperou que tudo aquilo servisse para alguma coisa,
nem acreditou que alguma coisa junto dos eleitores os debates viessem esclarecer.

Tudo não passou do habitual picadeiro das vaidades por parte dos concorrentes,
e da sensaborona inutilidade dos juris de comentadores.
De serões de indisfarçável tédio para todos nós, hesitantes eleitores e obedientes espetadores
"


Debates ou embates?
Impropriamente chamados debates, terminam hoje duas semanas de embates em frente-a-frente, desenhados para isso mesmo: para serem meros embates de escassos minutos, nos quais as televisões promotoras não deixaram, aos convidados, qualquer possibilidade de debater o que quer que fosse além da personalidade e da suposta falta de idoneidade do interlocutor, apenas lhes dando o tempo estritamente necessário à picardia verbal, ou a entediar ainda mais um já de si entediado Portugal.

A ridícula duração fixada para a quase totalidade deles - igual a pouco mais do que a escassa metade de uma parte de um jogo de futebol - não permitiu a subsistência de qualquer dúvida relativamente ao verdadeiro propósito mediático desta maratona que antecedeu mais uma campanha eleitoral: prender à televisão, para consumir publicidade e mais publicidade, o tuga guloso da refrega entre políticos para os quais continua a olhar com o mesmo arregalado clubismo com que se deslumbra com os profissionais da indústria do futebol... que, em tempos, há muito idos, era tida como um desporto, antes de a também indústria da publicidade e da comunicação lhe ter lançado o anzol.

Se dúvidas houvesse quanto à natureza pretendida desta série de clips ao vivo que nos estragou os serões, o teor da pergunta feita por alguns pivots dos comentários que se seguiam a cada disputa dizia tudo: "Que nota dá a cada um? Quem considera que ganhou?"; e era ver àqueles senhores muito sabedores e eruditos oscilar entre o um e o cinco, como se aquilo alguma importância tivesse num assunto tão sério como a preparação de uma eleição legislativa num país democrático, ou que assim se diz.

Não deixa de ser verdade que, em boa parte dos casos, quem lá ia exibir-se - perdão, comentar - parece confundir fala afetada com um dom da palavra que, patentemente, não tem, e bem melhor faria se se contentasse em complementar o salário com uma crónica ocasional neste ou naquele jornal.

Mesmo assim, dava dó ver a atrapalhação em que alguns ficavam se alguma pergunta mais profunda e específica era formulada pelo pivot: iam responder o quê? Dizer o quê, se, para a vitória, apenas importavam o tom e a galhardia, a brejeirice, a mais ou menos torpe insinuação? Acima de tudo, não cair na tontice de dar trela ao tal André, ou escorregar na areia que, como sempre, por todo o lado andou a espalhar pelo já de si inclinado chão...

Graças, em boa parte, ao formato adotado, o que deveria ter sido uma oportunidade única de esclarecimento político, não passou de um montra privilegiada para moderadores dos debates e comentadores.

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O pânico do irrecuperável dano à imagem que o arruaceiro-mór pudesse causar-lhes junto do eleitorado deixou carrancuda, tensa, inexpressiva a maior parte dos adversários que lá se atreveram a defrontá-lo - já que um deles, habilmente, se esquivou com um argumento manhoso e pateta, próprio de quem, apesar da idade e da experiência, continua a não aprender como estar, com um mínimo de eficácia, na política em Portugal.

Meninges dos oponentes
Em quase todos os casos, o bloqueio intelectual e espiritual que o medo do arruaceiro a quase todos causava era tal que, quanto aos chavões habituais e estafados, nem retorquiram perguntando o óbvio: por que razão quem, em tempos, tinha tido dinheiro para comprar um telemóvel não o haveria de conservar na sua posse a fim de, através dele, poder tranquilizar os familiares que deixara para trás? Ou quantos anos teriam os tais Mercedes (ou, agora, também Porsche e, um dia, Bentley, quem sabe...) à porta de casa de pessoas que recebem subsídios, automóveis provavelmente a cair de podres como tantos que por aí se vê ainda  a circular? Ou, ainda, que chorudos proventos, a expensas do Estado, auferiria todo aquele batalhão de autarcas sem salário que ele diz querer descontinuar?

Não. Em vez disso, quase se via as meninges dos oponentes tremelicar no pânico de não sobreviver à investida seguinte, à qual respondiam mantendo-se, obedientemente, no terreno imposto pelo vivaço do outro contendor - que, aliás, ao longo dos dias e também nas sondagens, foi perdendo fôlego, acutilância, vigor, como se também ele acabasse desanimado com a falta de adubo que encontrava para a sua esperteza viva e de resposta pronta, acabando por esmorecer qual equipa a pairar no relvado depois daquilo a que os desportistas de poltrona gostam de ouvir chamar uma entrada de leão.

A verdade é que lá vai, de alguma forma, sendo eficaz, como eficaz é qualquer verdade ligeira ou descarada mentira emotivamente dita a uma genericamente pouco instruída e pouco educada população.

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Por seu turno, quando os representantes dos partidos democráticos supostamente debatiam entre si, o vácuo de ideias apenas era equiparável ao vazio das soluções, continuamente atiradas para o ar como meros desideratos ou contrapartidas às do adversário, sem especificar o como e o quanto subjacentes à maior parte delas, tendo a representante - de olhar fixo, duro e com um esgar cuidadosamente estudado para parecer um sorriso - de um partido da extrema-esquerda chegado a dizer, com todas as letras e inacreditável despudor, que isso do custo é o que tiver de ser!

Fugiram das explicações, da fundamentação, da teoria como o diabo da cruz, e fizeram bem, já que, quando se explica e quantifica, quase todos se desinteressam pelo muito que muito poucos são capazes de entender. O furúnculo da questiúncula partidária prevaleceu, assim, sobre a apresentação das políticas propostas; e bem, já que a luta de galináceos era, precisamente, aquilo a que, esquecendo-se da sua qualidade de eleitores, boa parte dos telespectadores queria, verdadeiramente, assistir, para gáudio das estações.

Nos representantes dos dois filhos pródigos da Geringonça, era notório o olhar mortiço, cristalizado, arrependido, quase culpado por se terem metido em tão tremenda alhada ao não viabilizar o Orçamento Geral do Estado, opção que, sem grande margem para dúvidas, os irá deixar em ainda bem pior situação: um cantinho no Parlamento e - desgraça das desgraças - o magro pecúlio correspondente a um resto de votos deixado nas urnas, para evitar que o partido tenha de andar por aí a estender a mão.

Para estas agora tão débeis forças políticas, apenas importa ter ideias, fingir ter soluções e acenar com elas aos ignorantes que, iludidos, ainda os apoiam, sem se ralar minimamente com a evidente inexequibilidade de meros desejos, de idílicos sonhos, de pretensos projetos que, impossíveis que são de desenvolver, nem ao menos chegarão a sê-lo.

Terra de Camões
Parece, enfim, que lá acabaram por entender a rede em que tinham caído, lançada pelo promotor do arranjo governativo, político competente e habilidoso, já mais do que farto de andanças nesta terra de Camões, ansioso que está, como já anunciou, por ir espraiar a sua habilidade lá fora, deixando em boa parte do centrão político gente sem coluna vertebral que se veja, de idoneidade mais do que discutível, com interesse quase só para o fisco e para a justiça penal, sem competência ou qualificações que se vejam, além de um canudo que vale o pouco que vale para quem, sem educação que se veja, se propõe, apesar de tudo, assumir as rédeas da governação.

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Diversos comentadores referiram a suposta falta de preparação para os debates por parte do representante do maior partido da oposição, considerando-o mal preparado, arrogante no seu estilo popularucho, demasiado informal. Como se o eleitor português típico tivesse a capacidade de entender outro tipo de discurso, mais elaborado, mais elevado, mais humano, até. Sobretudo, apelando ao processamento intelectual!

Esquecem-se, manifestamente, de que ensino não implica educação; de que a atividade letiva que dá canudos não dá o resto, de que, como elevador social, o simples ensino, sem educação, não passa do rés-do-chão; e de que é, precisamente, este tipo de discurso simplista e próximo daquilo que é, efetivamente, a mole humana que vota, que a cativa no momento da decisão.

Esquecem-se os eruditos comentadores daquilo que os publicitários há muito sabem: que não são anúncios com mensagens sofisticadas que vendem a esta boa gente que vota, mas sim pérolas do tipo "Paôpa, Fêlha, perque nã sabes o dêa de amanhã!"...

Prova acabada parecem ser, valham o que valerem, os resultados de sondagens em que a diferença das intenções de voto entre os dois maiores partidos se ia, até há pouco, estreitando, estreitando, arriscando-se a quase se anular, se não acabar por acontecer mesmo uma inversão.

Também no clube dos mais jovens salvadores da Pátria, como todos parecem considerar-se, a conversa de surdos não era melhor, mais a mais com alguns moderadores de debates - que, amiúde, mais pareciam candidatos - obstinados em quase exigir respostas ao rol de perguntas que traziam na cábula, em lugar de deixar que o pugilato se desenvolvesse com a aparência mínima de naturalidade permitida pela ridícula escassez do tempo disponível, no intervalo entre as notícias e o concurso dos croquetes ou outra importantíssima emissão.

Quando não houve pelejas aguerridas mas vazias, foi a vez dos não debates, das frases feitas e dos sound bytes trazidos dos espíritos  vivaços dos consiglieri dos partidos, das coisas nenhumas, moles, ocas, em que ninguém parecia saber bem ao que ia, ou o que havia de dizer. A monótona série de perdas de tempo apenas serviu, se tanto, para revelar um pouco mais da personalidade e da argúcia deste ou daquele candidato: nada, mas nada, de esclarecedor e fundamentado quanto às propostas trazidas a debate - quando as havia - e, semanas mais tarde, à eleição.

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Assim sendo, para, de facto, quê dar mais tempo àquilo? Para quê dignificar conversas de surdos que, para os próprios partidos, não passaram do cumprimento de uma obrigação para com uma comunicação social da qual inteiramente dependem para aparecer em casa dos eleitores, em cujas boas graças necessitam de estar, e que lhes não dispensa o beija-mão?

Acaso representa mais do que isso? Como explicar, então, o facto de alguns para lá terem ido antes mesmo de o programa eleitoral que iriam debater ter sido publicado? Se, para esses partidos, a série de programas tinha algum genuíno interesse, como explicar esta clara demonstração de desinteresse, de falta de dedicação?

Se alguma qualidade verdadeira as estações antevissem na iniciativa, teriam dado o dobro da duração à coisa, assim sempre arranjando mais ou outro anúncio no intervalo. Mas, não: as refregas duraram apenas o tempo suficiente para fazer arrebitar, durante uns minutos e com as picardias da praxe, os espetadores das eternas telenovelas e dos populares concursos da televisão; e, a fazer fé nos números das audiências, a tática funcionou. Já se dessem, aos desinteressantes atores políticos, tempo para entrar no debate de ideias e de projetos, estragariam tudo, convidando a esmagadora maioria de uma população politicamente analfabeta a rapidamente mudar de canal ou, pelo menos, a deixar de prestar atenção.

O que dizer, por fim, da escandalosa falta de pontualidade de certos canais que atrasaram, por vezes vários quartos de hora, o início dos ditos debates face à hora anunciada, assim obrigando os espetadores ainda interessados naquilo a gramar notícias e mais notícias, algumas sem qualquer interesse - como no recentemente rebatizado canal que insiste em incluir nos telejornais pequenas histórias transmitidas pela casa-mãe americana, de interesse diminuto ou, pelo menos, sem o ter em dose suficiente para legitimar o atraso na transmissão de um debate eleitoral?

Ou, pior ainda, dos embates que começaram antes da hora anunciada, fazendo-nos perder boa parte do tão precioso alimento intelectual?

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Aquela trintena de mini-programas foi a fantochada e a vergonha que sempre fora programada para ser. Ninguém alguma vez esperou que servisse para alguma coisa, nem acreditou que também alguma coisa junto dos eleitores os debates viessem esclarecer.

Tudo não passou do habitual picadeiro das vaidades por parte dos concorrentes, e da sensaborona inutilidade dos juris de comentadores. De serões de indisfarçável tédio para todos nós, hesitantes eleitores e obedientes espetadores.

Sic transit gloria mundi




  LEIA  AQUI  O  ARTIGO SEGUINTE DESTA SÉRIE DEDICADA AO ATO ELEITORAL!  

4 comentários:
  1. Boa noite,
    Comungo da implicação com a vaidade vã dos “sabedores e eruditos” que se exibem na comunicação social e também nos blogues sem esforço algum de verdade, tal como concordo que é uma fantochada tratar os debates como dérbis. E mais ainda com a diferença entre ensino e educação.
    Já quanto ao modelo de debates escolhido para estas legislativas tenho opinião diferente. Deixo aqui o que escrevi no passado dia 11 a esse propósito. Peço que me perdoe o facto de ser um comentário longo.
    Ao contrário da maioria das opiniões que li (foram poucas) o modelo de curtos debates utilizado para estas legislativas parece-me muito acertado. Os longos tempos de antena que se ofereciam aos candidatos para fazer propaganda foram bem coarctados, forçando-os a serem contraditados por todos os outros e a cingirem-se aos pontos fulcrais e mensagem que querem passar. Obriga-os a disciplina e poder de síntese – duas vantagens.
    E quem diz que daqui só saem sound bites esquece que tal já acontecia nos debates mais demorados, cujo encher chouriços era sempre reduzido aos chavões nos dias seguintes.
    Bom, bom seria usar o mesmo critério para os jornais e espaços de debate. Em vez de continuarmos a assistir ao chover no molhado de 30 minutos de estados de alma dos especialistas, comentadores e jornalistas sobre a pandemia, ou o ânimo dos portugueses no momento clássico das televisões de abastecer combustível em tempo de aumentos - fico sempre à espera da verdadeira notícia, o dia em que apareça um automobilista a dizer: estou muito contente como esta subida de preço – poderíamos ter jornais de 30 ou 40 minutos por inteiro que nos informassem das notícias do país e do resto do mundo.
    Em ambos os casos a conversa mole para boi dormir interessa sobretudo a quem não sabe como resolver os problemas e gosta de enrolar durante horas. Quem age e faz a diferença fala menos, analisa com sobriedade e executa. Sem lero-lero.

    Agradeço a sua visita ao meu modesto estaminé e deixo votos de felicidades para o Mosaicos em Português.

    Isabel Paulos

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    1. Muito grato pelas suas observações.
      De alguma forma concordo consigo naquilo que respeita ao facto de os programas mais curtos servirem para evitar intermináveis parlengas. Penso que, no fundo, o que estraga, mesmo, os debates mais curtos é a ânsia de protagonismo ou a necessidade de cumprir o guião por parte de pseudo-moderadores que mais parecem candidatos e não chegam a deixar completar uma ideia.
      Obrigado pelos votos de felicidades, que, para o Comezinhas, retribuo em dobro.

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